José Carlos Gobbis Pagliuca
ESTRUTURA DA IMPUTAÇÃO OBJETIVA
No século XIX o Positivismo jurídico adotou o princípio natural do consequente em razão de um antecedente preciso e determinado. Entretanto, mais tarde, já no século XX, novas doutrinas se projetaram contra tal afirmação, criando outras probabilidades, fazendo crer que a causalidade estava unida a um juízo de probabilidade, nascendo assim, as escolas da causalidade adequada e da relevância típica, dentre outras.
A fim de se evitar os desacertos, dúvidas e métodos artificiais de causalidade de tais escolas, surgiu a teoria da imputação objetiva, com o fim de “verdadeira alternativa para a causalidade.”1 A imputação objetiva deseja substituir o dogma causal material por uma relação jurídica (na norma) junto da conduta e do resultado. Procura a solução, de caráter normativo, para determinação de um resultado criminalmente relevante sobre determinada conduta.2
A teoria da imputação objetiva foi desenvolvida para superar as dificuldades da concepção final do injusto. Desde 1970, empreendem-se estudos no universo do Direito Penal para desenvolver um sistema jurídico-penal eficiente e justo. Com este pensamento, se chegou à valoração político-criminal da dogmática jurídico-penal.
Assim é que a teoria da imputação objetiva germinou com os pensamentos de Hegel, onde somente seria possível diante de um evento naturalístico se realizados pelo próprio autor do fato.3
Certamente, somente as conseqüências da conduta do autor que modificam o mundo exterior podem assim, ser àquele imputadas. Ou melhor, a responsabilidade do autor se encerra nos limites de sua atuação, nada mais.
A teoria da imputação objetiva considera as propriedades objetivas da conduta e envolve a discussão acerca da causalidade. Não obstante, além de observar os critérios da causalidade, ainda identifica a importância jurídica do fato, e, assim, realiza atividade valorativa. Por conseqüência, a relação de causalidade não é tão apenas a primeira exigência da imputação objetiva, pois se completa com a verificação da imputação jurídica entre a conduta e o resultado. Tal relevância do fato é apurada caso este tenha produzido situação de risco não autorizado ao bem jurídico e este risco tenha produzido uma situação proibida e se tenha tornado um resultado danoso.4 Na verdade, se diz que a imputação objetiva tem dois elementos básicos: a criação de um risco juridicamente não aprovado e a realização de tal risco com infração à norma.5
Assim, a imputação objetiva analisa a tipicidade do fato sob a perspectiva de um tipo penal de conteúdo valorativo.Os critérios fundamentais para a imputação são os padrões normativos em virtude de decisões político-criminais.6 Conclui-se, pois, que o tipo outorga significação social às condutas e é em seu conteúdo normativo que a imputação objetiva tem discussão, com função limitadora para o alcance da proibição penal.7
Imputação objetiva não representa “responsabilidade penal objetiva” porque esta determina ao autor do fato sua responsabilidade, ainda que não haja atuado com dolo nem culpa, não ingressando na culpabilidade ampla. Também não é “imputabilidade penal”, que é a capacidade do autor diante de sue caráter de querer e compreender o fato delinqüente. Trata-se, sim, de se imputar a uma pessoa a realização de uma conduta criadora de um risco ou perigo proibido ou de provocação de um resultado jurídico.8
A imputação objetiva não está, unicamente, preocupada com os fatos, mas também com os bens jurídicos que o Direito Penal tem por meta proteger. Pretende estabelecer a causalidade não no âmbito físico, porém no limiar normativo e valorativo da conduta humana.9
Para a imputação objetiva a conduta e o resultado são de responsabilidade do autor nas ocasiões em que a conduta tenha criado um perigo jurídico a um bem jurídico, o risco estabeleça um resultado, não apenas material, mas sim normativo e o resultado tenha proteção por norma penal.10
FINALIDADE DA CONDUTA
Sob a teoria da imputação objetiva, o resultado é totalmente normativo. Se a vontade de atuação não é típica, não interessa ao Direito Penal.11 A imputação objetiva se prende à intencionalidade ou à finalidade, mas somente à conduta em sentido naturalístico. Ou seja, àquela que seja de interesse ao Direito Penal, reprovada como de autoria de seu autor. Não se consideram as questões subjetivas do autor, mas sim, se as expectativas sociais foram prejudicadas com o comportamento do autor. Bem assim expõe Marcelo A . Sancinetti: “ a idéia de que a teoria da imputação objetiva é incompatível com uma concepção subjetiva do ilícito não é correta. A missão de estabelecer os princípios complementares para a interpretação do tipo (objetivo) que cabe à imputação objetiva não diz nada acerca de se o ilícito está constituído pelo dolo, pela imprudência, ou por eles, mas pela realização do tipo no mundo exterior.”12
