I – Introdução
A contratação eletrônica talvez represente uma das maiores evoluções do crescimento vertiginoso da Internet no Brasil, e em todo o mundo.
Dia após dia, cada vez mais pessoas naturais, e jurídicas, realizam compras, e os mais variados negócios, pelo meio eletrônico. Esse novo meio de negociação, que utiliza a Internet, recebeu no mercado a denominação de comércio eletrônico, que engloba a oferta, a demanda e a contratação de bens, serviços e informações.
Noções tradicionais de territorialidade e temporalidade não mais são referência principal das relações estabelecidas através do meio virtual.
Nesse contexto, têm levantado maior atenção dos operadores do direito algumas questões tais como: a) a definição e conceituação dos contratos eletrônicos, bem como as formas e finalidades de sua celebração; b) o valor probatório dos contratos eletrônicos e a validade de tais transações; c) a formação dos contratos eletrônicos; d) a adequação dos contratos eletrônicos ao Código de Defesa do Consumidor; e) os contratos eletrônicos internacionais.
Assim, o presente trabalho deter-se-á sobre tais questões, entre outras de menor relevo, porém interligadas, inevitavelmente.
II – Definição e conceituação
Embora criticado pelo subjetivismo, o conceito de Clóvis Beviláqua, baseado no art. 81 do Código Civil de 1916, de que o contrato “é o acordo de vontade entre duas ou mais pessoas com a finalidade de adquirir, resguardar, modificar ou extinguir direito”1, bem serve para o estudo proposto, que, em virtude da característica contratual (eletrônica), levanta grandes dúvidas do ponto de vista da declaração da vontade negocial.
Seguindo esse ponto de vista, podemos dividir a contratação eletrônica em dois grupos distintos, quais sejam, a contratação automática e a contratação interpessoal. A primeira é aquela que ocorre totalmente automatizada ou, ainda, aquela em que a relação negocial é estabelecida entre uma pessoa e um sistema previamente programado. Já a segunda, é a estabelecida diretamente entre duas pessoas, via Internet.
Obviamente, a contratação totalmente automatizada, aquela que dispensa qualquer intervenção humana, suscita maiores questionamentos jurídicos, exatamente pela ausência de qualquer vontade no momento da celebração dos negócios jurídicos.
A fim de facilitar a resolução de tal problemática, é recomendável a adoção do modelo proposto por Marisa Delapieve Rossi2, que divide as formas de contratação eletrônica em três categoriais, e não duas, como anteriormente proposto:
a) Contratações Intersistemáticas – Aquelas em que a contratação eletrônica se estabelece entre sistemas aplicativos pré-programados, sem qualquer ação humana, utilizando a Internet como ponto convergente de vontades preexistentes, estabelecidas em uma negociação prévia. Tal modalidade ocorre predominantemente entre pessoas jurídicas, para relações comerciais de atacado.
b) Contratações Interpessoais – Já tratadas anteriormente neste trabalho, e nas quais, previamente à contratação eletrônica, existe uma comunicação eletrônica (através de correio eletrônico, ou salas de conversação, por exemplo), para a formação da vontade e instrumentalização do contrato, que é celebrado tanto por pessoas físicas quanto jurídicas. Diferentemente da contração intersistemática, não é simples forma de comunicação de uma vontade pré-constituída, ou de execução de um contrato concluído previamente.
c) Contratações Interativas – Esta talvez seja a mais usual forma de contratação utilizada pelo comércio eletrônico de consumo, uma vez que resulta de relação de comunicação estabelecida entre uma pessoa e um sistema previamente programado. Trata-se de típico exemplo de contratação a distância, em que os serviços, produtos e informações são ofertados, em caráter permanente, através do estabelecimento virtual (site), que é acessado pelo usuário, o qual manifesta sua vontade ao efetuar a compra.
III – Forma e finalidade
Devemos dividir os contratos informáticos também quanto à sua finalidade, e teremos aqueles celebrados através de meios eletrônicos ou aqueles cuja execução ocorre por meios eletrônicos.
Os celebrados por meios eletrônicos são aqueles em que a manifestação da vontade ocorre via Internet, anteriormente citados (intersistemáticos, interpessoais e interativos). Já aqueles cuja execução ocorre por meios eletrônicos são, muitas vezes, firmados em meio físico (papel), porém têm seu cumprimento vinculado à Internet (contrato de hospedagem de informação, por exemplo).
