Ultimamente, como algumas pessoas com direito a prisão especial teriam sido obsequiadas com diversas regalias (telefone celular, televisão, refeições levadas por familiares!), tal fato levou a mídia (que desconhece a nossa realidade prisional) a uma campanha contra essa espécie de prisão, a ponto de o próprio Governo, já agastado com os problemas sobre improbidade administrativa, haver solicitado à Comissão encarregada da elaboração de um anteprojeto visando à reforma do Código de Processo Penal um disciplinamento sobre a prisão especial.
A Comissão limitou-se a acrescentar cinco parágrafos ao art. 295, a saber: 1º) a prisão especial, prevista neste código ou em outras leis, consiste exclusivamente no reconhecimento em local distinto da prisão comum (como exigido desde 1942 e nunca cumprido, porque nunca houve). 2º) não havendo estabelecimento específico para o preso especial, este será recolhido em cela distinta do mesmo estabelecimento (era o que normalmente acontecia e só não vem acontecendo por falta de espaço); 3º) a cela especial poderá consistir em alojamento coletivo, atendidos os requisitos de salubridade do ambiente, pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequados à existência humana (esses requisitos já eram exigidos pela Lei de Execução Penal, desde julho de 1984, e os presos, provisórios ou não, continuam vivendo em condições subumanas); 4º) o preso especial não será transportado juntamente com o comum; 5º) os demais direitos e deveres do preso especial serão os mesmos do preso comum…
Assim procedendo, a Comissão objetiva retirar dos presos “privilégios injustificados”, restringindo o conceito de “prisão especial” às condições que resguardam a segurança, saúde e dignidade humana (sic). Que privilégios injustificados são esses? No interior de todo o Brasil, mesmo nos Estados mais ricos, como regra, os que têm direito à prisão especial ficam confinados numa cela (quando há…) separada das destinadas aos presos comuns, sem o menor respeito à dignidade humana. Somente aqueles que visitam as cadeias sentem o drama que ali se vive. A diferença de tratamento em relação ao preso comum consistirá, é o que se diz no anteprojeto, “exclusivamente em manter o especial em cela distinta da daquele e no transporte separado, até porque os demais direitos do preso já estão assegurados na Lei de Execução Penal” (sic). Que direitos são esses? Assegurados por lei é uma coisa, respeitados é algo bem diferente. E o desrespeito a esses “direitos” já chegou ao extremo de um penalista da envergadura de José Maria Rico advogar a volta das penas corporais para substituir as privativas de liberdade…porque o sofrimento não é tão duradouro e é menos doloroso…
O “local distinto da prisão comum”, na linguagem do Anteprojeto, ao que nos consta, não existe e nunca existiu, a não ser na retumbante literalidade do texto legal. Há mais de 20 anos, o então Deputado Ibrahim Abi-Ackel quando de uma visita à prisão, registrou a verdade nua e crua: “Os estabelecimentos prisionais onde se aplica o tratamento penal e as casas de recolhimento de presos, que se chamam casas de detenção, presídios, cadeias ou institutos penais, não passam de depósitos humanos, onde a degradação é a única resultante” (Relatório do DCN, 9-6-1977, p. 1.238, apud Weber M. B., Juizados Especiais, Forense, 1997, p. 281). De lá para cá a criminalidade aumentou e os espaços prisionais diminuíram…
O Governo deveria preocupar-se em propiciar condições condignas a todos os presos e não em extinguir um benefício que, na impossibilidade material de se estender a todos, favoreceu apenas a alguns, à semelhança do que se dá com o foro de prerrogativa de função.
Objetiva-se com a medida, ao que se tem propalado, extinguir o “privilégio” em homenagem ao princípio da isonomia. A frase soa bem aos ouvidos dos mal-informados. A circunstância de, em determinados casos as Autoridades permitirem, por exemplo, televisão e telefone celular nos locais reservados aos presos especiais não é motivo para se reduzir a prisão especial à sua expressão mais simples. O que se deve (se isso é regalia…) é punir esses “excessos”, é castigar quem os autoriza, mesmo porque a lei jamais permitiu tais “regalias”… O Decreto n. 38.016/55 só admitiu uma “vantagem”: “visita de ascendentes, descendentes, irmãos e cônjuge do detido, durante o expediente sem horário determinado podendo excepcionamente ser permitido o prolongamento do horário fora do expediente…”. O benefício era tão pífio que o Governo Fernando Collor revogou referido Decreto pelo de n. 11/91.