PRESUNÇÃO DE PERIGO
Os denominados crimes de perigo surgem em razão da sociedade humana cujos comportamentos, pelas relações sociais, exigem certos freios de controle. Contudo, os crimes de perigo não alteram o mundo exterior, mas sim, se completam com a singela colocação de bens jurídicos à determinada situação de risco.Nesta situação, temos os crimes de perigo concreto e abstrato. Os dois fazem parte da mesma proteção, uma vez que o perigo não apenas se manifesta com a efetiva possibilidade de dano, como também de situações nas quais se aumentam as possibilidades de lesão.
“O juízo de perigo coincide basicamente com o juízo de previsibilidade objetiva. Trata-se de um juízo ex ante, pois ex post se o resultado não se produziu é porque não concorriam as condições necessárias para ele. A ação não era perigosa. O juízo tem que ser realizado por uma pessoa inteligente (o juiz) colocada na posição do autor, no momento do começo da ação e tendo em vista todas as circunstâncias do caso concreto conhecidas por essa pessoa inteligente, mais as conhecidas pelo autor (saber ontológico) e a experiência comum da época sobre os cursos causais (saber nomológico). Se a produção do resultado aparece como não absolutamente improvável (como no juízo de causalidade adequada), a ação era perigosa. Não basta, pois, com que o resultado fora objetivamente previsível mas tampouco é necessário que a produção do resultado apareça como provável. ”13
CAMPO DE ATUAÇÃO DA IMPUTAÇÃO OBJETIVA
A todas as infrações penais é possível a aplicação da teoria da imputação objetiva. Bem certo que o caráter da idéia da teoria tem aplicação nas conseqüências dos resultados naturais, mas não somente a estes, como também em situações onde seja viável se ver risco a todas condutas sociais não adequadas, nas hipóteses em que seja claro o risco não autorizado. Assim, estão abrangidos os crimes formais.
Também não é correto dizer unicamente útil a imputação objetiva para os delitos culposos. Tal idéia é errada, porque sempre se postula resolver grandes problemas da culpa com a imputação objetiva, mesmo porque, a criação de riscos com esta modalidade de crime é muito mais freqüente. Todavia, não se pode esquecer que na conduta dolosa também sempre há a ação ou omissão desaprovada. Assim explica Yesid Reyes Alvarado: “…a teoria da imputação objetiva, como determinadora do injusto do comportamento, é aplicável a todos os tipos da parte especial, isto é tanto aos delitos de resultado como os que encerram perigo, por igual aos ilícitos dolosos e culposos. ”14
Escreve da mesma forma Wolfgang Frisch: “ Mas também quando o autor atribui à sua conduta somente a possibilidade da produção do resultado- como nos casos de dolo eventual- se tratará normalmente de criações de riscos desaprovados, ao menos quando o autor parte de riscos que normalmente se intenta evitar, e sua representação coincida com a realidade; é dizer, quando não se trate, precisamente, de um caso de erro.”15
IMPUTAÇÃO OBJETIVA E CAUSALIDADE
A causalidade ou nexo causal é uma idéia muito complexa. Tudo que leva ao resultado se apresenta, filosoficamente, como causa. E ademais, são iguais e num mesmo plano. Sem embargo, para o Direito Penal, tal conclusão não pode ser absoluta, porque não leva a um ponto determinante da responsabilidade. Segundo Juarez Tavares, não existe critério perfeitamente verdadeiro para a identificação da relação de causalidade penal, pois que o Direito Penal não é físico, mas sim, normativo.16 É necessário um ponto de integração entre a filosofia da causa e a relação jurídico-penal. A doutrina criou duas principais teorias para explicar a causalidade, nenhuma dessas perfeitas ou ideais, senão com outros métodos de interpretação. Apenas para recordar, são as teorias da equivalência das condições e da causalidade adequada. Frisch diz: “A teoria da equivalência teve, por certo, temporalmente grande influência, porém finalmente não pode impor-se se quer na doutrina. A jurisprudência deixou desde o princípio constância de que qualquer condição necessária para a produção do resultado era causal no sentido dos delitos de resultado. Segundo a chamada teoria da equivalência, que trata todas as condições como equivalentes (e por isso leva esse nome), qualquer que haja fixado uma condição necessária para a produção do resultado causa o resultado de maneira típica.”17
A responsabilidade da produção do resultado jurídico-penal relevante se impõe em duas etapas; uma, em casos de crimes materiais com a relação causal empírica e a outra, se vê a atribuição da conseqüência normativa do resultado e a conduta de seu autor.