Portanto, quanto à forma, podem ser eletrônicos, obviamente, ou, até mesmo, firmados em meio físico (papel), embora se enquadrem no conceito de contratos eletrônicos.
Assim, o profissional do direito envolvido na elaboração de qualquer contrato eletrônico deve ter especial atenção ao objeto do contrato, estabelecendo, com clareza, a forma da manifestação da vontade das partes, a finalidade da contratação (objeto), e como será o seu cumprimento.
IV – O valor jurídico do contrato eletrônico
Os contratos eletrônicos, que nada mais são que uma espécie de documento eletrônico que consubstancia um negócio jurídico, apresentam, ainda, grande discussão quanto à sua validade, uma vez que não podem ser efetivamente tratados como documentos jurídicos.
Dentre as questões mais polêmicas, temos a identidade das partes (falsidade ideológica, incapazes etc.), a integridade do conteúdo do contrato (possibilidade de alterações), e a falta de assinatura de próprio punho dos contratantes, talvez um dos maiores problemas envolvendo os contratos eletrônicos.
No entanto, embora o contrato eletrônico seja um documento com menor formalidades que o contrato escrito, historicamente, nossos doutrinadores têm definido o documento como algo material, uma representação exterior do fato que se quer provar.
Nesse contexto, é aplicável, perfeitamente, a definição de CHIOVENDA, para quem “documento, em sentido amplo, é toda representação material destinada a reproduzir determinada manifestação do pensamento, como uma voz fixada duradouramente”3.
Assim, extraímos duas conclusões básicas: a) o contrato eletrônico, igualmente ao físico, enquadra-se no conceito legal de documento, já que pode representar um ato ou fato jurídico; b) a validade do contrato eletrônico depende da capacidade de mantê-lo íntegro e não deteriorável, visto que, sendo um suporte sujeito a adulterações imperceptíveis, perde parte de sua confiabilidade.
Com efeito, embora essa fragilidade relativa, existem mecanismos nas normas brasileiras que permitem sustentar a validade dos documentos eletrônicos, o que é necessário, uma vez que, “se o jurista se recusar a aceitar o computador, que formula um novo modo de pensar, o mundo, que certamente não dispensará a máquina, dispensará o jurista. Será o fim do Estado de Direito e a democracia se transformará em tecnocracia”4.
Conforme sustenta José Rogério Cruz e Tucci, “em nosso país conquanto ainda inexistam regras jurídicas a respeito desse importante tema, permitindo-se apenas na órbita das legislações fiscal e mercantil o emprego do suporte eletrônico, não se vislumbra óbice à admissibilidade deste com meio de prova. Com efeito, o art. 332 do CPC preceitua que são hábeis para provar a verdade dos fatos, ainda que não nominados, todos os meios legais e moralmente legítimos. Assim, a admissibilidade e aproveitamento de meios de prova atípicos deflui, também, do princípio da livre apreciação dos elementos de convicção: Justamente admissão destas provas realça o critério mais seguro para saber se um sistema processual trilha o princípio da livre apreciação judicial da prova”5.
Assim, como anteriormente exposto, é claro o cabimento do documento eletrônico como prova, porque a própria legislação em vigor (art. 332 do CPC) o permite fazer.
No entanto, ainda que possa ser o documento eletrônico equiparado ao documento tradicional, falta-lhe a identificação de sua autoria, já que lhe falta a assinatura.
Nesse ponto, há de se aplicar o art. 371, inciso III, do Código de Processo Civil, o qual dispõe que a autoria do documento é normalmente identificável por meio da assinatura, salvo nos casos em que o documento não costume ser assinado.
“Mas, em casos tais, é evidente que algum elemento de prova deve nos levar a identificar o seu autor, fato que não se presume. Assim, mesmo nestas circunstâncias, aquele que juntar documento não subscrito, se contestada a autoria, terá o ônus de prová-la”6.