E perguntamos: quais os privilégios injustificados que a prisão especial propicia? Da forma como se pretende, e considerando a ausência de estabelecimentos distintos da prisão comum, todos cairão na vala imunda das nossas cadeias, e ali, malfeitores e intelectuais, bandidos e pessoas que exercem altas funções no cenário jurídico-político da nossa terra, presos provisoriamente e condenados, todos, absolutamente todos, serão nivelados e vão conviver numa irritante promiscuidade. Note-se que a prisão especial não é privilégio, mesmo porque para a sua obtenção basta a natureza da atividade que a pessoa exerça ou sua formação universitária, pouco importando se é branco, negro, pobre ou rico. Por falta de informação, o povo julga que a prisão especial é espécie de “hotel 5 estrelas”. Obviamente não é assim. Deveria tratar-se de estabelecimento distinto dos demais que integram o nosso sistema penitenciário (deveria…como diz a lei, mas não é), como homenagem à relevância das funções que determinadas pessoas exercem na nossa pátria e até mesmo à sua maior sensibilidade em face da formação universitária. Melhor seria fosse uma espécie de “menagem”, tal como disciplinada no CPPM. Se alguns desses presos são execrados pela mídia, ou mesmo pela “opinião pública”, não se segue deva a “prisão especial” ser reduzida a uma insignificância tal que equivalha à sua extinção. Não tem sentido pretender-se nivelar por baixo, em face de casos isolados, na ânsia de Executivo e Legislativo procurarem trocar apupos por aplausos de uma multidão ávida de repressão àqueles que conseguiram uma melhor condição de vida… Observe-se que é do nosso sistema procurar manter toda e qualquer pessoa presa provisoriamente separada daquelas já definitivamente condenadas, tal como diz o art. 300 do CPP. Mas, como não possuímos um sistema penitenciário estruturado, presos provisórios e condenados se aglomeram nos cárceres, que se tornam verdadeiros antros de perdição. Com bastante freqüência assistimos estarrecidos, pela televisão, a cenas deprimentes de rebeliões e mais rebeliões, desafiando a insensibilidade dos governantes.
Poucos sabem que essa prisão provisória, especial ou não, perdura enquanto não houver uma sentença condenatória trânsita em julgado. Após a condenação definitiva, todos se nivelam, e passam a sofrer os horrores dos nossos cárceres, nos quais a vida subumana é uma constante… O sujeito à prisão especial vai passar por essa experiência, queira ou não queira, pois foi sua opção de vida. E de lá sai, ou violentado, ou mestre na arte de imposturar ou velhacar… pois o nosso sistema prisional é assim e continuará assim… Temos dezenas e dezenas de condenados pela Justiça Federal, mas não possuímos uma Penitenciária federal… Temos recolhidos aos presídios cerca de 230 mil pessoas e celas para 100 mil… e ainda querem aumentar a população carcerária… e quando há rebeliões em face da vida subumana que os presos levam, entra a tropa de choque e tudo volta como dantes ao quartel de Abrantes…
Numa época em que o próprio legislador reconheceu que o nosso sistema penitenciário chegou a um total estado de falência a ponto de criar medidas alternativas para os condenados até 4 anos, transação nas infrações de menor potencial ofensivo e suspensão condicional do processo quando a pena mínima cominada não ultrapassar um ano, a minimização da prisão especial é um retrocesso sem nome. Em vez de restringi-la, dever-se-iam construir estabelecimentos diversos dos prisionais, para todos aqueles que fossem presos provisoriamente, dês que primários. Da forma como vai ficar, medidas alternativas, transação e extinção da prisão especial, vamos viver o quadro humorístico do “pezinho para frente…pezinho para trás…”.
Há o mal vezo de se identificar prisão especial com “regalias” para os presos. Prisão especial se cumpre em estabelecimentos distintos dos propriamente prisionais. Mas, se a medida anunciada tiver, de fato, por finalidade, preservar o princípio de que todos são iguais perante a lei, deve o legislador admitir o duplo grau de jurisdição às pessoas que gozam de foro pela prerrogativa de função, atribuindo o julgamento à Câmara ou Turma e apelo para o Pleno ou Órgão Especial; deve, também expungir do nosso ordenamento inúmeros privilégios (estes, sim, sem aspas) conferidos a muita gente tais como serviços dos Correios e Telégrafos, transporte aéreo, moradia, viagens ao exterior, veículos à custa dos cofres públicos…. Esses privilégios é que devem acabar, para que possamos orgulhar de não repetir o que dizia Montesquieu no século XVIII: “outrora a riqueza dos particulares fazia o tesouro público. Agora, porém, o tesouro público se torna patrimônio dos particulares. A República é um despojo, dizia ele, e a as força não é mais do que o poder de alguns e a licenciosidade de outros” (L’Esprit des Lois, Livro III, Cap. III)… Há, também, outros privilégios: não se pode prender em flagrante, em crimes afiançáveis, deputados federais, senadores, deputados estaduais, membros do Poder Judiciário, do Ministério Público e Advogados inscritos na OAB. Não pode ser instaurado processo em relação a senadores, deputados federais e deputados estaduais, sem autorização do órgão legislativo a que servir…
O fato de em casos isolados terem ocorrido regalias, para os beneficiados com prisão especial não é motivo para reduzi-la à sua expressão mais simples. E perguntamos nós: televisão, telefone, cama e almoço levado pelos familiares são regalias?. Mas, um dos nossos mais velhos anexins dizia: a um cão danado todos a ele…
Quando aqueles cinco ou seis Deputados Federais, os famosos anões do Orçamento, foram acusados de improbidade, ninguém advogou o fechamento do Congresso… Apenas a punição daquelas ilustres figuras do nosso mundo jurídico. E isso se fez. Mutatis mutandis, que sejam punidos aqueles que transmudaram a prisão especial em hospedagem de luxo (se é que aquilo era luxo), sem respaldo em qualquer dispositivo legal…mantendo-se, contudo, aquele mínimo que se pode conferir aos cidadãos não definitivamente condenados e que exercem funções de relevo na sociedade. Aqueles direitos a que fazem jus os presos a que alude a Lei das Execuções Penais e normas da Corregedoria dos Presídios, são palavras ao vento, porque continuamos sendo uma República de retóricos.
*Fernando da Costa Tourinho Filho
Membro aposentado do Ministério Público de São Paulo, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Araraquara