Ainda hoje, muitos casos colocam problemas já normativos e em fixação de fatos que se qualificam em situações difíceis e são resolvidos com fórmulas causais modificadas. São os casos de concorrências causais, de modo que se pode eliminar uma sem que isso leve à eliminação do resultado. A problemática da causalidade se soluciona em parte, com uma modificação causal das fórmulas teóricas, ou também, com soluções diante da culpabilidade. Isto afeta, contudo, a imputação objetiva ou subjetiva do resultado, pois a o problema da causalidade há de solucionar-se segundo as considerações especificamente normativas. A consideração normativa da causalidade deve ser tratada sob a ótica da imputação objetiva, já que oferece possibilidades de eliminação de soluções pouco convincentes, antes verificadas no âmbito da culpabilidade somente, nem sempre com soluções não imperfeitas.
Não se pensa mais atualmente, que a conseqüência do resultado é imputável ao autor simplesmente porque havia nexo causal da conduta. O resultado é fruto de um perigo criado injustamente e proibido pelo tipo normativo.
Na conexão da criação do perigo desaprovado a pessoa que haja dado causa deliberadamente poderá ter a responsabilidade porque produziu de modos causais resultados típicos e previsto como certa aquela produção. Na culpa estrita o risco é qualificado se desaprovado quando exige a observância das regras de diligência correspondentes para impedir tais riscos. Nesse rumo, perfeitas as palavras de Gunther Jakobs: “ A conexão entre risco e resultado não oferece especiais dificuldades na medida em que os distintos riscos somente um esteja representado no curso causal como condição: este serve como explicação.”18
O RISCO PERMITIDO
A imputação objetiva somente admite a responsabilidade do resultado caso a criação do risco desaprovado colocou em perigo o bem protegido juridicamente. Não obstante, alguns bens estão sempre em estado de risco e, neste caso, a imputação objetiva será correta se aumentado o risco existente ou ainda, criado outro perigo até então inexistente. Em resumo, a conduta está sob a imputação objetiva apenas nas situações em que ultrapassa o limite do risco permitido. Como diz Jakobs, “ a presente exposição unicamente se refere à permissão daquele risco que necessariamente se acha vinculado à configuração da sociedade; se trata, por tanto, de uma concreção da adequação social. Aqui não se levam em consideração as situações de justificação. O risco permitido não resolve uma colisão de bens, senão que estabelece o que são suposições normais de interação, já que a sociedade- cujo estado normal é o que interessa aqui- não é um mecanismo para obter a proteção de bens, senão um contexto de interação”.19
Em concreto, se a conduta desaprovada do autor fizer crescer a possibilidade da realização do resultado danoso junto do risco já permitido, haverá imputação objetiva. Senão, faltará a tipicidade objetiva.
