“…constitui abuso da paciência e da inteligência do pais a insistência de presidentes, que, numa recorrência autoritária empedernida, insistem em editar Medida Provisórias… …é melhor (mesmo), reconhecer que no país só existe um poder de verdade, o do presidente.” (texto do então Senador Fernando Henrique Cardoso, republicado pelo Correio Braziliense de 07.07.97)
Temos presenciado, nestes quase doze anos de Constituição Democrática (1988-2000), a praxis presidencial republicana de governar o país através de Medidas Provisórias. Absorvida do Direito Italiano e inserida na Carta Magna de 1988 (art. 62), destinava-se a ser exceção transformando-se, porém, em regra. Presenciamos assim a desvairada pretensiosidade governamental em disciplinar toda e qualquer matéria jurídica, ferindo não só a própria Constituição, que exige os requisitos de urgência e de necessidade, como os princípios constitucionais que regem todos e quaisquer campo do Direito.
Desde o auferimento da capacidade de “normatizar”, o Executivo Federal recorre-se exasperadamente a tal recurso, abstendo-se do decoro e respeito aos nosso anseios políticos-democráticos. Diante não só das atrocidades políticas, como também das agressões fiscais cometidas por intermédio de tais aberrações jurídicas, propusemo-nos a analisar a sua (im)possibilidade instituidora de Obrigações Tributárias face aos princípios constitucionais da legalidade e anterioridade.
faz-se necessário analisarmos, a princípio, as origens das Obrigações Tributárias.
DAS FONTES DA OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA
Sabemos que as fontes do Direito Tributário são, destarte, ampla e geral como a da própria ciência jurídica. Porém, cabe-nos destacar dentro destas, quais possuem o caráter instituidor de Obrigações Tributárias Principais ou Acessórias.
A Carta Magna (art. 150, I) prediz que é vedado à União, Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios… exigir ou aumentar o tributo sem lei que o estabeleça (grifo nosso). Percebemos que o legislador é taxativo/categórico ao declarar que os sujeitos políticos (União, Estado, DF e Municípios) não poderão exigir algum adimplemento obrigacional, de caráter tributário, sem “ato normativo” que o estabeleça.
Desta forma, das inúmeras fontes do Direito, a única capaz de produzir obrigação no campo tributário é a LEI.
Porém, cabe ainda indagarmos a pretensão do constituinte no emprego do termo lex. Devemos compreende-lo como todo “ato normativo” (lato senso), seja legislativo ou administrativo, ou como “ato nascido no Poder Legislativo que se submete a um regime jurídico predeterminado na Constituição, capaz de inovar originariamente a ordem jurídica, ou seja, criar direitos e deveres”(1) (stricto senso), como ensina o Prof. Cláudio Luiz Frazão Ribeiro?
Fazendo-se uma abordagem no campo da legalidade constitucional (art. 5º, II), podemos concluir que a mentis legislatoris discorria sobre ato normativo formalmente válido, i. e., lei em seu aspecto formal. Assim, a instituição de tributo somente terá validade se esta vier de norma jurídica válida; para validade, subentende-se que esta deva ser promanada por agente legiferante competente (competência originária), observância do procedimento de feitura (processo legislativo), e compatibilidade entre o conteúdo da norma inferior ao conteúdo da norma superior (compatibilidade hierárquica) (2).
E o que dizer das Medidas Provisórias? Podem estas ser fontes de obrigações tributárias, seja principal ou acessórias?
Antes de adentramos ao mérito, cabe preliminarmente delinearmos algumas divagações sobre tais institutos.
DA MEDIDA PROVISÓRIA
A Medida Provisória é um Projeto de Lei, com força de lei. Seus aspectos jurídicos confunde-se com a própria lei, mas com naturezas dissolúveis.
Incorporadas ao ordenamento jurídico pátrio pela Constituição Federal de 1988 (art. 62), tem sua inspiração nos decreti-legge italianos. Certamente optaram por nomenclatura diversa devido as más lembranças adquiridas nos vinte anos de regime militar.
