O princípio da bagatela aplicável no Processo Civil

Vige em sede penal o princípio da bagatela, fundado no Direito Romano, que o moldou na conhecida fórmula de minimis non curat prætor. A teor desse aforismo a justiça não deve ocupar-se com questões de somenos. Em algumas disposições codificadas ele faz parte do tipo penal, sob a espécie do pequeno valor, ademais de eventualmente utilizado como razão de decidir. Lembramo-nos de acórdão bastante antigo do STF, relatado pelo Ministro Nélson Hungria, absolvendo funcionário que se apoderara de umas poucas aparas de madeira e com elas fizera uma casinha para o seu cachorro.

No Cível esse princípio não existe, daí ser apenas mui raramente versado nos pretórios. No entanto, sua consideração deveria também permear as lides civis, por isso que, sem dúvida, constitui malbarato da atividade jurisdicional movimentá-la em torno de questões de valor ínfimo. Por isso, as pautas do Cível padecem de indestrinçável atravancamento, que ainda mais se agrava porque cerca de 80% da população brasileira se inclui na classe dos carentes.

Recentemente deparamos com dois acórdãos em que abordado o princípio da bagatela, de maneira clara e sem rebuços. O paradoxal é que um desses arestos, do STF, desatendeu-o, enquanto o outro, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, o acolheu. Vejamos cada hipótese de per si.

No RE 347.528/RJ, Relator o Ministro Sepúlveda Pertence, foi afastada a pena de deserção aplicada em recurso interposto contra decisão proferida pelo Colégio Recursal dos Juizados Especiais do Estado do Rio, que acolhera pedido de indenização por dano moral. O extraordinário fora declarado deserto pela insuficiência de R$ 0,009 (nove milésimos de Real) no preparo, não obstante a recorrente tê-lo complementado com um centavo, após notificada pela Secretaria do Tribunal a quo.

O argumento adotado no acórdão foi o de que a penalidade de deserção implicara em negativa de prestação jurisdicional, uma vez que a determinação do recolhimento não poderia ser cumprida pela recorrente, porquanto não existe no sistema monetário pátrio o valor de um milésimo de Real.

Ora, a despeito do apreço que merecem as decisões do Pretório Excelso, a fundamentação não convence, em termos de realidade factual da justiça brasileira hodierna. Acolher um recurso da excepcionalidade do extraordinário para corrigir matéria de preparo centrada em um milésimo de Real não se afigura prestigiar o bom direito. Tratando-se de causa aforada em Juizado Especial, de resto, a questão se capitulava necessariamente como de valor miúdo, pois caso contrário teria sido intentada no juízo comum.

Logo, o acórdão em comento atendeu mais à forma do que à substância do processo. Sabe-se que o STF firmou orientação no sentido da admissibilidade do recurso extraordinário e do habeas corpus das decisões dos Juizados Especiais, ao passo que o STJ assentou o ponto de vista contrário, em sede do recurso especial. Óbvio que o STF assim procede porque lhe cabe velar pela autoridade da Constituição, porém não deixa de ser estranho que questões de pequena monta encontrem ádito à mais alta Corte do País, sob color de versarem temas constitucionais. Isso nada mais exprime, com a devida vênia, do que um dos aspectos da irracionalidade que preside a nossa sistemática recursal.

Na verdade, nossa Carta Política é detalhista, versa todo o juridicamente imaginável e se compraz em formular soluções para os problemas os mais recônditos do inter-relacionamento social, de modo que qualquer pendência pode facilmente comportar enquadramento em algum de seus dispositivos. Para isso, basta a criatividade dos advogados.

No outro acórdão, a 4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro aplicou, como razão de decidir, o princípio da bagatela. Fê-lo trancando execução fiscal de crédito inferior a R$ 1.000,00, em que a penhora havia recaído sobre carrinho de churrasco e hot-dog, usado na atividade laborativa do executado. Ou seja, o Tribunal deu interpretação pro misero ao art. 649, VI, do CPC, que declara serem absolutamente impenhoráveis os utensílios e os instrumentos necessários ou úteis ao exercício de qualquer profissão.

A decisão abordou também outro argumento, que igualmente diz bem da falta de racionalidade que afeta o sistema recursal entre nós. O órgão julgador afastou a incidência, à hipótese, da Lei n. 9.469/97, sobre intervenção das pessoas jurídicas de direito público, independentemente da demonstração de interesse jurídico, a fim de esclarecer questões de fato e de direito, nas causas cuja decisão possa ter reflexos, ainda que indiretos, de natureza econômica.

A toda obviedade, também nesse tópico andou certo o acórdão local, porquanto a execução sobre bem de valor diminuto não pode ter efeitos na ordem econômica, nem jamais passou pela cabeça do legislador que os pudesse ter.

Quanto à decisão em prol do executado, ela só está a merecer encômios. Toda lei, em sua abstração, mostra-se hábil a incidir sobre uma multiplicidade de situações, porém na concretude da vida nem sempre ela deverá fazê-lo. Ao julgador cabe, inquestionavelmente, aplicar a lei aos casos concretos, pois nisso reside a essência da atividade jurisdicional, no cível ou no crime. A lei não fixa senão parâmetros genéricos, e só o labor do juiz a adapta às circunstâncias da espécie julgada.

* Juary C. Silva

Juiz de Direito aposentado e autor da obra Elementos de direito penal tributário, pela Saraiva.

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