Marcelo Picinin
O art. 305 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB, Lei no 9.503/97) define o crime de fuga do local do acidente como sendo “afastar-se o condutor do veículo do local do acidente, para fugir à responsabilidade penal ou civil que lhe possa ser atribuída”, cominando pena de detenção, de seis meses a um ano, ou multa. Integram o tipo em questão os seguintes elementos:
a) existência de acidente de trânsito causado pelo agente: o motorista deve ter provocado (dado causa) de acidente automobilístico;
b) fuga do local do acidente: o agente, após o acidente, deve evadir-se do local;
c) probabilidade de responsabilização penal ou civil: em decorrência do acidente, deve necessariamente existir a efetiva probabilidade de que o agente venha ser responsabilizado criminal ou civilmente. Além disso, o agente deverá ter ciência de que sua conduta, causadora do acidente, poderá causar-lhe imputações civis ou criminais. Nesse aspecto, o conduta é dolosa, pois o sujeito ativo deseja efetivamente retirar-se do local do acidente com o intuito de, futuramente, não ser por ele responsabilizado.
Opina-se no sentido de que o art. 305 do CTB é inconstitucional, pois pode-se perceber claramente que a prática da conduta nele descrita perfaz auto-incriminação do agente. Com efeito, o art. 8º, nº 2, “g”, do Pacto de San José da Costa Rica, de 22/11/1.969 (originário da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo nº 27, de 25/09/1.992, e promulgada pelo Decreto nº 678, de 06/11/1.992), inserido nas garantias judiciais conferidas à pessoa acusada de crime, diz que ela “tem direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada”. Pode-se conceituar essa disposição como garantia judicial individual do acusado, qual seja, a prerrogativa de não ser obrigado a produzir prova contra si mesmo nem de declarar-se, em momento algum, culpado do fato que se lhe imputa.
Diante dessa premissa, deve-se atentar ao art. 5º, § 2º, da Constituição Federal, que dispõe: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Sendo princípio fundamental da República o Estado Democrático de Direito (CF, art. 1º, “caput”) e tendo ela se comprometido a atentar aos direitos e deveres constantes do Pacto de San José da Costa Rica, conclui-se que vige no ordenamento jurídico brasileiro a garantia conferida ao acusado de não se auto-incriminar, de não produzir prova contra si mesmo nem de declarar-se culpado.
Grosso modo, entende-se que a auto-incriminação do acusado e a produção de prova contra ele mesmo constituem expressões sinônimas, já que uma e outra levam, sempre, à informação da culpa do réu, ônus que, como é cediço, cabe sempre ao órgão acusador, seja ele qual for.
A produção de provas contra o acusado não é ônus que lhe pertence e, por isso, não lhe pode ser exigido. Cabe aos entes oficiais (polícia judiciária, Ministério Público) a incumbência de coligir elementos que sirvam de base à conclusão de que o réu praticou determinado fato criminoso.
Vale ressaltar que o art. 14, nº 3, “g”, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de Nova Iorque também estipula que nenhuma pessoa “será obrigada a depor contra si mesma, nem confessar-se culpada”, sendo que esse diploma também foi adotado pelo Brasil (aprovação pelo Decreto Legislativo nº 266, de 12/12/1.991, e promulgação pelo Decreto nº 592, de 06/07/1.992).
Intimamente ligados à proibição de auto-incriminação estão os princípios do contraditório e ampla defesa e da presunção de inocência, previstos, respectivamente, nos incs. LV e LVIII do art. 5º da CF. Pelo primeiro deles, garante-se a todo acusado a oportunidade de contraposição à acusação que lhe é feita, permitindo-se, para tanto, o mais completo exercício do direito de defe-sa; já o segundo constitui a garantia individual dada ao acusado de ser considerado inocente até o trânsito em julgado de decisão condenatória, isto é, da decisão que reconhece a autoria de um delito e aplica a seu autor a pena correspondente.
