As restrições existentes na celebração de tratados internacionais no Direito Tributário

SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Forma Federativa – 3. Conclusão dos tratados internacionais – 4. Hierarquia dos tratados no plano interno: 4.1 Art. 98 do CTN, caos e absurdo – 5. Natureza jurídica do tratado – 6. Direito Interno e Internacional – 7. O tratado no plano internacional — responsabilidade dos Estados signatários – 8. O tratado no plano interno — responsabilidade da União – 9. Sistema Constitucional Tributário – 10. A problemática das competências – 11. Análise da doutrina de opinião oposta – 12. Tratados internacionais e o Direito Tributário contemporâneo – 13. Conclusão – 14. Bibliografia.

1. Introdução

O presente trabalho tem por objetivo analisar os aspectos concernentes a acordos internacionais firmados pelo Brasil que tratem de matérias de competência legislativa dos Estados-membros ou Municípios. O tema é de grande relevância devido à atual tendência dos países para a integração e regionalização, dentre os quais os latino-americanos, através do Mercosul. Como o Brasil segue a forma federativa, outorgando a cada um dos entes de direito público interno determinadas competências legislativas, há certos tributos cuja competência não pertence à União, mas aos Estados-membros e aos Municípios.

O tema abordado aqui não é recente, já tendo sido discutido por diversos doutrinadores, tanto especialistas na área de Direito Tributário, como outros na de Direito Constitucional e de Direito Internacional. Entretanto, é relevante ressaltar que há, ainda hoje, controvérsias a este respeito, de modo que o escopo deste estudo não é trazer uma posição pacífica, mas analisar criticamente as idéias já formuladas e emitir uma opinião.

Por fim, não se pretende aqui tratar do tema exaustivamente, mas apenas alcançar uma resposta para a questão de ser ou não possível ao Brasil firmar tratados sobre matérias de competência legislativa de entes que não a União.

2. Forma federativa

O Brasil adotou como forma de Estado o federalismo, sendo formado, como descrito na Carta Magna, pela “união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal”.

Dessa forma, diferente do sistema unitário, em que, tanto as decisões políticas, como o poder para legislar, partem de um único centro sobre todo o território do Estado, no Brasil deve-se obedecer às diferentes competências atribuídas pela Constituição Federal a cada ente de direito público interno.

Assim, como ensina o grande mestre Geraldo Ataliba, “exsurge a Federação como a associação de Estados (foedus, foederis) para formação de novo Estado (o federal) com repartição rígida de atributos da soberania entre eles. Informa-se seu relacionamento pela ‘autonomia recíproca da União e dos Estados, sob a égide da Constituição Federal’ (Sampaio Dória), caracterizadora dessa igualdade jurídica (Ruy Barbosa), dado que ambos extraem suas competências da mesma norma (Kelsen). Daí cada qual ser supremo em sua esfera, tal como disposto no Pacto Federal (Victor Nunes)”.1

3. Conclusão dos tratados internacionais

Ainda sob a égide do princípio federativo, a representação de nosso país se dá através da União, sendo os tratados firmados pelo Poder Executivo, como se depreende do inc. VIII do art. 84 da CF/88, in verbis:

“Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:

………………………

VIII – celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional.”

Assim, inicialmente, o Presidente da República assina o tratado. Após a assinatura, o mesmo passa por aprovação do Congresso Nacional, através de Decreto Legislativo, e, então, retorna ao Presidente da República, o qual, mediante Decreto presidencial, promulga-o. Após este processo interno, o tratado é ratificado.

É relevante observar os momentos distintos em que o tratado passa a gerar efeitos no âmbito interno e no internacional. O conteúdo do tratado apenas incorpora o ordenamento jurídico interno após o referido decreto presidencial, ou melhor, após sua publicação no Diário Oficial. Já no âmbito internacional, o tratado só é realmente tido como aceito pelo Estado signatário a partir do momento de sua ratificação.

Como ensina Guido Fernando Silva Soares, “da assinatura dos tratados, bilaterais ou multilaterais, não defluem, necessariamente, obrigações para os Estados signatários, reafirmando-se que o efeito mais evidente da assinatura é a imutabilidade de seu texto”. 2 (nosso grifo)

Muitos afirmam, erroneamente, que a ratificação se dá através do Congresso Nacional. Na realidade, o ato de ratificação, em sendo um instituto de Direito Internacional, apenas é possível de ser realizado pelo Estado, através do Poder Executivo da União, como define o supracitado artigo da Constituição Federal.

