Crimes de Trânsito e a Competência dos Juizados Especiais Criminais

Gilson Sidney Amancio de Souza

A Lei 9.503, de 23.09.97, que instituiu o Código de Trânsito Brasileiro, no Capítulo que trata dos “crimes de trânsito”, tipificou, entre outras condutas criminosas, a lesão corporal culposa na direção de veículo automotor, a direção de veículo automotor em estado de embriaguez e a participação em competição não autorizada em via pública, nos arts. 303, 306 e 308, respectivamente, cominando a todos esses delitos penas privativas de liberdade que, no grau máximo, superam o limite de um ano.
Concomitante a isso, o mesmo diploma legal, em seu art. 291, parágrafo único, determinou a aplicação, a tais infrações, das regras dos arts. 74, 76 e 88 da Lei 9.099/95, normas até então aplicáveis estritamente às denominadas “infrações penais de menor potencial ofensivo”  as contravenções, bem assim os crimes cuja pena máxima “in abstrato” não excedam um ano, na definição do art. 61 da Lei dos Juizados Especiais  embora esses delitos de trânsito, como dito, sejam todos punidos com penas máximas superiores ao limite de um ano.
Surgiram, em razão disso, indagações a respeito da própria natureza jurídica desses novos delitos, sobre consubstanciarem, ou não, “infração de menor potencial ofensivo”, bem como, sobre aspectos de cunho procedimental, como a necessidade de se proceder a inquérito policial para sua apuração ou a suficiência do termo circunstanciado; bem assim, a respeito da competência “ratione materia” ser do JECRIM ou do Juízo Penal Comum.
Posicionamo-nos, após hesitação inicial e reconhecendo a robustez dos argumentos em sentido contrário, pela natureza de infração de menor potencial ofensivo dos delitos em comento.
Até o advento do C.T.B. o conceito de “infração penal de menor potencial ofensivo” era pacífico e definido no art. 61 da Lei 9.099/95: todas as contravenções, bem como, os crimes apenados, no máximo, até um ano, à exceção daqueles em relação aos quais há previsão de rito especial.
À vista disso, e considerando que os crimes de lesão culposa no trânsito (art. 303 do CTB), de condução de automotor em estado de embriaguez (art. 306 do CTB) e de participação em competição não autorizada (art. 308 do CTB) têm penas máximas superiores ao limite de um ano, alguns defendem a idéia de que não se tratam de infrações de menor potencial ofensivo, malgrado o comando do seu art. 291, parágrafo único. Argumenta-se que, embora aplicáveis a tais crimes de trânsito as regras dos arts. 74, 76 e 88 da Lei 9.099/95 (os arts. 74 e 88, por razões óbvias e que dispensam comentários, exclusivamente ao crime de lesão corporal culposa, único em que há um sujeito passivo imediato, há prejuízo material a ser composto e cuja ação é condicionada à representação do ofendido), não são infrações de menor potencial ofensivo e, via de conseqüência, para sua apuração não bastaria o termo circunstanciado de que trata o art. 69 da Lei dos Juizados Especiais, e a competência para seu processo e julgamento é do Juízo Penal comum, não do JECRIM.
Ousamos, com a devida vênia, discordar desse entendimento.
O critério fundamental de conceituação legal da infração “de menor potencial ofensivo”, induvidosamente, é o quantitativo (quantidade da pena – até o máximo de um ano); entretanto, não é, e nunca foi, o único.
Desde a edição da Lei 9.099/95, a maioria da doutrina inclinou-se no sentido de que o conceito legal de “infração penal de menor potencial ofensivo”, estabelecido em seu art. 61, abrangia todas as contravenções penais, independente de terem, eventualmente, a pena máxima superior ao teto de um ano. É o que preconizam, entre outros, JÚLIO FABBRINI MIRABETE, para quem estão incluídas no conceito “todas as contravenções, independentemente do limite máximo da pena privativa de liberdade e do rito processual estabelecido para essas infrações” , e CEZAR ROBERTO BITENCOURT, que preleciona que “a pequena ofensividade das contravenções penais não está nem na quantidade de pena cominada nem no procedimento penal adotado, mas na sua natureza ontológica”, depois de assentar que tais infrações são, por natureza, de pequeno potencial ofensivo .
Vê-se, pois, que o critério da intensidade da pena, conquanto seja o básico, não é o único parâmetro para a definição de infração de menor potencial ofensivo.
