Nem armas, nem preconceitos

Marcos Rolim
Jornalista.

Há um referendo marcado para outubro no Brasil. A menos que o Congresso ceda ao lobby armamentista e resolva diferentemente, seremos convocados a decidir sobre a proibição da venda de armas. A idéia de colocar nas mãos do povo esta decisão está na Lei 10.826/2003, o “Estatuto do Desarmamento”, que tem agregado muitas críticas, especialmente daqueles que não o leram. Deveríamos, então, estar debatendo com profundidade o tema, mas há duas grandes barreiras a superar: o preconceito e o gosto pela simplificação.

Neste tema, a opinião que sintetiza o preconceito – vale dizer: a posição que se afirma antes da reflexão capaz de produzir o “conceito” – é aquela que diz: “querem desarmar as pessoas de bem, mas os bandidos continuarão armados”. É impressionante como um questionamento pueril como este se prolonga na opinião pública e o quanto a mídia brasileira tem sido cúmplice ao acolhê-lo de forma acrítica.

Nas modernas sociedades da informação massificada, aliás, a mentira só tem pernas compridas porque o pensamento crítico – já rarefeito na sociedade – é quase um incômodo nas redações. Pois bem, é pueril se dividir o tema das armas entre “armas nas mãos de pessoas de bem” X “armas nas mãos de bandidos” porque, primeiro, em torno de 60% dos homicídios em nosso país são cometidos por pessoas sem histórico criminal e por motivos fúteis e, segundo, porque a forma mais freqüente pela qual infratores comuns se armam é o furto e o roubo das armas adquiridas pelos “cidadãos de bem”. De outra parte, só o gosto pela simplificação pode amparar o argumento da dissuasão e o da auto-defesa. Ora, o uso da arma por um cidadão pode, é claro, impedir um crime.

A questão, entretanto, é saber se esta possibilidade virtuosa é significativa a ponto de se sobrepor às possibilidades trágicas associadas. Nos EUA (FBI Supplementary Homicide Report data, 1978-1998) um criminoso tem mais chances de ser morto por um raio do que pela arma de uma vítima. Eventos de reação armada das vítimas com o resultado morte do agressor são raríssimos. Já eventos de reação armada resultando em morte da vítima são muito freqüentes. Em 1998, nos EUA, para cada vez que uma mulher usou uma arma em defesa própria para matar o agressor – companheiro ou conhecido – 83 outras mulheres foram mortas por disparos de armas de fogo de seus companheiros ou conhecidos. Isso é assim em todo o mundo, menos nos filmes produzidos em Hollywood. Se somarmos a resultados do tipo os suicídios com arma de fogo e os acidentes com armas de fogo, teremos, ainda, universos pouco conhecidos e sempre negligenciados.

O que ocorre entre nós é que temas complexos, estudados ao longo de décadas, são triturados por pessoas que não possuem sequer o pudor de recolher evidências ou de fundamentar conclusões em pesquisas. O resultado é uma névoa onde todas as opiniões são pardas. Há argumentos legítimos e estudos não pagos pela indústria de armas que podem amparar uma política de armamento dos cidadãos, ao invés de desarmamento? É possível que sim. Seria interessante que fossem apresentados à consideração pública. O Brasil, afinal, só teria a ganhar com a honestidade intelectual e com a disposição sincera ao debate. E as nossas universidades, a propósito, o que podem nos dizer?

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