Assim, o ato que compete ao Congresso Nacional é, assim, a aprovação referendária, que gera apenas efeitos internos, bastante diferente da ratificação.

4. Hierarquia dos tratados no plano interno

Diferente dos países em que se dá o Direito Comunitário — tal como na União Européia, onde os tratados firmados possuem força vinculante — no Brasil se formou, conforme recentes decisões do STF, uma posição que iguala o tratado a leis ordinárias. Assim, seguindo os preceitos de que lei posterior revoga anterior ou de que lei especial revoga geral, um tratado pode ser revogado por qualquer lei ordinária federal.

4.1 Art. 98 do CTN, caos e absurdo

É relevante ressaltar que muitos autores acreditam haver, no Direito Tributário, uma distinção em relação a tal posição, o que já vem sendo considerado pelos tribunais. Isso se dá pelo fato de o Código Tributário Nacional, em seu art. 98, ter determinado que “os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna, e serão observados pela que lhes sobrevenha”. (nosso grifo) Dessa forma, os tratados teriam uma posição hierárquica superior à das leis, não podendo estas alterá-los, sendo inaplicáveis os preceitos supramencionados. Não obstante, tal artigo não pode ser tido como válido, justamente por tratar de matéria que não pode ser objeto de lei ordinária ou complementar.

Cumpre aqui destacar que a Lei nº 5.172/66, que dá redação ao CTN, ainda que formalmente lei ordinária, foi recepcionada pela Constituição Federal materialmente como lei complementar, devido ao fato de que no momento de sua criação não existiam as leis complementares, as quais tiveram início com a CF de 67/69.

Todas as normas infraconstitucionais obtêm sua validade na Constituição Federal, a qual é a fonte de todas as normas integrantes do sistema jurídico de um país, ou, como afirmara Kelsen, “é o fundamento último de validade das normas jurídicas”.3 Assim sendo, apenas à Lei Maior cabe determinar a hierarquia das normas jurídicas, de modo que não podem as leis infraconstitucionais, sejam elas ordinárias ou complementares, ter como objeto tal conteúdo.

Ora, se acreditarmos que uma lei complementar pode determinar a prevalência dos tratados sobre outras leis complementares, seremos obrigados a vislumbrar um sistema jurídico em que as normas infralegais prevaleceriam sobre as normas legais apenas porque uma norma legal assim o determinou, chegando ao absurdo de um sistema jurídico em que a hierarquia das normas se encontraria invertida à própria hierarquia determinada pela Constituição Federal, ou mesmo a um caótico sistema jurídico com dezenas de patamares hierárquicos, estes criados pelas normas infraconstitucionais!!?

Devemos concordar que o citado artigo do Código Tributário Nacional é sem dúvida progressista, tendo sido criado com o correto intuito de fazer cumprir as obrigações assumidas internacionalmente pelo Estado brasileiro. Entretanto, pelo supra-exposto, somos obrigados a afirmar que não há exceção no âmbito tributário, devendo-se aplicar às normas tributárias aqueles preceitos supracitados da mesma forma que se dá com as normas que tratam de outras matérias, pela manifesta inconstitucionalidade do art. 98 do Código Tributário Nacional.

5. Natureza jurídica do tratado

Existem diversas tentativas de definição dos tratados, bem como de sua classificação. Assim, há alguns doutrinadores que propugnam a classificação em tratados-lei e tratados-contrato, de modo a distinguir tratados que impõem obrigações idênticas a todas as partes, criando normas gerais, e tratados que se assemelham a contratos, geralmente bilaterais, instituindo direitos e deveres recíprocos aos Estados, não criando normas jurídicas. Acreditamos não ser correta tal distinção.

A lei, em sentido amplo, é sempre compulsória, não podendo alguém simplesmente decidir não cumpri-la, ainda que existam aquelas normas denominadas dispositivas. Ocorre que estas normas não podem ser simplesmente consideradas não-obrigatórias. Ainda que permitam seus destinatários agir de forma diversa à descrita por ela, tal norma possui força compulsória, de modo que a opção outorgada a seus destinatários deriva dela mesma. Apenas a lei, com sua força vinculante, pode permitir ou não determinadas atitudes ou deliberações. Assim, a lei é imposta aos cidadãos, não sendo sua eficácia objeto de aceitação por parte dos mesmos.