Desta feita, está relativamente resolvido, sem necessidade de maior criação legislativa, o problema da validade do documento eletrônico e da prova de sua autoria, porém persiste o problema da veracidade de seu conteúdo, que é absolutamente vulnerável a adulteração, sem deixar rastros, o que o torna, ao mesmo tempo, prova frágil para o processo, de modo a ser recomendável atribuir ao documento eletrônico, ou contrato informático, unicamente, caráter indiciário de início de prova.
Por fim, outro aspecto que merece consideração é a possibilidade da utilização de assinatura digital, ou criptografia, o que impossibilitaria, tecnicamente, a adulteração do conteúdo do documento eletrônico, atribuindo a este uma eficácia probatória plena, não fosse a ausência de legislação. Porém, com pequeno esforço legislativo na aprovação de um dos inúmeros projetos de lei que versam sobre comércio eletrônico, encontrados no nosso Poder Legislativo, o documento eletrônico, um dia, poderá ser efetivamente equiparado ao documento escrito.
V – A formação dos contratos eletrônicos
Para que tenhamos um contrato válido, é necessário que haja um acordo de vontades formalmente concluído. Assim, vale analisar a validade da manifestação da vontade das partes no contrato eletrônico, o que compromete todo o processo de formação do vínculo contratual.
Consoante o disposto no art. 129 do Código de Processo Civil7, prevalece o princípio da ausência de solenidade na celebração dos contratos em geral, o que inclui os eletrônicos, bastando o simples acordo de vontades.
Já essa manifestação da vontade pode ser tácita, desde que a lei não exija forma expressa. Desta feita, delimitamos que a questão é saber se é ou não válida a declaração de vontade emitida por meio de comandos eletrônicos.
Pelo entendimento doutrinário, a manifestação da vontade pode verificar-se de qualquer maneira inequívoca, de modo que o meio eletrônico é hábil à formação do vínculo contratual, desde que se permita identificar o agente.
Porém, para delimitar, com exatidão, o momento da formação do contrato, temos de verificar a modalidade da contratação (entre presentes ou entre ausentes).
Sendo uma contratação entre presentes, a proposta é obrigatória se imediatamente aceita, momento em que se conclui a fase negocial. Na contratação entre ausentes, o contrato somente está acabado quando, após prazo razoável, a aceitação é expedida (arts. 127 e 1.086 do Código Civil).
Sustentamos que o contrato eletrônico é realizado entre presentes nas situações de transmissão instantânea, e realizado entre ausentes nas em que a formação do vínculo é diferida no tempo8.
O momento da formação do contrato eletrônico, portanto, pode diferir, dependendo da simultaniedade, ou não, da declaração da vontade das partes.
VI – O CDC e os contratos eletrônicos
A grande maioria dos contratos eletronicamente realizados é de consumo (comércio eletrônico), de modo que vale especial atenção às disposições do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, que são, obviamente, aplicáveis às compras via Internet.
As mais importantes disposições da Lei de Defesa do Consumidor aplicáveis ao ambiente virtual são, justamente, o dever de informação e o princípio da boa-fé.
O dever de informar, reflexo do princípio da transparência (art. 6º, III, cco art. 4º do CDC), exige a prestação de informações claras e corretas sobre as características do produto ou do serviço oferecido ao consumidor (art. 31), bem como sobre o conteúdo do contrato a ser “assinado” (art. 46).
Portanto, preventivamente, o fornecedor deve sempre prestar as informações o mais detalhadamente possível para o consumidor, até para prevenir eventual responsabilidade, o que demonstrará, inequivocamente, sua boa-fé, que tem como reflexo o direito de arrependimento para as vendas fora do estabelecimento físico (art. 49).
A impessoalidade e satisfação incerta da contratação via Internet, impõem, sem qualquer dúvida, o dever de informação do fornecedor, sob pena de total nulidade do contrato, que poderá ser declarada em juízo.
Nesse ponto, cabem certas considerações sobre a responsabilidade do intermediário (provedor de acesso) pelas transações comerciais efetuadas no ambiente virtual. A princípio, a ele não subsiste qualquer responsabilidade, ressalvada a hipótese de causar prejuízos às partes de uma contratação eletrônica, por ação ou omissão como prestador de serviços de conexão e transmissão de informações, quando sua responsabilidade deverá ser imposta.
