O Arras e o Código de Defesa do Consumidor

Marcelo Colombelli Mezzomo
Bacharel em Direito pela UFSM

1- Introdução

A presente abordagem tem por objeto aspectos referentes à interpretação do artigo 53 da Lei 8.078 ( código de Defesa do Consumidor) frente ao contrato de arras, buscando na doutrina e na juurisprudência a resolução da questão pertinente à existência de uma pretensa incompatibilidade entre o dispositivo supra- citado e a disciplina do Código Civil.

O Código de Defesa do consumidor representa a culminância de um longo processo de evolução jurídica direcionado ao reconhecimento de uma série de direitos de feição social, coletiva, compreendendo os direitos difusos ou transindividuais, os interesses ou direitos coletivos e os interesses ou direitos individuais homogêneos, nos termos do artigo 81 do CDC. Estes novos diretos apresentam-se matizados pela característica da ruptura com o esquema ortodoxo, haurido do direito civil, de direitos titularizados sempre pelo indivíduo, considerado em sua dimensão individual, como titular de direitos e obrigações. A concepção de um estado de bem-estar social, em contraposição a um Estado de cunho liberal, portanto avesso a intervenções e que representa mesmo a antítese de um estado interventor, legitima um plexo novo de visão, baseado em uma visão do indivíduo dentro de um contexto de sociedade. Cumpre ao Estado não só garantir ma esfera de liberdade individual, dentro da qual as ingerências de terceiros, inclusive do próprio Estado, não pode penetrar, o que representa o ideário liberal, mas também, propiciar condições para uma efetiva justiça social. Em síntese, há que transcender do plano abstrato das normas para a busca de uma concretização no mundo empírico dos comandos normativo, reconhecendo-se na norma jurídica uma dimensão social.

Esta postura dá ensanchas à políticas intervencionistas no domínio econômico, visando combater as distorções do mercado. A qualquer indivíduo de medianos conhecimentos é clara a supremacia do regime de economia de mercado sobre qualquer outro esquema até hoje tentado, e a história nos demonstra o acerto desta conclusão. Contudo, ao fazermos o apanágio da economia capitalista, não podemos esquecer que apresenta suas falhas e tem graves mazelas. Com efeito, certas práticas, estimuladas pelo regime de economia capitalista fundado na soberania exclusiva do mercado, como seria sua doutrina mais pura, não correspondem ás expectativas de comportamento de uma sociedade justa. Daí a necessidade de expedição de normas reguladoras das situações de tensão entre os direitos sociais e as pressões do mercado. É neste contexto que se insere a disciplina do CDC.

A sua aplicação naquele que é um dos ramos basilares do Direito Civil, qual seja o dos contratos, implica uma nova visão, na qual se redimensiona o contrato. Como bem lembra James Eduardo C. M. de Oliveira: ” O contrato sofreu uma reordenação dos seus dogmas, fenômeno mais pronunciado em algumas áreas, dentre as quais a das relações de consumo. Desse processo nasceu ma nova concepção de contrato em que a vontade perde a condição de elementos nuclear, surgindo em seu lugar elementos estranho às partes, mas básico para a sociedade como um todo: o interesse social”.[i] Também Cláudia Lima Marques[ii] assertoa: “A nova concepção de contrato é uma concepção sócias deste instrumento jurídico, para o qual não só o momento da manifestação de vontade (consenso) importa, mas onde também e principalmente os efeitos do contrato na sociedade serão levados em conta”. E emenda que: “À procura do equilíbrio contratual, na sociedade de consumo, o direito destacará o papel de lei como limitadora e como verdadeira legitimadora da autonomia da vontade”. Terminando por concluir que: “Haverá um intervencionismo cada vez mais de Estado nas relações contratuais, no intuito de relativizar o antigo dogma da autonomia de vontade com as novas preocupações de ordem social, com a imposição de um novo paradigma, a princípio da boa – fé objetiva”. (p. 102).

Na tentativa de normatização das relações de consumo de forma a pô-las em moldes de uma tolerabilidade em confronto ao princípios do Estado Social, o CDC marca-se pela busca incessante de tutela em favor da parte mais fraca da relação, permitindo, inclusive, a revisão da relação contratual, em franca oposição ao pacta sunt servanda[iii]. O artigo em análise ( 53 do CDC) trás limitações à possibilidade de perda das parcelas já pagas. Resta-nos fazer o cotejo entre o sobredito dispositivo e a disciplina do contrato de arras.

2- Âmbito de aplicação do CDC.