A partir dessa premissa, preconizamos que o legislador do CTB, com a norma do parágrafo único do art. 291, à semelhança do que já ocorrera com as contravenções penais, abandonou o critério quantitativo e adotou um critério material para definição de infração de menor potencial ofensivo.
Impende lembrar que, cuidando-se de conceitos dogmáticos, serão infrações de menor potencial ofensivo aquelas que a lei definir como tais.
Se em todos os casos, é necessário seja realizada a audiência preliminar, sem a qual não há a possibilidade da composição civil (nas hipóteses do delito do art. 303) nem de transação penal, aplicam-se, portanto, também os arts. 72 e 73 da Lei dos Juizados Especiais. Além disso, se houver a conciliação, o acordo implicará a renúncia à ação penal pela vítima de lesões culposas (art. 74, par. único, da Lei 9.099/95); e, ainda não havendo êxito na tentativa de composição civil, a atuação do Ministério Público estará condicionada à representação do ofendido no crime de lesão culposa no trânsito.
E, porque aplicável o art. 76 da Lei 9.099/95, em qualquer dos crimes de trânsito em comento poderá o promotor de Justiça formular proposta de transação penal. Daí se conclui, também, que, feita e aceita proposta de multa, cumpri-la-á o autor do fato na Secretaria do Juizado, por força do disposto no art. 84 da Lei 9.099/95.
Aplicáveis, pois, todas as regras pertinentes às infrações de pequena ofensividade, não há como negar aos crimes dos arts. 303, 306 e 308 do C. T. B. a natureza de infração de menor potencial ofensivo. Se todos os reflexos jurídico-penais são os mesmos daquelas, se o rito é exatamente o mesmo para umas e outras, ressumbra lógico que se tratam de institutos de idêntica natureza jurídica, exinanidas as argumentações em contrário.
Negar aos delitos dos arts. 303, 306 e 308 do Código de Trânsito o caráter de infração de menor potencial ofensivo tão-só porque suas respectivas penas excedem o teto de um ano é dizer, por simetria lógica, que também as contravenções apenadas acima desse patamar não podem ser incluídas no conceito, é negar a evidência de que a lei, ao lado do critério quantitativo, usa um outro critério, que podemos chamar de material, para a definição das infrações de menor potencialidade ofensiva.
O prof. RENÉ ARIEL DOTTI, aliás, já vislumbrou, na hipótese, “a ampliação, por via oblíqua, do conceito de crimes de menor potencial ofensivo”, conquanto ponha em dúvida a constitucionalidade de tal medida .
Mas não há, “data venia”, qualquer inconstitucionalidade nisso; ao contrário. O art. 98, inc. I, da C.R. determina a criação de juizados especiais para infrações penais de menor potencial ofensivo “mediante os procedimentos oral e sumariíssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação…”.
Daí se infere que por imposição da “Paramount Law” o procedimento oral e sumariísimo, assim como a transação, são privativos dos juizados especiais, o que reforça o argumento de que não é do Juízo Penal comum, mas dos Juizados Especiais Criminais, a competência para processo e julgamento daqueles delitos definidos nos arts. 303, 306 e 308 do Código de Trânsito.
Além disso, não há, no dispositivo constitucional referido, qualquer imposição de liame do conceito de “infração de menor potencial ofensivo” com a quantidade da pena, de modo que a norma infraconstitucional pode definir tanto por critério quantitativo quanto material o que sejam essas infrações. E poderá, enfim, fazê-lo de modo expresso, atribuindo a determinada conduta a qualidade de infração de menor potencial ofensivo, como fez no art. 61 da Lei 9.099/95; ou de modo implícito, conferindo-lhe todas as características e conseqüências jurídicas das infrações de menor potencial ofensivo, posto não adjetivá-la explicitamente como tal.
Postamo-nos, pois, na defesa da idéia de que as sobreditas infrações definidas na Lei 9.503/97, à luz do seu art. 291, parág. único, vieram alargar o rol das infrações de menor potencial ofensivo; em conseqüência, sua apuração inicial pode ser objeto de termo circunstanciado, dispensável o inquérito policial, embora a opção por um ou outro, porquanto procedimentos de caráter meramente administrativo, seja irrelevante; e que a competência “ratione materiae” para seu processo e julgamento é do Juizado Especial Criminal.
GILSON SIDNEY AMANCIO DE SOUZA
Promotor de Justiça
Professor de Direito Penal na Fac.Direito de
Pres. Prudente – Instituição Toledo de Ensino
Professor de Direito Processual Penal na Fac.
Direito da UNOESTE – Universidade do Oeste
Paulista

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