Assédio sexual: primeiros posicionamentos

A Lei n. 10.224, de 15.5.2001, introduziu no Código Penal, no Capítulo dos Crimes contra a Liberdade Sexual, o delito de assédio sexual, com a seguinte definição:

“Art. 216-A. Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função: Pena – detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos.”

A inclusão desse tipo penal demonstra um amadurecimento e uma tomada de posição em relação a certos temas que, não obstante trazerem enorme prejuízo, principalmente para as mulheres trabalhadoras, não vinham sendo tratados com a necessária atenção. Convém destacar o fato de que o assédio, de acordo com a nova lei, tem como elemento típico o constrangimento exercido por alguém em busca de satisfação sexual. Envolve, portanto, relação de poder, sujeição da vítima, ofensa à sua dignidade e, por fim, afetação à sua liberdade sexual. Tratando-se de assédio laboral, pode-se incluir outro bem jurídico importante: direito à não-discriminação no trabalho.

De acordo com a lei nova, o sujeito ativo do crime deve ser necessariamente superior hierárquico, excluindo aqueles que exercem a mesma função ou cargo inferior. Assim, o que caracteriza o assédio na legislação brasileira é, principalmente, a relação de sujeição da vítima, que não lhe permite, em certas circunstâncias, deixar de realizar a conduta a que está sendo constrangida sem que recaia sobre ela um grave malefício (seja em relação à perda do emprego, a uma promoção e, mesmo, à não-admissão laboral). O Código Penal Espanhol, diferentemente, admite o assédio sexual entre colegas de trabalho do mesmo nível. É o que se convencionou chamar de “assédio sexual ambiental” e que se caracteriza pela situação objetiva e gravemente intimidatória, hostil ou humilhante para a vítima. Entre nós, a relação de ascendência encontra-se vinculada a qualquer situação de superioridade, podendo ser incluída desde o relacionamento entre pais e filhos, como também aquela que, por exemplo, desenvolve-se no âmbito docente ou eclesiástico.

No que tange ao sujeito ativo, a mulher pode ser autora. Basta que haja uma relação de superioridade. Aliás, nada impede que os sujeitos ativo e passivo sejam do mesmo sexo. De qualquer forma, dados fornecidos por diversos organismos internacionais revelam que 99% dos casos de assédio têm como vítima a mulher.

No exterior, os EUA foram o primeiro país a criminalizar o assédio sexual (denominado “sexual harassment”), já a partir da segunda metade da década de 70. De lá para cá, tem aumentando consideravelmente o número de países que passaram a se preocupar com o tema. A maioria deles, entretanto, reserva o tratamento da matéria à legislação civil ou trabalhista. A criminalização da conduta é adotada apenas num pequeno número de países. Menor ainda é o número daqueles que admitem cumulativamente a tutela penal e a extrapenal. Dentre os que criminalizaram o assédio, podemos citar, chamando a atenção para as datas recentes das respectivas legislações: Espanha (art. 184, 1 e 2, do Código Penal de 1995, com nova redação dada pela Lei n. 11/99), França (Código Penal de 1994, art. 222-33), Portugal (art. 164, n. 2, do Código Penal, acrescentado pela Lei n. 65/98) e Itália (art. 71, “c”, do Código Penal).

De acordo com o parágrafo único do art. 216-A, com redação do Projeto de Lei, haveria crime na hipótese de o autor praticar o delito “prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade ou com abuso ou violação de dever inerente a ofício ou ministério” (incs. I e II). A disposição foi vetada. A justificativa acolhida pelo Presidente foi de que o parágrafo único descrevia situações que já estavam previstas como causas especiais de aumento de pena no art. 226 do CP, o que acabaria por não permitir a sua incidência nos casos de assédio. Foi correto o posicionamento do Presidente, pois, do contrário, as hipóteses previstas no parágrafo projetado, que são mais graves, não poderiam sofrer a agravação cominada no mencionado art. 226, sob pena de violar o princípio do no bis in idem.

Os efeitos da nova incriminação já puderam ser sentidos mesmo antes de vigorar a lei que tipificou o assédio, visto que inúmeras são as instituições (públicas e privadas) que passaram a se preocupar com o tema, reforçando programas de esclarecimento, promovendo cursos, palestras, afixando comunicações nos quadros de avisos da empresa etc. Sob este aspecto, foram criados setores específicos, encarregados de resolver problemas decorrentes de condutas que envolvam assédio. Sabe-se que não é função do Direito Penal alterar os valores da sociedade, mas, sim, protegê-los, desde que, para tanto, não interfira no âmbito da liberdade de princípios de grupos, posto que o pluralismo há que ser respeitado numa sociedade havida por democrática. De ver-se, contudo, que, mesmo não sendo função do Direito, é certo que a criminalização de determinada conduta pode ter por efeito positivo a demonstração de que o bem jurídico que se busca proteger possui tal dignidade a ponto de sua tutela ter sido destinada ao campo penal, o que não dispensa outras formas de tutela. Aqui se tem a prevenção geral em seu aspecto positivo. A vertente negativa da prevenção geral também pode ser invocada, porque a criminalização da conduta pode fazer com que o agente se afaste dela, com receio de vir a sofrer a imposição penal. Além destes aspectos, a vítima pode contar com todo o aparato do Estado para a elaboração da prova do ocorrido, não ficando, no caso, por exemplo, do assédio laboral, à mercê da iniciativa do empregador, que, por questões de ocasião, resolve sobre a pertinência de investigar o fato, sem estar obrigado a aplicar a sanção ou despedir o autor do fato. Espera-se, apenas, que a criminalização da conduta não venha a desvirtuar o desempenho dos programas de prevenção, criados especialmente na área do Direito do Trabalho, campo, aliás, mais fértil para que se realizem as condutas que caracterizam assédio.

* Damásio E. de Jesus
Presidente e Professor do COMPLEXO JURÍDICO DAMÁSIO DE JESUS

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