A LIMITAÇÃO DE COMPETÊNCIAS DO CONSELHO DE CONTRIBUINTES, EM RAZÃO DO VALOR DO DÉBITO TRIBUTÁRIO E DO PORTE DO CONTRIBUINTE
Com a perpetração da Medida Provisória n. 232, de 30 de dezembro de 2004, estaremos sofrendo, além do aumento de uma presunção de lucro líquido só existente em ficção para maior parte dos prestadores de serviço e de outros abusos, novas e odiosas desigualdades processuais entre pequenos e grandes contribuintes.
Imbuídos de tal espírito indignado, produzimos o presente ensaio. E, assim, ao invés de utilizar a expressão “crédito tributário”, damo-nos o direito de utilizar “débito tributário”, pois expomos os fatos do ponto de vista do devedor, isso é, do contribuinte.
Especificamente, referimo-nos à limitação de competência do Conselho de Contribuintes, único órgão da Administração Fazendária Federal que tem composição paritária, com a participação dos mantenedores da estrutura estatal: os próprios contribuintes. O artigo 10, da MP n. 232/2004, alterou a redação do art. 25, do Decreto n. 70.235/1972, que define as competências para julgamento de processos administrativos em que há impugnação do contribuinte quanto ao lançamento de tributos e contribuições administrados pela Secretaria da Receita Federal. O texto anterior às alterações dispunha as atribuições dos órgãos de julgamento administrativo tributário da seguinte forma:
Art. 25. O julgamento do processo compete:
I – em primeira instância:
a) aos Delegados da Receita Federal, titulares de Delegacias especializadas nas atividades concernentes a julgamento de processos, quanto aos tributos e contribuições administrados pela Secretaria da Receita Federal.
b) às autoridades mencionadas na legislação de cada um dos demais tributos ou, na falta dessa indicação, aos chefes da projeção regional ou local da entidade que administra o tributo, conforme for por ela estabelecido.
II – em segunda instância, aos Conselhos de Contribuintes do Ministério da Fazenda, com a ressalva prevista no inciso III do § 1º.
O texto atual recebeu a seguinte redação:
Art. 25. O julgamento de processo relativo a tributos e contribuições administrados pela Secretaria da Receita Federal compete:
I – às Delegacias da Receita Federal de Julgamento, órgão de deliberação interna e natureza colegiada da Secretaria da Receita Federal:
a) em instância única, quanto aos processos relativos a penalidade por descumprimento de obrigação acessória e a restituição, a ressarcimento, a compensação, a redução, a isenção, e a imunidade de tributos e contribuições, bem como ao Sistema Integrado de Pagamento de Impostos e Contribuições das Microempresas e das Empresas de Pequeno Porte – Simples; e aos processos de exigência de crédito tributário de valor inferior a R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais), assim considerado principal e multa de ofício;
b) em primeira instância, quanto aos demais processos;
II – ao Primeiro, Segundo e Terceiro Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda, em segunda instância, quanto aos processos referidos na alínea “b” do inciso I do caput deste artigo.
Ou seja, está claro que houve limitação ao poder-dever de apreciação do Conselho de Contribuintes, como órgão julgador de segunda instância administrativa. A MP n. 232/2004 determinou que o duplo grau de apreciação, antes dedicado a qualquer caso, será somente cabível aos casos de que não fossem relativos à penalidade por descumprimento de obrigação acessória e a restituição, a ressarcimento, a compensação, a redução, a isenção, e a imunidade de tributos e contribuições, bem como ao Sistema Integrado de Pagamento de Impostos e Contribuições das Microempresas e das Empresas de Pequeno Porte – Simples; e aos processos de exigência de crédito tributário de valor inferior a R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais), assim considerado principal e multa de ofício.
Neste momento, nos perguntamos, a quem será vetado o segundo grau de apreciação em sua maioria? Para nossa resposta basta questionar: Quem aderiu ao SIMPLES? Quem geralmente tem débitos tributários inferiores à R$ 50.000,00? Quem tem menor assessoramento nos tramites tributários? Ora, é óbvio, o pequeno contribuinte reconhecido como: as micro e pequenas empresas, as entidades sem fins lucrativos, os contribuintes individuais (pessoas físicas) e outros. Observemos o seguinte raciocínio básico: é mais comum um pequeno contribuinte ter débitos tributários inferiores a R$ 50.000,00, do que um grande ter débitos tributários com cifras a baixo desse valor. Também, é tranqüilo afirmar que R$ 50.000,00 farão mais falta no caixa do pequeno contribuinte do que no do grande contribuinte.