Já o contrato é necessariamente manifestação de vontade. O contrato nunca é imposto às partes, mas a sua compulsoriedade deriva de sua aceitação, que determina serem as partes obrigadas ao seu conteúdo. O mesmo se dá com os tratados internacionais. Os tratados não são impostos ao Estado, sob pena de ferir sua soberania. Para que um Estado se obrigue perante outro deve haver impreterivelmente manifestação de vontade, isto é, faz-se necessário que tal Estado aceite o conteúdo do tratado para que seus dispositivos tenham eficácia sobre ele.

Assim, o fato de traduzirem os tratados normas gerais ou particulares não implica em distingui-los em lei e contrato, mas apenas demonstra possuírem conteúdos diferentes.

Outrossim, Guido Fernando Silva Soares, apesar afirmar a distinção supramencionada, ensina que “as responsabilidades por inadimplemento de obrigações internacionais, pelos destinatários do Direito Internacional Público, em particular os Estados, são as mesmas, sejam originárias de uma norma do Direito Internacional Público Geral, ou contida num tratado geral, um tratado-lei, na terminologia de Triepel, sejam de um tratado particular, quer dizer, um tratado-contrato, ainda segundo aquele mestre alemão”.4

O que queremos dizer aqui é que os tratados, independente de tal distinção, derivam de manifestação de vontade dos Estados signatários e criam sempre deveres aos mesmos, qual seja, cumprir o pactuado, seja fazendo algo ou se abstendo de fazê-lo, sob pena de sofrerem as devidas sanções internacionais.

Não resta dúvidas de que há tratados que regulam interesses recíprocos dos Estados de modo concreto, enquanto que há outros que visam fixar normas gerais. Entretanto, como acima demonstrado, todos eles são iguais quanto a sua natureza jurídica, de modo que o que muda é meramente o seu conteúdo. Tal distinção ultrapassa os limites do Direito, atingindo uma classificação muito mais política ou operacional do que jurídica, haja vista que seus pressupostos e efeitos são os mesmos.

Como afirma Orlando Gomes, referindo-se a institutos jurídicos internos “existem acordos patrimoniais que não são considerados contratos porque não originam, para as partes, obrigações que modifiquem a situação preexistente, mas se limitam a estabelecer regras a serem observadas se os interessados praticam os atos prefigurados. (…) Esses negócios jurídicos são, porém, autênticos contratos”. 5 Dessa forma, a melhor definição para a natureza jurídica dos tratados seria a de um negócio jurídico, mais especificamente um acordo ou contrato.

6. Direito Interno e Direito Internacional

Pela análise da Constituição Federal, bem como pelas decisões dos tribunais, temos que o sistema jurídico brasileiro segue uma corrente dualista, isto é, distingue o direito interno do Direito Internacional, de modo que a legislação pátria não se confunde com as normas internacionais. É importante, assim, ter em mente que existem dois planos normativos: o plano internacional, regido por tratados, que se traduzem em obrigações assumidas por pessoas de Direito Internacional, e tutelado com sanções e cominações específicas; e o plano interno, onde as normas constituem um sistema jurídico, que obriga pessoas, físicas ou jurídicas, de direito interno, incluindo nestas a União, Estados-membros, Municípios e Distrito Federal.

Definimos acima a natureza jurídica do tratado como sendo um acordo, um contrato. Como bem afirmou Kelsen, “com o termo ‘contrato’ se designa um estado de fato da ordem jurídica interna. Porém o mesmo estado de fato existe igualmente sob o nome de ‘tratado’ no direito internacional. Em ambos os casos se colocam, em princípio, os mesmo problemas”. 6

Ocorre que o tratado possui tal natureza apenas no âmbito internacional. Ao incorporar o ordenamento jurídico interno, ele deixa de ser um negócio jurídico, passando a fazer parte do sistema jurídico do País.

Para analisarmos as implicações da incorporação dos tratados devemos entender como efetivamente este processo se dá.

A partir do momento da publicação do decreto presidencial no Diário Oficial, o ordenamento jurídico do país passa a possuir normas antes inexistentes, cujo conteúdo fora determinado no tratado firmado pelo Estado. Deve-se perceber, então, que o processo pelo qual passa o tratado, tendo como último ato o da publicação do decreto presidencial no Diário Oficial não é uma transformação, mas uma criação.