Notamos liminarmente que, o legislador lançou mão da ficção jurídica em instituir que tais medidas gozem da impositividade, aderência e coerção obrigatórias que são próprias de lei, sem com isso confundir-se a ela – retentores dos seus efeitos, não de suas formas.
Um aspeto peculiar da Medida Provisória, é que esta “normatização” advém de um órgão alienígena à ação legislativa: o Poder Executivo. Tal capacidade normativa é tida para alguns como ação agressora aos direitos do cidadão haja vista que a invasão de competência gera um desequilíbrio político, desencadeando, assim, a quebra da harmonia dos poderes e gerando também uma perspectiva de ditadura republicana. Outros, porém, simplesmente compreendem tais como atos complementares e integradores dos órgãos estatais – Executivo, Legislativo e Judiciário.
Ainda, podemos apontar duas outras características destas medidas administrativas: a imediatividade e a temporaneidade.
O princípio da imediatividade visa a efetivação de suas determinações no instante de sua adoção, dispensando a formalidade temporal comum às normas jurídicas ordinárias – vacatio legis (art. 1º, LICC).
Outra característica é a da temporaneidade. A Carta Magna (art. 62, § único) estatui o espaço temporal de 30 (trinta) dias para que o Congresso Nacional se reuna e vote a Medida Provisória. Se esvaído tal prazo e não levado à apreciação do legislativo federal esta perde sua eficácia, fincando a cargo do Congresso disciplinar seus derivados efeitos. Deste modo, tal “atividade legislativa” é precária, pois, em regra, a praxis legislatore é a do prazo indeterminado das normas.
A Constituição Federal (art. 62) prescreve três pressupostos que devam ser observados para que o Executivo possa lançar-se na prerrogativa de normatizar, são eles: a) caso de relevância, algo que se põe como essencial, inexoravelmente indispensável para um determinado fim social almejável; b) urgência, na tomada de determinadas atitudes, tendo em mente que a não agressão ao princípio montesquiano pode desencadear resultados mais onerosos que o recorrido; e c) provisoriedade dos atos convalescidos, pois uma Medida Provisória que seja adotada para produzir efeitos impossíveis de serem desfeitos – se esta não for transformada em lei, estará impossibilitando sua volta à situação jurídica anterior (statu quo ante).
Alguns são os limites materiais da Medida Provisória dados pela própria Constituição, v. g., não podes estas, disciplinar assuntos de competência propriamente investida a outro, como na competência exclusiva do Congresso Nacional de normatizar sobre subsídios do Presidente da República (art. 49, VIII CF/88), da Câmara dos Deputados e do Senado na instituição de regulamento interno das respectivas casas legislativas (arts. 51, III e 52, XII Constituição Federal de1988).
Diante das inúmeras excursões do Poder Executivo no campo do Direito Tributário, através das Medidas Provisórias, devemos desde já, preconizar a sua impossibilidade, não só devido aos princípios da legalidade e anterioridade como da própria natureza do tributo (como nos casos dos depósitos compulsórios, que só podem ser instituído através de Lei Complementar – art. 148 da CF/88).
MEDIDA PROVISÓRIA FACE AO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
Concomitante ao princípio constitucional (art. 150, I), o Código Tributário Nacional em seu art. 3º prevê a necessidade de lei (stricto sensu) para devida geração de obrigação tributária.
Divergem os doutrinadores na concepção do termo lex, a qual faz menção o Código Tributário Nacional, para devida incidência tributária. Seria mister esta enquadrar-se nos pressupostos da tipificação tributária ou nos pressupostos formais e genéricos da lei?
A priori, esta deve satisfazer os pressupostos formais e genéricos para posteriormente enquadrar-se nos pressupostos específicos da lei tributária. Ou seja, observa-se os quesitos genéricos para validação de uma lei (agente capaz, processo legislativo e compatibilidade hierárquica) para a posteriori verificar-se os pressupostos específicos da lei tributária (hipótese de incidência, base de cálculo e sujeitos). Ademais, o princípio da reserva legal, em que prevê que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (art. 5º, II da CF/88), solidifica nosso raciocínio quanto a obrigatoriedade da estrita formalidade das normas tributárias.