O ainda, como mais uma vez explica Jakobs, se deve comparar os custos e benefícios. 20 Ademais, os riscos permitidos são frutos da sociedade adequada socialmente, pois que o adequado se legitima pelo Direito, de forma histórica, na própria evolução social. O Direito faz o desenho do que é adequado socialmente e esse controle. São as normas jurídicas que estão em auxílio da sociedade.
A exigência do perigo injusto é o requisito central da imputação do resultado, como pressuposto da conduta típica dos delitos de resultado. Tais riscos são todos de uma qualidade específica da conduta, a qual possui idoneidade para produzir o resultado sob alguns pressupostos. A implicação do risco é a tipicidade relevante e constitui a base da proibição.
Importante é que o incremento do risco somente será considerado depois do fato ocorrido. Assim, devem ser avaliadas todas as circunstâncias do fato conhecidas para a consideração do incremento do perigo pelo autor. ( Ex: um carcereiro, ao colocar determinado preso numa cela coletiva, diz a esse preso, logo após trancá-lo: “você é cagueta, hein!”, em voz alta, de modo que outros presos também ouçam. Mais tarde, esse preso é morto pelos companheiros de cela. Não há dúvida que o carcereiro incrementou, com sua conduta – o comentário-, o risco de perigo de vida àquele preso – caso real da Comarca da Capital.
O riso permitido faz parte do mundo natural do homem, sendo que o risco proibido é aquele mesmo risco, que, porém, socialmente figura-se contrário ao ordenamento. Assim, dirigir um veículo sempre possui uma determinada carga de perigo, quer para transeuntes, quer para passageiros, sem que, contudo, tal condução seja ilícita pelo ordenamento jurídico. Porém,caso essa direção venha a causar danos, em face de condutas incompatíveis (velocidade acima do permitido, condução em estado de embriaguez, ultrapassagem em pontes…), aí sim, a genuína conduta perigosa, mas tolerada ex ante torna-se alvo para o seu desvalor, e, portanto, objeto de ação e resultado. Assim também, um determinado brinquedo de parque de diversões que, a princípio, embora perigoso porque gira muito forte e à grande altura é permitido e tolerado, poderá ser, caso acionado de forma irregular por seu operador, e obter velocidade que dá causa a um acidente lesionando seus ocupantes, tornar-se, em razão da aquela conduta do operador, um riso proibido, ficando tão apenas essa conduta sob a égide de apuração para responsabilidade penal.
ALTERAÇÃO DO RISCO EXISTENTE
Unicamente, a modificação do perigo já existente não é campo relevante juridicamente para a imputação objetiva. Isto é, se a situação de risco não ultrapassa a tolerância da desaprovação, inexiste bem juridicamente relevante a ser protegido. Em tais casos, os resultados se ocorridos, ainda que sem o comportamento diferente, falta, sob a teoria da imputação objetiva, a realização do resultado, do risco desaprovado, ou a inobservância do cuidado, e, assim, foge a responsabilidade pelo resultado lesivo. Doutra banda, a alteração do risco que permite a imputação objetiva somente é aquela que estabelece nova forma de risco em suplementação à primeira. Uma pessoa que haja laborado infringindo o cuidado normativo e criado o risco desaprovado, mas o resultado se produzira do mesmo modo que o agente satisfazendo as exigências de cuidado, não pode ser reconhecido como autor e, portanto, excluída da imputação objetiva. Exemplo: um motorista com seu filho infante a bordo do veículo, dirige por uma rua movimentada, em alta velocidade. A criança põe um dos braços para fora e é colhida por uma motocicleta que passava rente ao carro pela criança ocupado, lesionando-a seriamente. O pai não responde pelo fato, pois que, mesmo se estivesse em velocidade menor, o resultado de igual modo se daria.
A CRIAÇÃO DO RISCO DESAPROVADO
É reconhecido na doutrina que a conexão causal entre a vontade e o resultado não é tudo para a fixação da responsabilidade pelo fato. Assim, a teoria da imputação objetiva criou um novo sistema para a base da responsabilidade, justamente, o risco desaprovado. Seguramente, a determinação da imputação objetiva está apoiada na realização do risco não permitido e seu resultado diante do bem jurídico. Assim, a conduta somente poderá ser imputada ao criador do fato se possível uma situação de risco desaprovado e em colocação do bem jurídico sob este perigo. Sem embargo, nem sempre a situação de risco é desaprovada ao Direito e, por isso, se necessita verificar as ocasiões em que isso possa ocorrer.