Assim, não se dá propriamente uma integração do tratado ao ordenamento jurídico interno, mas o que ocorre é a criação de uma norma, com processo legislativo próprio, cujo conteúdo fora determinado no tratado celebrado pelo Brasil.

Há autores que, buscando certo rigor científico devido a essa dicotomia, criticam a denominação tratado quando utilizada para se referir ao ato gerador de efeitos no âmbito jurídico interno, afirmando ser este o decreto legislativo, emitido pelo Congresso Nacional, de modo que o tratado seria apenas ato de DI. 7 Tal assertiva já peca de início pelo fato de que o decreto legislativo traduz meramente aprovação referendária — e não ratificação, como afirmam estes — sendo necessário ainda o decreto presidencial para que se dê efetiva alteração na legislação interna. Assim, menos errôneo seria considerar o decreto presidencial o ato tradutor da norma de conteúdo do tratado firmado, isto é, a fonte jurídica primária no ordenamento interno.

Mas o defeito ainda assim persiste em tal tese, pois olvidam os autores que a propugnam do processo existente para a incorporação do tratado ao direito interno. Este processo possui uma tal complexidade subjetiva que exige esforços tanto do Poder Executivo como do Legislativo. Assim, o decreto legislativo, por representar apenas a decisão do Congresso Nacional, não poderia jamais ser considerado o resultado do processo supracitado, mas apenas uma de suas etapas. O mesmo pode-se afirmar do decreto presidencial que, apesar de ser o ato último do processo, não pode também ser tido como seu resultado. Ora, afirmar que é o decreto presidencial que traduz a norma jurídica nos levaria a crer que a criação desta norma se dá apenas por ato do Presidente da República, ignorando a necessidade de aprovação pelo Poder Legislativo. Dessa forma, o decreto legislativo e o decreto presidencial representam fases necessárias para a criação de outro instituto jurídico — tradutor da norma de conteúdo do tratado celebrado —, não se confundindo com este.

Por não existir nomenclatura definida para o instituto resultante do processo mencionado, utilizaremos aqui a denominação tratado, para que haja uma correlação com a legislação em vigor, apenas fazendo uma distinção entre os tratados existentes no âmbito internacional e os tratados como instituto jurídico interno, resultante de processo legislativo determinado.

Assim, com o intuito de evitar confusão quanto à nomenclatura, nos apropriaremos daqueles termos tratados-contrato e tratados-lei, outorgando-lhes sentido diverso do habitualmente utilizado. Como já afirmado, a tese que distingue os tratados conforme o seu conteúdo não é jurídica. Dessa forma, lançaremos mão desta já existente nomenclatura, dando-lhe outro significado, de modo que o tratado-contrato será aquele firmado entre sujeitos de DI, apenas gerando efeitos no âmbito internacional, enquanto que o tratado-lei é o que resulta do processo legislativo que traz ao ordenamento jurídico interno normas com o conteúdo do tratado celebrado pelo Estado signatário.

Tal distinção passará a ter relevância no momento em que analisarmos as responsabilidades dos entes jurídicos no plano interno e internacional.

7. O tratado no plano internacional – responsabilidade dos Estados signatários

Como determina a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, em seu art. 46, “um Estado não poderá invocar o fato de que seu consentimento em obrigar-se por um tratado foi expresso em violação de uma disposição de seu direito interno sobre competência para concluir tratados”.

Apesar de referida convenção não ter sido ainda aprovada pelo Congresso Nacional brasileiro, o Brasil não pode se escusar de tal regra. Ora, um tratado internacional, assim como qualquer outro acordo ou contrato, possui como fim o cumprimento de seu objeto por parte de seus sujeitos, de modo que, se firmado por um país, deve ele ser obedecido, sob pena de cominação de sanções devidas.

Não se pode, ainda, alegar a soberania nacional. Ora, ao firmar um tratado, o Estado signatário assume internacionalmente uma obrigação, cujo efeito é meramente o dever de cumpri-lo. Assim, ao celebrar um tratado, o Estado deve levar em conta seu sistema jurídico interno, prevendo quaisquer eventos que venham a impossibilitá-lo de cumprir o pactuado.