Antes contudo de adentrarmos especificamente na questão do confronto entre a disciplina do Arras no Código Civil e o preconizado pelo CDC no artigo 53, mister se faz tratarmos do âmbito de abrangência temporal do CDC. Neste passo, considerações acerca da natureza das normas entram em pauta, trazendo em consideração a possibilidade de retroatividade da norma consumerista.

Na esteira desta opinião, encontramos v. g, aresto da 11ª Câmara Cível do TJSP, referente á apelação nº 197.165-213, no qual o Des Pinheiro Franco afirma: Muito embora controvertida a questão da retroatividade da lei que contenha comando de ordem pública e interesse social, como o CDC, há que se considerar o entendimento isolado deste magistrado no sentido de que tal lei, justamente por comportar princípios de ordem pública e de interesse social, atingem fatos pretéritos ora em julgamento.” Em doutrina, embasa-se em artigo do juiz Antônio de Padua Ferraz Nogueria, do 1º TACSP ( referente à Lei 8.009/90), em Carvalho Santos ( Código Civil Brasileiro Interpretado, v. I, p. 50/51 da 7ª ed), em Miguel Reale ( Lições Preliminares de Direito, p. 154), bem como em Alípio Silveira, que trás à colação a balisada opinião de Ennecerus, Stamler e Geny, na Alemanha e França .

A opinião esposada pela maioria, no entanto, não vai por este caminho, não admitindo a retroatividade do CDC, a começar pelo voto vencido do Des. Salles Penteado no aresto acima citado. Ainda, embargos infringentes 228992-28-01, 11ª Câmara do TJSP, rela Des, Mohamed Amaro, cuja ementa trás: ” Inaplicável os preceitos do CDC a compromisso de venda que lhe é anterior, pois é defeso ao juiz aplicar lei nova a negócio jurídico aperfeiçoado sob o império de lei anterior, sob pena de violação doa rt. 5º, inc. XXXVI, da CF”.[iv] também, no mesmo diapasão, a apelação 218909-210, também da 11ª Câmara , tendo por relator o Des. Itamar Gaiano, encimada na seguinte ementa: ” Avença ajustada anteriormente à promulgação da Lei 8.078/90. Inaplicabilidade do CDC. Consagração do princípio da irretroatividade da lei, art. 5, XXXVI da CF.”[v]

Quanto à esta questão, entendemos cabível a possibilidade de retroatividade do CDC para abarcar avenças celebradas em período anterior à sua vigência, ainda que se constituam atos jurídicos perfeitos. A tanto somos levados a concluir pela natureza das normas em apreço, feito um cotejo dos valores em questão à luz de elementos que se constituem nos fundamentos basilares da ordem constitucional. Há que prevalecer o elementos teleológico não só das normas individualmente consideradas, mas do sistema normativo como um todo, incluindo-se aí o sistema normativo constitucional.

De fato, os dispositivos constitucionais, assim como o próprio sistema, devem ser observados à luz dos fundamentos inseridos nos artigos 1º e 3 da Constituição Federal. Ali, no artigo 1º, inciso II, se fala na cidadania como fundamento do Estado Brasileiro. No artigo 3º, temos menção dos objetivos da ordem constitucional, dentre os quais figura construir uma sociedade livre, justa e solidária. Estes são elementos teleológicos que iluminam a compreensão e aplicação de todas as normas constitucionais, até mesmo os direitos e garantias individuais, contemplados no artigo 5º. Logo, a exegese da normas constitucionais não deve produzir resultados que representem a negação destes fundamentos e objetivos.

Desta forma, quando falamos no direito de respeito ao ato jurídico perfeito, a inteligência dos dispositivo deve conduzir a resultados que não sejam a negação do quanto previsto nos artigos 1º e 3º da CF/88, cabendo temperamentos na rigidez dos dispositivo do artigo 5º, inc. XXXVI. Por outro lado, o direito do consumidor está intimamente ligado à cidadania, sendo mesmo um de suas facetas. Entender-se absoluto o dogma da irretroatividade da lei ante o ato jurídico perfeito, ter-se-ia que teríamos resultado discrepante dos fundamentos e princípios constitucionais.

Não se pode olvidar, de outra banda, que inexistem direitos absolutos na ordem constitucional, nem mesmo a vida é direito absoluto. Por isto, se ordem jurídica vigente contempla uma nova visão mais solidarista, esta concepção se irradia por todo o ordenamento, traduzindo-se em uma perspectiva pela qual deve ser interpretado a aplicado o direito.

3- O Arras e o artigo 53 do CDC.

Estabelecido que o âmbito de aplicação do CDC atinge os contratos firmados antes de sua vigência, resta-nos entrar na questão que é o ponto nodal de nossa abordagem, ou seja, o cotejo entre o instituto do arras e o artigo 53 do CDC.