Como ensina Frisch: “Provavelmente não requer largas explicações a constatação de que o círculo de modalidades de comportamento, identificadas deste modo, é ainda enormemente amplo. Se todo comportamento que está afetado de tais riscos fora proibido no interesse do mundo dos bens, faltaria muito pouco da liberdade de atuação do indivíduo. Se se quer manter essa liberdade num modo adequado, se requer, dito de outro modo, uma limitação muito mais forte do círculo dos sucessos ou formas de conduta, até agora descritos.”21 ( Ex: o traficante que vende narcóticos ao viciado que, em face do uso da substância vem a cometer um delito, não poderá ser responsabilizado por esse delito, porque, embora tenha criado um risco (alteração da intelectualidade do consumidor), não teve vontade (tipo subjetivo) na conduta delinqüente do viciado.
AUTOCOLOCAÇÃO SOB PERIGO
A autocolocação sob perigo existe nas ocasiões em que alguém efetua fatos que estabelecem uma situação de perigo para si próprio ou se expõe a um perigo já ocorrente. A autocolocação não afeta a imputabilidade do resultado, senão a conduta de terceiro como comportamento tipicamente proibido. Os casos de autocolocação sob perigo e a responsabilidade da vítima pelas conseqüências são apenas o reverso, já que a conseqüência da ausência de tipicidade a determinadas condutas de terceiros devido à limitação da proteção típica que se produz, tendo em vista a conduta subseqüente ou simultânea do ofendido e não a sua vez a razão da impunidade de terceiro.
A participação do ofendido pode ter favorecido o partícipe a uma ação perigosa e lesiva ou a ela tê-lo induzido. Ou o partícipe pode ter possibilitado uma conduta autoperigosa em razão da entrega de coisas ou motivado a vítima mediante sua atuação a uma conduta por si só perigosa. Exemplo: a vítima, sabedora das péssimas condições de uma determinada embarcação, toma-a alugada de outrem para atravessar um curso d’água, sendo que, no trajeto, o barco faz água, resultando na morte do ofendido (sem embargo, nessa situação, há certa divergência doutrinária). Comum também o passageiro dum automóvel que não usava cinto de segurança e, em razão de colisão, vem a se ferir. O motorista não deve ser responsabilizado por não exigir ou zelar, de forma ampla, a utilização daquele equipamento- (trata-se de cuidado objetivo).
A IMPUTAÇÃO OBJETIVA E O PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
Dentre algumas situações de risco permitido, às vezes, há a atuação em conjunto de duas ou mais pessoas no fato e em sua resolução. Não é lícito se afirmar que todas as pessoas atuam corretamente, porque determinadas situações levam-nas a cometer erros. Contudo, as outras que se comportam adequadamente, esperam que as demais também assim o façam. A sociedade, como um todo, tem em mente que as pessoas ajam consoante os comportamentos sociais adquiridos, não sendo tais, comportamentos desaprovados. Como ensina Juarez Tavares, “salvo em hipóteses de ação conjunta e vinculadora, ninguém em princípio, deve responder por ações defeituosas de terceiros, mas sim, até mesmo pode confiar em que atendam todos os outros aos respectivos deveres de cuidado.”22
Por isso, a responsabilidade penal de um indivíduo somente existe por seu único comportamento, nunca pelo dos demais.
Toda a sociedade é composta por situações de riscos permitidos, que fazem parte do modelo normal dos meios de vida, sem os quais essa sociedade não poderia desenvolver suas atividades. Nesse rol de atividades, estão, por exemplo, a circulação de veículos, a navegação aérea, os contatos pessoais, o compartilhamento do trabalho e muitas outras situações envolvendo mais de uma pessoa na elaboração dos fatos. Assim, p. ex:, uma pessoa que causa lesão culposa em outra pode esperar que esta não venha a morrer porque não teve o cuidado devido quando do atendimento hospitalar. Espera-se, de quem quer que seja, que o atendimento seja de acordo com a diligência médica da melhor forma possível.