Ainda tendo em vista a existência de dois planos — interno e internacional — devemos notar que não importa aos Estados, sujeitos de direito internacional, o sistema jurídico interno dos outros. Assim, não interessa a um Estado o sistema hierárquico normativo determinado pela Constituição de outro Estado signatário, de modo que este não pode utilizar qualquer dispositivo em sua Constituição ou em qualquer outro ato normativo interno, para se eximir de responder pelas obrigações firmadas. Ora, o que existe para os Estados é apenas o acordo firmado (tratado-contrato), não lhes importando a forma adotada pelos outros para sua integração ao sistema jurídico, isto é, não sendo relevante a feição que tomará o tratado-lei nos outros Estados, como ato jurídico no ordenamento interno.

8. O tratado no plano interno – responsabilidade da União

Deve-se, então, questionar a legitimidade da União para firmar tratados. Cumpre observar que a mesma assume responsabilidades, tanto perante as pessoas de direito externo como perante as pessoas de direito interno.

Também devemos lembrar que a União não possui existência internacional, apenas exercendo internacionalmente a representação do Brasil. Assim, tecnicamente não possui a União uma dupla responsabilidade. Há, no plano internacional, a responsabilidade do Brasil, como Estado que é, perante as pessoas jurídicas de direito internacional e, no plano interno, a responsabilidade da União perante as pessoas de direito interno.

Assim, apesar de a União possuir, como representante do Estado brasileiro, legitimidade para assumir qualquer obrigação e para firmar qualquer tratado no plano internacional, o mesmo não se dá no plano interno, onde devem ser observadas as restrições impostas pela Constituição Federal.

Como já visto, o tratado no plano interno (tratado-lei) possui caráter normativo. Como tal, deve obedecer aos mesmos requisitos determinados na Carta Magna para os outros atos normativos, entre eles, a distribuição de competências legislativas.

Ora, os tratados, por serem firmados pela União são de nível federal, possuindo no Brasil, conforme interpretações dos tribunais, força de lei ordinária federal. Assim, a União apenas pode “criar” tratados-lei nas matérias que concernem a sua competência, não podendo ultrapassar os limites impostos pela Carta Constitucional, invadindo as competências legislativas dos Estados-membros e Municípios.

Dessa forma, a partir do momento em que fica impedida de criar tais normas, sob pena de violação do princípio federativo, a União não pode assumir internacionalmente a responsabilidade sobre as mesmas matérias, ficando-lhe vedada a celebração de tratados cujo conteúdo seja de competência legislativa dos Estados-membros e Municípios.

Importante é lembrar que tal impedimento é apenas interno, sendo válido internacionalmente o consentimento do Estado a respeito de qualquer matéria. Assim, enquanto que o problema no âmbito interno surge no momento em que a União “cria” o tratado-lei, no âmbito internacional só haveria conflitos a partir do momento em que se declarasse este tratado-lei inconstitucional, tirando-lhe a eficácia interna e fazendo, conseqüentemente, com que o Estado recaísse em inadimplemento ou violação no âmbito internacional.

Ademais, deve-se observar que a soberania, como atribuição outorgada aos Estados no plano internacional, da mesma forma que é utilizada para assumir obrigações no plano internacional, possibilita ao Estado a decisão de não firmar tratado de que não queira participar.

Deve, portanto, a União, ao firmar um tratado, levar em conta a existência dos dois planos existenciais — interno e internacional —, observando os impedimentos existentes em ambos, isto é, deve ela observar tanto o dever de adimplir a obrigação assumida internacionalmente, como a limitação do campo de abrangência da competência outorgada à mesma para legislar no plano interno.

9. Sistema Constitucional Tributário

Muito elogiada pela doutrina, a Carta de 88 define com precisão a competência para legislar sobre tributos, determinando o ente competente, a forma como a competência deve ser exercida e os limites para o exercício de tal atribuição.

Assim há tributos cuja competência legislativa é exclusiva da União, outros dos Estados-membros e outros dos Municípios.

Deve-se observar, entretanto, que essa distribuição de competências não segue uma forma horizontal, mas vertical, tendo sido outorgada à União a competência para legislar sobre normas gerais de direito tributário, através de lei complementar (art. 146, III, CF/88). Assim, ainda que a competência para legislar sobre determinado tributo seja exclusiva dos Municípios, tal competência limita-se à instituição do referido tributo e à definição de normas que não aquelas já definidas pela União ou pela própria Constituição Federal.