Primeiramente é preciso que s estabeleça que a arras que tratamos é a arras penitencial, ou seja, aquela estipulação feita em vista de exercício do direito de arrependimento, nos termos dos artigo 1.095 e 1.097 do Código Civil. Os citados dispositivos prevêem a perda das parcelas por parte daqueles que as deu se houver arrependimento ou impossibilidade de cumprimento da prestação. Caso o causador seja o que recebeu as parcelas, restituí-las-á em dobro.

O artigo 53 do CDC prevê a nulidade de pleno direito das cláusulas que em promessa de compra e venda de imóveis e alienação fiduciária, permitirem a perda total das prestações pagas em caso de rescisão contratual. Uma contraposição dos dispositivos em apreço traz uma aparente contradição, de modo a que, fôssemos aplicar o princípio de que a lex postrirori revoga a lex priori, teríamos que a arras estaria expungida de nosso ordenamento. Esta conclusão, contudo, é só aparente.

Com efeito, o dispositivo do artigo 53 do CDC deve ser interpretado conjuntamente com o artigo 52, parágrafo único, do mesmo diploma, onde se prevê limitação às multas demora ao valor de 10% da obrigação. Este parâmetro, o de 10%, se nos parece aplicável a qualquer caso em que estejamos falando de compensações devidas a o não-adimplemento do quanto avençado. Logo, quando tratamos de perda das parcelas pagas, poderemos ter por base este percentual. Desta forma, se a perda total das parcelas aludida no artigo 53 do CDC mantiver-se em valores inferiores aos 10% da obrigação, não vemos porque decretar nulidade. É certo que o artigo 52 tem uma aplicação específica, no entanto, quando tomamos o percentual ali versado, o fazemos analogicamente, pois neste percentual consta um parâmetro genérico que representa a avaliação e condensação do valores axiológicos da sociedade, e que portanto, servem de base para qualquer caso.

De fato, não haveria motivo algum para permitir-se em um caso o pagamento de multa em valores de 10%, e não permitir-se no outro a perda das parcelas pagas, o que nada mais é do que uma forma de penalização. Se há um dispositivo permitindo a penalização e outro vedando a perda das parcelas, há que compô-los de modo a manter-se a plena vigência de ambos. Não é por outra razão que tem sido aplicada a combinação dos artigo 53 do CDC com o artigo 924 do CC, de modo a limitar a possibilidade de atribuição de valores de cláusula penal a uma quantificação de não seja exorbitante, ou seja, em última análise, não seja uma fonte de enriquecimento indevido, o que a nova ordem jurídica quer coibir.

4- Conclusões

O instituto do arras subsiste, limitado porém, pela nova sistemática do CDC, que serve de repositório legal para todo o sistema, direta ou indiretamente, porquanto patenteia uma nova mentalidade no trato negocial, de todo infensa ao desequilíbrio.

Desta forma, lícita se afigura a utilização da arras, desde que o seu valor se atenha dentro de parâmetros razoáveis, e não sirva de fonte de enriquecimento sem causa, tanto mais quando oriundo de infortúnios e imprevistos de uma das partes. Desta forma, de par com o respeito à eqüidade hoje buscada nos negócios, estar-se-á preservando a eficácia deste instituto, que muito serviu e muito ainda pode servir a sociedade.

[i] O direito de arrependimento do consumidor nas promessas de compra e venda de imóveis, RT 735, p. 108.

[ii] [ii]. Contratos no Código de Defesa do Consumidor, RT, 3ª ed., 1999, p. 101

[iii] Especificamente sobre a relativização do “pacta sun servanda”, através da Teoria da Imprevisão ver Arnaldo Rizzardo, Contratos, Aide, 1ª ed., 1988, v. 1, p. 243 – 245. Renata Mandelbaum, Contratos de Adesão e Contratos de Consumo, RT, 1996, v. 9, p. 92. Roberto Ruggiero, Instituições de Direito Civil, Bookseller, 1ª ed., 1999, v. 3, p. 350. Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil, Max Limonad, 2ª., v. 4, t. II, p. 754. Carvalho Santos, Código Civil Brasileiro Interpretado, Freitas Bastos, 7ª ed., 1964, v. XV, p. 212. Caio Mário, Instituições… cit., v. III, n. 216, p. 98. Cretella Junior, Direito Administrativo, cit., n. 257, p. 371 e Tratado de Direito Administrativo, Forense, 1ª ed., 1967, v. III, p. 70 – 83.

[iv] RT 733/204

[v] RT 706/82

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