PROIBIÇÃO DE REGRESSO
O que denomina proibição de regresso não nasceu com a imputação objetiva. Já era conhecido na relação de causalidade, nas ocasiões em que era possível se imputar ao agente de um comportamento a responsabilidade pela conduta de terceiro, sendo que o primeiro agente deveria ter agido de forma culposa e o terceiro cometido um fato típico doloso. Com a imputação objetiva, não há necessidade causal entre a conduta do sujeito ex ante e de quem recebe o destino daquela conduta. Isto porque se entende que o comportamento anterior tem um caráter inócuo, já que estereotipado por cursos normais de conduta. O autor não pode, por si, modificar o significado do comportamento, eis que o terceiro assume com o autor, uma conduta comum a todos, restrito ao próprio curso de vida daquele autor. Ou seja, o autor não integra os intentos delinqüentes do terceiro infrator. É o caso, p. ex., do taxista que leva Alfa, a pedido deste, numa corrida normal, até onde está Beta, sendo que, no local, Alfa mata Beta, pois ali fora apenas para isso. Ou ainda, aquele que empresta uma ferramenta a um vizinho, que, com aquela, destrói patrimônio alheio, mesmo se conhecendo tal possibilidade.23 Verifica-se, portanto, que a conduta do autor era absolutamente normal e inócua por si (conduta socialmente standart). Dessa forma, tais comportamentos não podem ser considerados como co-autoria ou participação. Não se discute a relação de causalidade entre a conduta do autor e o delito do terceiro, já que existe, em princípio, atipicidade no antecedente. Nem mesmo se pode considerar a regressão nas hipóteses em que o agente saiba que o resultado de sua conduta servirá de base para um crime futuro, já que não tem domínio do fato e nem mesmo certeza da infração por parte do terceiro.
O CONSENTIMENTO DO OFENDIDO
Dado que o Direito, além de seu poder de coação, deve também, possuir significado a dizer se em determinado caso, houve ou não lesão a um direito. Alguns bens jurídicos estão afetos isoladamente ao consentimento de seu titular acerca de serem ou serem molestados. Nem sempre a norma é plena sob o ponto de vista normativo ou dogmático. Tem o titular do direito resguardado, às vezes, possibilidade de escolher se seu direito foi ou não foi violado. A relação dogmática entre tipicidade e justificação reside numa análise do respectivo tipo de injusto e de elementos valorativos extratípicos, os pressupostos materiais da eficácia do consentimento dependem do valor sobre o que dispõe seu titular, independentemente de que este seja típico ou extratípico.
Sob esse ângulo, pode ser que o ofendido se ponha em perigo por sua própria vontade, fazendo com que o autor realize um fato considerado desaprovado juridicamente. Tratam-se, pois, de bens chamados disponíveis. Entretanto, a vítima pode consentir com o risco criado por conta do autor, mas não possuir o bem disponível para aquela situação. É a pessoas ofendida quem deve atuar em último posto já que a ela “reside o domínio da decisão acerca de se o fato se leva a cabo ou não.”24 Assim, não seria típica a conduta de quem amputa determinado membro de outrem, a pedido deste – ( a Lei 9.099/95 já admite, em menor grau, parcialmente, tal consentimento). Também num caso de furto em residência, onde o larápio ingressa no imóvel e dali subtrai determinado aparelho de som. A casa estava vazia e a polícia foi acionada por um astuto vizinho. O rapino é preso na rua com o som, sendo , após, chamada a vítima. Esta diz à autoridade de polícia: “ eu não me senti prejudicado patrimonialmente, porque esse aparelho era bem velho e não funcionava, não tinha até, mais conserto, iria jogá-lo fora. O ladrão me fez um favor, desocupando lugar”. Assim, veja-se, o bem jurídico não foi, subjetivamente lesado, embora, objetivamente o fora. Daí porque, o positivismo tem também suas grandes máculas. É um caso a se pensar !