Essas alterações incluem-se dentre os inúmeros ataques realizados a esse órgão colegiado nos últimos anos, conforme já relatado por vários juristas. Entretanto, não se trata mais em simplesmente exigir 30% do valor questionado, como depósito recursal (art. 33, §2o, do Decreto n. 70.234/1972, incluído pela Lei n. 10.522/2002), ou tentar reverter judicialmente o julgamento administrativo, quando este for desfavorável à União. A fístula está em dar apenas aos grandes devedores a oportunidade de terem suas indignações tributárias apreciadas duas vezes, a primeira pelas Delegacias da Receita Federal de Julgamento (DRFJ) e a segunda pelo Conselho de Contribuintes. Aos pequenos apenas restará ter suas defesas e contestações apreciadas por um único órgão de julgamento, composto somente por membros oriundos da Secretária da Receita Federal (DRFJ).
Para aprofundar a situação de desigualdade, em um caso hipotético, dois contribuintes poderão estar discutindo débitos de mesma natureza, só que de valores diferentes: um acima de R$ 50.000,00 e outro abaixo desse valor. Contudo, somente o primeiro (aquele de maior débito) terá direito a recorrer duas vezes, sendo uma delas feita ao órgão julgador de composição mista, com participação de membros da fazenda e de representantes dos contribuintes. Já o segundo terá seus apelos analisados só uma vez por um órgão julgador local (eminentemente fiscalista). Será que a orientação tão abalizada do Conselho de Contribuintes será seguida pelas Delegacias da Receita Federal de Julgamento quando se tratar de matéria destinada à instância única ou quando os valores forem inferiores à R$ 50.000,00?
Vale comentar que, na maioria das vezes, o pequeno contribuinte não tem um corpo de técnicos a seu favor, apenas é assessorado por um contador. Já o grande contribuinte é cercado de contadores, administradores, advogados, autuários, para auxiliá-lo na navegação em nosso tormentoso mar tributário. Isso demonstra que, no mercado, já existe desigualdade técnica entre os contribuintes. Com a limitação de competências do Conselho de Contribuintes, a União assevera tais desigualdades naturais, pois deixa os pequenos à mercê de um único órgão de julgamento de tendência mais conservadora.
A MP n. 232/2004, ao alterar a redação do art. 25, do Decreto n. 70.235/1970, se tornou um meio da União aplicar o princípio inconstitucional, nominado ironicamente por nós, da “contra-isonomia”. Resumidamente, enquanto o princípio da isonomia, presente em todo o texto constitucional, informa que o Estado deve tratar a todos de forma igual na medida de sua igualdade e de forma desigual na medida de sua desigualdade, o princípio inconstitucional da “contra-isonomia” informa que os iguais devem ser tratados desigualmente e os desiguais devem ser tratados igualmente. Ou seja, o pequeno contribuinte, geralmente hiposuficiente, não terá direito a um segundo julgamento administrativo, e o grande contribuinte terá uma chance a mais de revisão.
A aplicação do princípio da “contra-isonomia” pode até ser válida sob as leis do mercado. Todavia, tal princípio é perigosíssimo quando chega ao âmago do Estado, ente com aspirações de reduzir as desigualdades sociais e regionais (arts. 1o e 3o, da Constituição Federal de 1988), que deve primar por reduzir as diferenças injustas ao exercício de direitos propostos por ele. Isso se torna mais perverso quando tais fatores de desigualdade são implantados em uma das faces mais duras do Estado: Estado-arrecadador.
Ficamos com a impressão de que a igualdade e a participação democrática da grande massa dos contribuintes, como forma terem seus apelos ouvidos e apreciados pelo Estado de forma isonômica ao de seus pares, são apenas falácias. Os órgãos paritários e participativos existem, mas essa maioria dos contribuintes não terá acesso. O motivo da diferenciação: ser um pequeno contribuinte.
Por fim, ao invés de brincar que existe participação democrática do contribuinte quando o assunto é tributação e arrecadação, seria mais transparente que os nossos dirigentes federais assumissem os resultados (jurídicos, políticos e administrativos) de seus atos e extinguissem o Conselho de Contribuintes uma vez por todas. Mesmo causando uma perda incalculável para a evolução democrática[1], se esta é a real vontade de nossos representantes eleitos, isso é melhor do que a atual mutilação lenta e sistemática de um dos melhores e mais respeitados órgãos da Administração Federal. Dessa forma, evitar-se-iam inúmeras infrações ao texto constitucional (atacando o princípio da isonomia) e demonstrar-se-ia um pouco mais de boa-fé por parte da Administração Tributária Federal.
Notas:
[1] Observemos que a jurisprudência pacifica do Supremo Tribunal Federal já foi consolidada no sentido de não existir garantia constitucional ao duplo grau de apreciação administrativo, em que somente existe a garantia do direito ao contraditório e ampla defesa no processo administrativo.
* Gustavo Vettorato
Advogado em Cuiabá e Porto Alegre, pós-graduado em Economia Agroindustrial (UFMT) e em Direito Tributário (IBET)