Conforme ensina Alexandre de Moraes, “pelo princípio da predominância do interesse, à União caberá aquelas matérias e questões de predominância do interesse geral ao passo que aos Estados referem as matérias de predominante interesse regional, e aos municípios concernem os assuntos de interesse local”. 8

Outrossim, é de extrema lucidez a norma constitucional que outorga à União a competência para legislar sobre as normas gerais de direito tributário, pois, sendo o tributo o principal meio de arrecadação pecuniária do Estado, a livre atribuição legislativa aos Estados-membros e aos Municípios geraria tamanha insegurança jurídica, que cada qual, visando interesses políticos e econômicos, legislando em favor próprio, conduziria o sistema tributário a uma guerra fiscal maior do que a atual, a ponto de tornar-se incontrolável.

Como bem afirmou o mestre Gilberto de Ulhôa Canto, co-autor do Código Tributário Nacional, “em que pesem suas muitas deficiências, o CTN tem prestado ao Brasil o relevantíssimo serviço de amparar os contribuintes contra a arbitrariedade e a prepotência fiscais, justamente porque formula diversos princípios e regras que submetem a administração tributária da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, à observância de critérios uniformes em matéria que tem a ver com as normas constitucionais, que dificilmente se poderia impor a mais de 5.000 entes políticos diferentes, se a cada um deles fosse lícito entender e aplicar certas formas básicas que lhe aprouvesse”.9

Assim, faz-se necessário uma unificação das normas gerais para que se obtenha uma razoável harmonia entre os entes tributantes, de forma a controlar eventuais distúrbios causados por uma incessante busca por arrecadação, da qual sairia o contribuinte o principal afetado.

10. A problemática das competências

Haja vista a competência exclusiva outorgada pela Constituição Federal de 1988 aos Estados-membros e aos Municípios para legislar sobre determinados tributos, fica a União limitada a apenas determinar-lhes regras gerais.

Para que fique clara a competência legislativa de cada ente tributante, vale elencar os principais impostos atribuídos a cada um:

a) União: imposto sobre importação de produtos estrangeiros (II); imposto sobre exportação de produtos nacionais (IE); imposto sobre a renda (IR); imposto sobre produtos industrializados (IPI); imposto sobre operações financeiras (IOF); imposto sobre propriedade territorial rural (ITR).

b) Estados e Distrito Federal: imposto sobre transmissão causa mortis e doações (ITCMD); imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação (ICMS); imposto sobre propriedade de veículos automotores (IPVA).

c) Municípios: imposto sobre propriedade predial e territorial urbana (IPTU); imposto sobre transmissão inter vivos, por ato oneroso (ITBI); imposto sobre serviços de qualquer natureza (ISS ou ISSQN).

Ora, pelo exposto em tópicos anteriores, se a União não pode fixar normas sobre matérias que não sejam de sua competência, também não pode celebrar tratados a respeito das mesmas, sob pena de responsabilidade no âmbito interno.

Deve-se lembrar ainda que também não possuem os Estados-membros e Municípios legitimidade para firmar tais tratados, devido ao fato de os mesmos não possuírem representação internacional.

Notamos, assim, um grande conflito entre o sistema jurídico interno e o Direito Internacional, que consiste justamente na impossibilidade de o Brasil tomar parte em tratados concernentes a matérias de competência legislativa de outros entes que não a União.

11. Análise da doutrina de opinião oposta

Há na doutrina muitos que afirmam a possibilidade de a União firmar tratados internacionais, ainda que sobre matérias de competência legislativa dos Estados-membros ou Municípios. Tal posição se funda na idéia de que a União, por representar o Estado brasileiro, tem total legitimidade para firmar tais tratados, haja vista estar atuando em nome da nação. Chega-se ainda a afirmar que, por o tratado passar pela aprovação do Congresso Nacional, o qual é parcialmente formado por representantes dos Estados-membros, estes estariam, também, aprovando o tratado em questão.

Ora, tal assertiva não pode ser verdadeira. Tal posição não passa de um pretexto para violação da autonomia outorgada aos Estados-membros, Municípios e Distrito Federal, assim como ao princípio federativo, tutelado pela Carta Magna.

Se assim fosse considerado, não seria necessário um tratado para que a União interviesse na competência dos outros entes tributantes, mas bastaria uma lei ordinária federal, visto que esta também passa pela aprovação do mesmo Congresso Nacional.