Ex posit, temos concluído que há necessidade de atos normatizador que preencha tanto os quesitos formais-genéricos quanto os específicos da lei tributária. Tal requisito é a base de sustentação e plenificação da segurança pública. Pois, através deste o cidadão sabe que não ocorrerá instituição de tributo ou sua majoração a não ser por intermédio de lei, aprovada por seus representantes no Órgão Legislativo.
Ora, a Medida Provisória, como vimos no início, tem força de lei, mas não o é devido a inexistência de pressupostos formais genéricos. Em análise mais profícua, apercebemo-nos a inexistência do pressuposto agente competente nesta espécie normativa – considerando não ser o legislativo prolator das mesmas. Quanto a coexistência ou não do pressuposto processo legislativo na Medida Provisória, cremos que é relativo tal entendimento. Pois, para cada ato normativo (Lei ordinária, Lei complementar, Lei Delegada, etc.) há um rito a ser observado, como também há na Medida Provisória. Atendidas as formalidades de sua produção, poderíamos discorrer a favor de sua existência. Em outra vertente, questionamos se a falta do pressuposto agente competente não afastaria automaticamente a do processo legislativo.
Qual seja a posição adotada, cremos que afastada ao menos um dos pressupostos formais-genéricos da lei descaracterizá-la-á, imolará sua validação deixando assim de ser lei (stricto senso). Assim, com a fundada descaracterização de lei, a Medida Provisória não poderá ser instrumento de criação ou majoração de tributo.
Devido a natureza de alguns tributos o constituinte abriu exceção ao princípio da legalidade, somente conquanto a majoração de alíquotas em determinados impostos, tendo em vista seu caráter extrafiscal.
O art. 153, § 1º da Constituição Federal de 1988, prevê a possibilidade do Poder Executivo, nos termos da lei, alterar alíquotas dos tributos: Imposto sobre Importação (II), Imposto sobre Exportação (IE), Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e Imposto sobre Operações Financeiras (IOF). Tendo o Executivo a faculdade de alterar tais impostos, o pode fazer através de Medidas Provisórias – o único caso em que vemos sua atuação na esfera de Obrigação Tributária: majorando alíquotas. Entretanto, a praxes presidencialista tem mostrado que tais ações se dá mediante o Decreto presidencial.
MEDIDA PROVISÓRIA FACE AO PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE FISCAL
A Constituição Federal (art. 150, III alínea b) e o Código Tributário Nacional (art. 104) veda expressamente que o Estado cobre tributos no mesmo exercício financeiro que o instituiu ou aumentou. A norma criadora de tributo, além do dever de constituir-se lei, possui uma certa particularidade quanto sua vigência/eficácia. (3)
O exercício financeiro, obedecendo o calendário civil, inicia-se em 1º de janeiro e finda-se no dia 31 de dezembro. Assim, uma norma tributária promulgada em meados de junho, só terá efeito no 1º de janeiro subsequente. Tal princípio vem a resguardar o contribuinte contra a surpresa de instituições e/ou alterações tributárias ao longo do exercício financeiro, prejudicando, assim, o planejamento de suas atividades.
Haja vista o curto prazo de existência outorgada pela Constituição, face o princípio da anterioridade fiscal, cremos na total inidoneidade da Medida Provisória em instituir Obrigação Tributária.
Porém, uma Medida Provisória editada no dia 31 de dezembro terá validade quando da entrada do 1º de janeiro subsequente – neste caso ocorre a observância do princípio da anterioridade. Há, em caso semelhante, a possibilidade da instituição de tributos via Medida Provisória?
Absolutamente, não. Apesar da observação do princípio da anterioridade, a norma instituidora ainda é carente do princípio da legalidade estabelecido nos arts. 5, II, 150, I da Constituição Federal e art. 3º do Código Tributário Nacional.