VII – Contratos eletrônicos internacionais
Uma das maiores inovações da Internet é, justamente, a possibilidade de contratação entre partes de países distintos, abolindo as tradicionais noções de territorialidade. Essa nova modalidade de contratação internacional, contudo, traz alguns problemas, mas que são facilmente resolvidos pela legislação em vigor.
A partir do momento em que há a formação de um contrato eletrônico com o fornecedor estrangeiro (aquele que não tem sede física no Brasil), cria-se, obviamente, o adimplemento da obrigação.
Essa obrigação gerada (entrega do produto ou serviço, sem qualquer vício ou defeito danoso à saúde) quase sempre deverá ser adimplida no Brasil, já que a compra via Internet tem a entrega domiciliar como sua maior comodidade e inovação.
Com efeito, estabelece o art. 88, inciso II, do Código de Processo Civil que “é competente a autoridade judiciária brasileira quando no Brasil tiver de ser cumprida a obrigação”.
Em contrapartida, o art. 101, inciso I, dó Código de Proteção e Defesa do Consumidor, aplicável em contratos internacionais de consumo, estabelece a possibilidade de opção pelo consumidor do domicílio em que deseja demandar a outra parte.
Nesse contexto, eventual medida judicial da parte contratante nacional, em face da internacional, poderá ser movida no Brasil ou no estrangeiro, à escolha da parte nacional, caso se trate de relação de consumo.
Definido o foro, passemos à análise da lei aplicável. É certo que o art. 9º, da Lei de Introdução ao Código Civil estabelece a aplicabilidade da lei do país em que se constituiu a obrigação, porém no § 1º do mesmo artigo há previsão de que, “destinando-se a obrigação a ser executada no Brasil e dependendo de forma essencial, será esta observada, admitidas as peculiaridades da lei estrangeira quanto aos requisitos extrínsecos do ato”.
Portanto, o § 1º do art. 9º da LICC traz fundamento para a aplicação do direito brasileiro (CDC, por exemplo), mas há de se ter cautela, uma vez que, embora movida a ação no Brasil, a execução de eventual sentença, obrigatoriamente, dar-se-á no país de origem da parte estrangeira, devendo ser observados, de forma analógica, os requisitos do art. 15 da Lei de Introdução ao Código Civil, sob pena de restrições da eficácia na sentença em solo estrangeiro.
VIII – Conclusão
Conclui-se, pois, que a modalidade de contratação eletrônica cresce a cada dia no Brasil, suscitando grandes dúvidas, que aos poucos têm sido resolvidas pelos operadores do direito, mas, ainda assim, seria necessária certa dose de legislação para regular a tão nova modalidade negocial, objetivando conferir maior garantia jurídica às partes contratantes, atendendo, efetivamente, o princípio da estabilidade da ordem jurídica e social.
Porém, enquanto tal estabilidade não é conferida por lei própria, cabe aos profissionais do direito a análise minuciosa de todo e qualquer detalhe existente na elaboração de um contrato eletrônico, sempre objetivando os princípios basilares da livre manifestação de vontade e da obrigatoriedade do cumprimento do contrato (pacta sunt servanda), conferindo integral segurança jurídica às partes contratantes, e, assim, mantendo a ordem jurídica e social, sem qualquer desequilíbrio ou má-fé.
Notas:
1. Apud Fran Martins, Contratos e Obrigações Comerciais, Rio de Janeiro: Forense, 2000.
2. Marisa Delapievi Rossi, “Aspectos Legais do Comércio Eletrônico – Contratos de Adesão”, Anais do XIX Seminário Nacional de Propriedade Intelectual da ABPI, 1999, p. 105.
3. Instituições de direito processual civil, v. 3, p. 127.
4. Liliana M. Paesani, citando Borruso, Direito de Informática, São Paulo: Atlas, 1998, p. 14..
5. Os meios moralmente legítimos de prova. Ajuris, 39/84 e ss.
6. Augusto Tavares Rosa Marcacini, “O documento eletrônico como meio de prova” – http://pessoal.mandic.com.br/marcacini.
7. Art. 129, CPC – “A validade das declarações de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir”.
8. vide Miriam Junqueira, Contratos Eletrônicos, Rio de Janeiro: Ed. Maud, p. 23.
* Marcos Gomes da Silva Bruno
Especialista em Direito Eletrônico e Professor convidado da Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado e da PUCSP. Advogado