Esta visão simplista ignora o complexo sistema traduzido pela Constituição Federal para a manutenção do federalismo, que, ao outorgar competências legislativas aos Estados-membros, concede-lhes total autonomia para criar leis mediante processo legislativo próprio.

Não resta dúvidas, ainda, de que ao firmar tratados internacionais a União está atuando em nome da nação. Entretanto, o mesmo se dá quando, mediante lei complementar, a União legisla sobre normas gerais de direito tributário. Mas ainda neste caso, a Constituição Federal determina a limitação da atuação da União, não sendo possível, mesmo que através de lei complementar, mesmo que em nome da nação, a violação de tal norma constitucional.

A União desempenha, sem dúvida, importante papel em um Estado Federal, mas, ainda assim, não pode violar o princípio federativo e o rígido sistema imposto pela Carta Magna, que determina a competência de cada ente público para legislar.

Os que acreditam que, por representar o Estado brasileiro no plano internacional, a União pode firmar tratados internacionais livremente, sem qualquer observância às normas constitucionais, ignoram que os tratados internacionais firmados pelo Brasil representam, no plano interno, normas jurídicas e, como tal, devem obedecer a todos os requisitos para o processo legislativo, assim como as competências determinadas pela Constituição Federal.

Ora, se a União simplesmente decidisse emitir leis ordinárias ou leis complementares tratando de matéria de competência legislativa dos Estados-membros ou dos Municípios, não haveria dúvidas quanto à inconstitucionalidade de tais atos, ainda que afirmado seu interesse nacional. Então por que tentar validar tais atos quando se trata de tratados internacionais?

O operador do Direito deve, sem dúvida, encarar o Direito como um sistema, buscando sempre uma solução para todo conflito de normas. Entretanto, não pode utilizar tal escusa para ignorar os princípios definidos pela Constituição Federal. Nota-se claramente um conflito existente entre o sistema jurídico interno e o Direito Internacional, que chega a inviabilizar, de certa forma, a integração do Brasil com outros países, mas, ainda que visando uma solução para tal dificuldade, não podemos ultrapassar os limites impostos pela Lei Maior.

12. Tratados internacionais e o Direito Tributário contemporâneo

Surge uma grande dificuldade para o país em face dos outros entes de direito público externo, pois, se um tratado destes é firmado pelo Brasil, ele tem plena validade no Direito Internacional, de modo que a obrigação é licitamente assumida pelo país. No entanto, o mesmo fica impedido de cumpri-la, haja vista a inconstitucionalidade do ato jurídico interno que incorpora os preceitos previstos pelo tratado.

Devemos crer que o conflito supracitado é inaceitável em uma época em que a globalização alcançou tais níveis que já caminhamos, ainda que a passos lentos, a um mercado comum, havendo, inclusive, previsão constitucional para tanto (art. 4º):

“A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.”

No sistema adotado pela Carta de 88, a competência legislativa sobre os tributos denominados de “impostos sobre o consumo” foi outorgada aos Estados-membros e aos Municípios.

Diferente de outros países que adotaram um único imposto sobre o consumo — como é o caso dos países europeus, que possuem o Value Added Tax (ou IVA – imposto sobre valor agregado), de competência federal — no Brasil o imposto sobre consumo foi dividido em dois, quais sejam o ICMS e o ISS.

O ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), que incide sobre operações mercantis, serviços de transporte interestadual e intermunicipal e serviços de comunicação, é de competência legislativa dos Estados-membros; e o ISS ou ISSQN (Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza), que incide sobre quaisquer serviços que não aqueles abrangidos pela hipótese de incidência do ICMS, é de competência legislativa dos Municípios, apenas cabendo tal competência à União no caso de existência de Territórios Federais — que integram a União, não possuindo autonomia própria —, os quais não existem nos tempos atuais.

Ora, como imposto manifestamente mais relevante ao país, o imposto sobre o consumo não pode ficar de tal forma alheio ao plano internacional. Como pode ser possível um mercado comum sem um mínimo de harmonização das normas a respeito de tal tributo?