A Aplicabilidade de Medida Provisória em Obrigação Tributária, e a quebra/suspensão do princípio da anterioridade, somente ocorre nos casos de majoração das alíquotas dos tributos de caráter extrafiscal pré ordenados na Constituição.
MEDIDA PROVISÓRIA EM OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA ACESSÓRIA
Correntes doutrinárias modernas e liberais, apregoam a possibilidade e a viabilidade da instituição de Obrigação Tributária Assessória através de atos do Poder Administrativo estatal, admitindo, assim, a quebra dos princípios constitucionais.
Em dissonância ao nosso pensamento, o digníssimo Prof. Celso Ribeiro Bastos ensina que esses deveres, inicialmente, podem ser criados por lei, entendida aqui esta palavra na sua acepção lata (incluindo portanto Leis Delegadas e as Medidas Provisórias). A dúvida maior se põe com relação à possibilidade de a Administração Pública criar esses deveres instrumentais. (4) Bastos alinha-se a uma posição liberal como Carrazza, baseando-se na idéia de que as obrigações acessórias são algo de importância diminuta, e que, portanto, decretos, portarias ou atos administrativos em geral seriam aptos a torna-las exigíveis(5).
Quando estes doutos senhores advogam a possibilidade de atos normativos administrativos, como as Medidas Provisórias, serem aptos para instituição de Obrigação Acessória não consideram que tal exceção doutrinária poderá dar ensejo a absurdos ônus tributários ao contribuinte.
No momento da instituição de Obrigação Acessória a própria norma instituidora prevê o quantum da pena pecuniária, quando da ocorrência de sua incidência. Assim, a promanação de Obrigação Tributária Acessória através de ato administrativo, pode dar ensejo a atrocidades fiscais no planejamento financeiro do contribuinte.
Ao nosso ver, data venia, não só existe a impossibilidade legal quanto a impropriedade política de aplicação da Medida Provisória em Obrigações Tributárias Assessórias.
CONCLUSÃO
Analisados e discutidos os princípios constitucionais da tributação, compreendemos a impossibilidade legal da utilização de Medida Provisória em instituição de Obrigação Tributária Principal ou Assessória. Há, deveras, um único caso onde o Executivo pode utiliza-la em tal matéria: a majoração dos impostos com caracter extrafiscal.
Tal posição legal que outrora defendemos, vem acobertado de uma visão sócio-política da evolução democrática em nosso país. Seríamos indubitavelmente levianos ao permitir uma ferramenta constitucional legislativa in consensu aos propósitos do Executivo. Destituir os militares do poder político e entrega-lo somente a um homem, um Poder, fatalmente condenariamo-nos a uma ditadura constitucional onde o Executivo subjugaria não somente outros poderes como nossos anseios políticos e morais legados por uma Constituição democrática. De forma alguma podemos conceber a idéia do Constituinte em compactuar-se a tal senso ditatorial.
É mister a urgente regularização – por emenda constitucional – da utilização das Medidas Provisórias editadas pelo Executivo, para que não continuemos a assistir a desmoralização da Constituição e seus princípios norteadores do Direito pátrio. Se não, deveremos concordar com as palavras do demagogo Fernando Henrique Cardoso e reconhecer que no país só existe um poder de verdade, o do presidente!!!
BIBLIOGRAFIA
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Financeiro e de Direito Tributário, 7º ed.; São Paulo-SP: Saraiva, 1999.
BRASIL. CONSTITUIÇÃO DE REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, 21º ed.; São Paulo-SP: Saraiva, 1999.
BRASIL. CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL, 29º ed.; São Paulo-SP: Saraiva, 1999.
RIBEIRO, Cláudio Luiz Frazão. A Medida Provisória Face aos Princípios da Legalidade e da Anterioridade. Artigo publicado na Home-Page http://www.teiajuridica.com/.
*Kleber de Souza Silva
Acadêmico de Direito na Universidade do Estado de Mato Grosso, servidor público em Cáceres (MT)