Agindo de modo a não contrariar o comando legal, isto é, permanecendo no local do acidente, o agente terá um comportamento que lhe será altamente prejudicial no tocante à prova da prática do crime. De fato, levando a questão ao campo prático, será verificado que, ocorrendo um acidente por obra do acusado, deverá ele aguardar a chegada de policiais e outros que devam ali comparecer (p. ex., peritos), transmitindo informações que possam eventualmente ser usadas contra ele ou mesmo confessando a autoria, o que é expressamente vedado, como visto.
Ora, se o homicídio qualificado (art. 121, § 2º, do Código Penal), o mais grave dos crimes, não pune o delinqüente que se evade do local onde praticou o fato tido como criminoso, nem há nesse sentido agravante genérica no art. 61 do mesmo “codex”, não se vê razão alguma para que se imponha ao motorista a obrigação de aguardar no local do acidente a chegada das autoridades competentes. Houve, nesse aspecto, um enorme contra-senso do legislador, em detrimento de toda a “ratio legis” insculpida no conjunto de leis penais brasileiras.
Ao demais, a inconstitucionalidade do artigo em comento também encontra ressonância na expressão “para fugir à responsabilidade penal ou civil que lhe possa ser atribuída”. Quanto a ela, vale dizer que a infelicidade do legislador novamente brotou de forma precipitada e exasperada. Nenhuma norma penal pátria traz em seu texto disposição semelhante. A CF, fonte que confere legitimidade à legislação inferior e na qual esta encontra justificação, não arrola em suas garanti-as individuais a obrigação do criminoso de aguardar, no local do crime, após sua prática, a chegada de alguém que possa imputar alguma responsabilidade ao agente.
De ver-se que a busca, em juízo ou fora dele, da delimitação da responsabilidade do agente nas esferas criminal e cível somente deve ser atribuída ao respectivo titular do interesse jurídico lesionado. No âmbito penal, por ser crime de ação penal pública incondicionada, apenas e tão-somente ao Ministério Público, representante do Estado-Administração, cabe o dever de iniciar a ação para ver o agente condenado, pelo que deverá o “Parquet” coligir as provas necessárias à comprovação da culpa do réu. No âmbito cível, à vítima ou ao ofendido do acidente causado pelo acusado caberá pleitear o ressarcimento dos danos experimentados, deduzindo sua pretensão firmada em provas bastantes, de acordo com as quais possa ser reconhecida a responsabilidade do agente.
Diante disso, em resumo, o art. 305 do CTB é o inconstitucional pelas seguintes razões:
1) a permanência do agente no local do acidente caracteriza auto-incriminação e produção de prova contrária a ele mesmo, fatos que, de acordo com os tratados internacionais adotados pelo Brasil (com respaldo no art. 5º, § 2º, da CF), especialmente o Pacto de San José da Costa Rica (art. 8º, nº 2, “g”) e o do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de Nova Iorque (art. 14, nº 3, “g”), ferem garantias judiciais individuais do acusado;
2) cabe às autoridades policiais a realização das investigações necessárias ao fornecimento de subsídios fáticos para que o Ministério Público possa iniciar a persecução penal do acusado em juízo, sendo ônus do “Parquet” a demonstração da culpa; por isso, nenhuma obrigação tem o réu de dar meios de prova que possam prejudicá-lo;
3) o art. 305 do CTB fere os princípios constitucionais do contraditório e ampla defesa e da presunção de inocência (art. 5º, incs. LV e LVIII, da CF);
4) a responsabilização penal e civil do agente, decorrente do acidente de trânsito, deve ser buscada pela parte a quem couber a reparação pertinente (no primeiro caso, ao Ministério Público, titular da ação penal que visa à punição do criminoso, dado tratar-se de crime de ação penal pública incondicionada; no segundo caso, à vítima ou ao ofendido, para ressarcimento dos danos que tenha sofrido).
Marcelo Picinin é advogado.