Faz-se necessário, portanto, repensar a estrutura do atual sistema constitucional, de modo, ou a alterar a atual distribuição de competências legislativas, concentrando o “poder de tributar” nas mãos da União, ou a modificar o sistema vigente de incorporação dos tratados internacionais, como ensina Agostinho Toffoli Tavolaro, com base nas soluções propostas por Marcos Aurélio Pereira Valadão:

“Nada obsta a que o Brasil insira cláusulas concedendo isenção de tributos estaduais e municipais em tratados internacionais, só devendo ratificá-los, no entanto, após negociações políticas internas, conduzindo ao acordo com os Estados, via Confaz, e diretamente com os Municípios”.10

13. Conclusão

O Direito Internacional, diferente das outras áreas do Direito, possui ainda conceitos muito vulneráveis, não sendo utilizados pelo seu rigor científico ou pela noção de justiça, mas sim como instrumentos de conveniência dos Estados, de tal modo que devemos crer que possui ele, até o momento, um caráter muito mais político do que jurídico.

Ademais, o DI encontra dificuldades justamente por ser demais avançado à atual visão que se tem de Estado, assim como de soberania. Por esse motivo cada Estado adota uma posição e uma maneira diferente de encarar, tanto os tratados, como as responsabilidades perante os mesmos. Segue o Brasil, assim, uma posição extremamente tradicional e arcaica em relação ao DI, a partir do momento em que iguala a força dos tratados à das leis ordinárias, ignorando completamente sua responsabilidade perante os outros Estados sobre as obrigações assumidas internacionalmente.

Dessa forma, partindo da premissa de que o Brasil segue um sistema dualista, o qual mantém em planos diferentes as normas internacionais e as normas internas, deve-se acreditar que o termo tratado não corresponde a um único ato, mas traduz a existência de dois atos distintos, sendo no âmbito interno não um acordo de vontades, mas uma norma jurídica, de criação da União, que como tal deve obedecer aos princípios e atribuições delineados pela Constituição Federal.

No contexto atual, portanto, somos obrigados a acreditar ser negativa a resposta à questão inicialmente formulada, afirmando ser impossível a celebração de tratados internacionais pelo Brasil cujo conteúdo seja matéria de competência legislativa dos Estados-membros ou Municípios, de modo que todos os argumentos utilizados para validar tal ato, ou recaem na extrajuridicidade, ou não correspondem ao sistema vigente no país.

14. Bibliografia

CASSONE, Vittorio. Lei Complementar e Lei Ordinária – Hierarquia Possível, in 8º Simpósio Nacional IOB de Direito Tributário. São Paulo: IOB, 1999.

COELHO, Fábio Ulhoa. Para Entender Kelsen. São Paulo: Max Limonad, 1999.

DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2000.

GOMES, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 2002.

MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1968.

_____________. Direito Constitucional Internacional: Uma Introdução. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2002.

REZEK, José Francisco. Direito Internacional Público: Curso Elementar. São Paulo: Saraiva, 2000.

SOARES, Guido Fernando Silva, Curso de Direito Internacional Público. São Paulo: Atlas, 2002.

TAVOLARO, Agostinho Toffoli. A supremacia dos tratados internacionais em face da legislação interna. In: Revista Tributária e de Finanças Públicas, ano 10, n. 44. São Paulo: RT, 2002.

(1) ATALIBA, Geraldo apud MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2002, p. 267.

(2) Curso de Direito Internacional Público. São Paulo: Atlas, 2002, p. 69.

(3) KELSEN, Hans apud COELHO, Fábio Ulhoa. Para Entender Kelsen. São Paulo: Max Limonad, 1999, p. 28.

(4) ob. cit. p. 65.

(5) Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p.10.

(6) KELSEN, Hans apud MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque. Direito Constitucional Internacional: Uma Introdução. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 271.

(7) Como ocorre no artigo 98 do CTN, verbis: “Os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna, e serão observados pela que lhes sobrevenha”. (nosso grifo)

(8) ob. cit., p. 287.

(9) CANTO, Gilberto de Ulhôa apud CASSONE, Vittorio. Lei Complementar e Lei Ordinária – Hierarquia Possível, in 8º Simpósio Nacional IOB de Direito Tributário. São Paulo: IOB, 1999, p. 178.

(10) TAVOLARO, Agostinho Toffoli. A supremacia dos tratados internacionais em face da legislação interna. In: Revista Tributária e de Finanças Públicas, ano 10, n. 44, p. 57.

* Ivan Ozawa Ozai
Contabilista e graduando em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie

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