CONCLUSÕES DAS VANTAGENS E UTILIDADES DA IMPUTAÇÃO OBJETIVA
-A imputação objetiva abrange todos os crimes quanto à causalidade material (resultado);
-A problemática do dogma causal pode ser aplicada a qualquer infração;
-Permite ex ante, que se verifiquem condutas perigosas que já podem ser avaliadas antes da apreciação judicial;
-Proporciona ao Ministério Público a possibilidade de operar com o incremento do risco e a proibição de regresso;
-Facilita a defesa com um novo elemento do tipo, de valoração da relação causal,ou ainda, segundo outros doutrinadores, novo elemento de caráter normativo, não naturalístico.
-Constitui, portanto, um instrumento para, em futuro breve, tomar lugar sobre a causalidade material, sendo, atualmente, objeto de amplos estudos doutrinários e hermenêuticos. Possui críticos e admiradores. Não está esgotada, muito menos nas linhas acima desenvolvidas. Está aberta a discussões, porque não totalmente concluída ou esgotada. Permite inúmeros complementos, discussões e esclarecimentos. É jovem, embora sua elaboração remonte há mais de sessenta anos.
No Brasil é uma criança desconhecida. Agora começa a caminhar passo a passo. Temos muita satisfação e voluntariedade em seu estudo, porém aos poucos. A causalidade brasileira está unida causalidade condicionada, não sendo facial tarefa a colocação da imputação objetiva aos fatos reais. Assim, cada vez mais, com a teoria em desenvolvimento, será possível sua melhor compreensão, para, definitivamente, adoção ou quem sabe, rejeição.
Notas:
1. Juan Bustos Ramirez, La imputación objetiva, Teorías actuales en el Derecho Penal, B. Aires, 1998.
2. Nelson R. Pessoa, Imputación objetiva y el concepto d acción, Teorías actuales en el Derecho Penal, B. Aires,1998.
3. Princípios da filosofia do direito, Lisboa, 1990.
4. Gunther Jakobs,Derecho Penal, Madrid, 1997.
5. Yesid Reyes Alvarado, La imputación objetiva, Temis, Bogotá, 1996.
6. Juan Bustos Ramirez, La imputación objetiva, Teorías actuales en el Derecho Penal, B. Aires, 1998.
7. Nelson R. Pessoa, Imputación objetiva y el concepto d acción, Teorías actuales en el Derecho Penal, B. Aires,1998.
8. José M. R. Devesa y Alfoso S. Gómez, Derecho Penal español, Dickinson, , Madrid 1994.
9. Nesse sentido veja-se Damásio E. Jesus, Imputação objetiva, Saraiva, São Paulo, 2000.
10. Paz M. C. Aguado,Tipicidad y imputación objetiva, Tirant lo blanch, Valencia, 1996.
11. Claus Roxin, Problemas básicos de derecho penal, Reus, Madrid, 1976.
12. Observaciones sobre la teoría de la imputación objetiva, in Teoría de la imputación objetiva, Univ. Ext. Colombia, Bogotá, 1998.
13. José Cerezo Mir, Curso de Derecho Penal Espanõl, P. General, II, Tecnos, Madrid, 1999.
14. Imputación objetiva, Temis, Bogotá, 1996.
15. Tipo Penal y Imputación objetiva, Colex, Madrid, 1995.
16. As controvérsias em torno dos crimes omissivos, R. Janeiro, 1996.
17. Tipo Penal y Imputación objetiva, Colex, Madrid, 1995.
18. La imputación objetiva en Derecho penal, Civitas, Madrid, 1999.
19. Idem.
20. Ibidem.
21. Tipo Penal y Imputación objetiva, Colex, Madrid, 1995.
22. Direito Penal da negligência, RT, São Paulo, 1995.
23. La imputación objetiva en Derecho penal, Civitas, Madrid, 1999.
24. Beatriz G. Vallejo, Consentimiento, Bien Jurídico e Imputación Objetiva, Colex, Madrid, 1995.
São Paulo, 27 de agosto de 2000.
José Carlos Gobbis Pagliuca é Promotor de Justiça em São Paulo e pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal.