Da inconstitucionalidade do Projeto de Lei que busca o aumento da pena máxima de prisão penal

Arivaldo Santos de Souza; André Canuto de Figueiredo Lima; Gustavo Adolfo Menezes Vieira
Acadêmicos de Direito da UFBA

Abstract:

The following article intends to demonstrate the recents tentatives of increasing the penal prison´s quantum, captained by the “law and order” movement, collide themselves frontally with the constitutionals principles.

Resumo:

O presente artigo visa demonstrar que as recentes tentativas legais de se aumentar o quantum da pena de prisão penal, capitaneadas pelo movimento lei e ordem, chocam-se frontalmente com princípios constitucionais.

Sumário: I. APRESENTAÇÃO. II. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS. 2.1 Proporcionalidade. 2.2 Dignidade da Pessoa Humana. 2.3 Humanidade das Penas. III. AUMENTO DO LIMITE MÁXIMO DAS PENAS. 3.1 Estudo da Constitucionalidade à Luz dos Princípios Considerados. IV. CONCLUSÃO. BIBLIOGRAFIA.

I. APRESENTAÇÃO

O presente artigo tem como objetivo demonstrar a inconstitucionalidade do aumento do limite máximo da pena de prisão, de 30 para 40 anos.

A citada pretensão de aumento das penas corresponde a um Projeto de Lei apresentado no Senado pelo Senador José Sarney, Presidente da Casa.

Para fazê-lo, iremos nos basear em 3 princípios Constitucionais: o Princípio da Proporcionalidade, o Princípio da Humanidade das Penas e o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.

II. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

2.1 Proporcionalidade

Ao tratarmos do princípio da proporcionalidade, devemos saber que se trata de um princípio que está intimamente ligado ao princípio da razoabilidade, já que a razoabilidade é pautada nos termos de que o que é razoável é baseada na razão e deve ter como diretrizes orientadoras o equilíbrio e a moderação.

A razoabilidade (e aqui já podemos entender a proporcionalidade) norteia as ações Estatais, uma vez que estas devem ter em vista seus motivos, seus fins e suas criações. E a norma que é posta pelo Estado, ao exercer seu direito de criar normas, também deve se pautar nesses três elementos. Ora, será que um aumento da pena máxima para 40 anos iria beneficiar em alguma coisa a sociedade ou iria retratar o apenado? Entendemos que não. E nossos entendimentos serão devidamente fundamentados ao longo deste trabalho.

Luís Roberto Barroso, em excelente obra, ao tratar do tema, afirma que o princípio da razoabilidade ao influenciar a produção da norma deve ser encarado sob o seu aspecto interno e externo. O primeiro significa que deve haver uma “relação racional e proporcional entre seus motivos, meios e fins”. Quanto ao aspecto externo, defende o autor, as normas devem se adequar a meios e fins propostos. Devemos lembrar que quem tem a maior característica de estabelecer fins e meios que norteiam a produção de normas é a Constituição Federal, principiológica por excelência. Logo, o legislador, ao tratar de matéria penal ou qualquer outra matéria, deve observar os princípios constitucionais. Canotilho explica bem essa relação: “Entre o fim da autorização constitucional para uma emanação de leis restritivas e o exercício do poder discricionário por parte do legislador ao realizar esse fim deve existir uma inequívoca conexão material de meios e fins”[ii].

A doutrina consolidou o entendimento que estuda a proporcionalidade tendo três requisitos: adequação, exigibilidade e proporcionalidade em sentido estrito.

A adequação se faz necessária, pois representa a exigência das medidas públicas serem aptas a atingir seus objetivos.

Quanto à necessidade, esta determina a busca pelo meio menos gravoso para atingir o fim objetivado.

Por fim, a proporcionalidade em sentido estrito representa a relação entre as vantagens e desvantagens, sendo imprescindível que aquelas sejam maiores que estas. Nas palavras de Barroso, “é a ponderação entre o ônus imposto e o benefício trazido, para constatar se é justificável a interferência na esfera dos direitos dos cidadãos”[iii].

O grande Francisco de Assis Toledo faz uma elucidativa explanação à respeito da adoção dos modernos princípios de direito penal, na qual aborda o princípio da proporcionalidade: “Seria enorme incongruência acolherem-se princípios como o da ‘insignificância’ e o da ‘adequação social’ para excluir o crime, e, ao mesmo tempo, deixar de acolher princípios análogos, como o da proporcionalidade, para impedir que se matem seres humanos por ninharias, em nome de uma ‘lógica’ que nada tem de ‘humana’ ou sequer de ‘razoável’”[iv].

2.2 Dignidade da Pessoa Humana

As idéias (como proposições) advêm da filosofia, sagram-se na moral e se consubstanciam com o Direito. Desse modo, o principio da dignidade da pessoa humana, concebida como uma idéia, surgiu no plano filosófico como categoria de pensamento,para em seguida ser consagrada como valor moral ao qual, finalmente, agregou-se um valor jurídico.

Em linhas gerais, o conceito primário da dignidade humana adveio com o catolicismo sendo desenvolvido pelos escolásticos. No contexto moderno, tal conceito sofreu uma grande contribuição através de Kant. Segundo este, o homem é um fim em si mesmo e por isso tem valor absoluto, não podendo ser usado como instrumento para algo; possuindo, portanto, dignidade.

A origem e o desenvolvimento do conceito de dignidade da pessoa humana perpassa pela própria construção do ideal de princípios. Nesse sentido, salutar é reproduzir a teoria de Robert Alexy. Para o ilustre teórico, a base compreensiva dos princípios remete à sua natureza de mandados de otimização. Estes mandados impeliriam o intérprete dentro das possibilidades reais e jurídicas a não aplicar a mera exegese das normas positivas, mas imprescindivelmente, adequar o caso concreto à luz dos direitos e princípios constitucionais fundamentais[v].

Vale salientar que o ideário de ordenamento jurídico alicerçado em uma constituição embasada em princípios avulta precipuamente a partir do Iluminismo e das revoluções burguesas do século XVIII. Destarte, no pensamento contemporâneo, a questão da dignidade da pessoa humana vem consolidando-se como alicerce do ordenamento jurídico em diversos países do mundo, desde Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, acentuadamente após a derrota do nazi-facismo com a etnocêntrica[vi] declaração da ONU de 1948.

Dalmo Dallari preconiza que as constituições desde a Revolução Francesa trazem em seu bojo dois aspectos basilares: a defesa das garantias e direitos fundamentais do indivíduo e a organização do estado sob um viés limitador. Ambos aspectos integrantes, complementares e indissociáveis. As constituições atualmente, portanto, possuem um caráter programático e democrático voltado para a concretização dos valores por ela enunciados.

Nesse contexto, o advento da Constituição pátria imputou o valor da dignidade da pessoa humana como princípio máximo de categoria superlativa. Nesse sentido a hermenêutica constitucional é pacífica em estabelecer que os dispositivos constitucionais garantistas de direitos individuais e coletivos, não são meros ditames de obediência contingente (normas ociosas, nos dizeres de Ruy Barbosa), mas sim normas jurídicas de aspecto principiológico e dotadas de poder vinculante. Reiterando, a necessidade de adequação principiológica do ordenamento frente à constituição intentando respeito aos direitos humanos fundamentais é parâmetro hermenêutico consensual moderno. Todos os ramos do direito devem, portanto, adequar-se, nos dizeres de Konrad Hesse, à “vontade da constituição”. Nessa linha encontramos Gustavo Tepedino adaptando os predicados civis frente à órbita constitucional, e Luiz Flávio Gomes trazendo ao bojo do estudo jurídico a Teoria Penal-Constitucional.

A aplicabilidade de uma política criminal está relacionada com o modelo político de estado que, por sua vez, enseja os parâmetros do direito e execução penal. Seus elementos constituem um verdadeiro amálgama.

Entretanto, o caos vigente nas execuções penais, a instabilidade social, a falta de credibilidade institucional, os surtos de violência e os corriqueiros casos de impunidade acabam gerindo no mais das vezes, no que pese dispositivos constitucionais impeditivos, um recrudescimento do Jus Puniendi estatal. Como bem denuncia Aury Lopez Junior[vii], esse contexto faz surgir políticos oportunistas que dão força ao Movimento Lei e Ordem, o qual gera uma verdadeira inflação legislativa ou nos dizeres de Francesco Carrara uma “nomorréia” de normas draconianas como se estas fossem a ratio solutio da violência social.

Surge a partir daí uma “legislação do terror”, como nos casos de lei dos crimes hediondos, do regime disciplinar diferenciado, ou do projeto de lei em trâmite no Congresso que visa o aumento da pena máxima restritiva de liberdade para 40 anos e cuja problemática é o corte do presente artigo e sua análise mais aprofundada dar-se-á em tópico próprio.

É importante frisar, não obstante, que a dignidade do homem e os outros dispositivos garantistas constitucionais[viii] frente ao sistema penal e seu jus puniendi não são elementos excludentes sendo plenamente possíveis de serem utilizados em conjunto em nome da harmonia e bem estar social.

2.3 Humanidade das Penas

No que pese posição da sociologia e antropologia moderna sobre o conceito de “evolucionismo” social, não podemos deixar de considerar que a Teoria da Pena avançou significantemente nos últimos séculos no mundo ocidental, perpassando por períodos que aplicavam-se espécies de penas como as galés, trabalhos forçados, dentre outros, nas quais a prisão figurava somente como ante-sala dos suplícios. A supressão desses suplícios, torturas, e dos hediondos espetáculos ocorreu paulatinamente consagrando-se com o advento dos direitos humanos e sua positivação nos ordenamentos jurídicos a nível mundial.

Michel Foucault na parte inicial do corpo de sua obra Vigiar e Punir traz à tona o escopo do veículo punitivo até então imposto na sociedade medieval européia. Quem leu o livro decerto não esqueceu a terrível descrição da pena infligida a Damiens[ix].

Segundo sequiosa preleção de Foucault, as punições tal qual as sanções jurídicas não são frutos puros e simples do direito e de estruturas sociais e sim possuem seu matiz em uma “tecnologia de poder”. Destarte, na Idade Média, essa tática política refletida na aplicação das penas visava reavivar o poder do soberano, dando vazão com o advento das revoluções burguesas do século XVIII, a um novo parâmetro desenvolvido até o presente inicio do século XXI. Esse novo parâmetro de “tecnologia do poder” adveio com o amadurecimento das instituições democráticas na qual a pena passa a revestir-se de um caráter incorpóreo baseado precipuamente na proporcionalidade, legalidade o e humanidade.

O grande marco para a mudança desse paradigma jurídico arbitrário foi deveras a grande obra Dei deliti e delle peine do Marquês de Beccaria que apontou os pressupostos de uma nova teoria do Direito Penal[x].

À guisa desse predicado moderno de aplicação penal não se permite penas cruéis, bárbaras, infamantes ou que deixem marcas indeléveis. Esse impedimento da degradação do indivíduo e garantia de sua incolumidade adveio de um microcosmo de poder construído em observância com o principio democrático de dignidade da pessoa humana, corolário do principio da humanidade.

A ratio essendi desse principio, basilar de um estado democrático de direito, é servir de alicerce, de pedra angular na construção de um direito penal que vise à humanização dos efeitos da ultima ratio do ordenamento jurídico garantindo o respeito dos direitos fundamentais do ser humano.

Embasado e construído sob a égide desse instituto, devemos avaliar se a dogmática penal em seus institutos o observa de maneira razoável em nosso país. A análise deve levar em conta especialmente a espécie sancionadora mais rígida em nosso sistema que é a pena privativa de liberdade[xi]. Deveras, essa espécie penal no mais das vezes incute problemas no indivíduo dificultando sua ressocialização quanto mais tempo passar encarcerado gerando marcas psicológicas indeléveis.

Não obstante é fulcral a análise do contexto fático falido em que se encontra o sistema penitenciário hoje que atua como fator criminógeno. A dramática situação das prisões com superlotação, violência e corrupção no nosso país é um ultraje à constituição um acinte à lei de execuções penais. No Brasil a população carcerária já ultrapassa a casa dos 170 mil presos para pouco mais de 60 mil vagas ideais, existindo, de outro lado, perto de 360 mil mandados de prisão expedidos aguardando cumprimento[xii]. Nas origens do sistema prisional, este possuía originariamente como características vigilância continua, disciplina, obrigações combate ao ócio reestruturação do homo economicus. Tais predicados são já plenamente questionáveis pela doutrina nacional e estrangeira em um modelo ideal quiçá no modelo completamente falido que é o modelo nacional.

Uma política criminal consubstanciada de acordo com o principio da dignidade da pessoa humana e no principio de humanidade das penas deve levar em consideração esses aspectos. Fatores estes que lesam o principio de humanização das penas, ensejando não unicamente a adoção de penas alternativas de acordo com a periculosidade do agente como a inconstitucionalidade do projeto de lei em trânsito no Congresso Nacional que pleiteia o aumento do limite máximo da pena privativa de liberdade.

III. AUMENTO DO LIMITE MÁXIMO DAS PENAS

É incompatível com um Ordenamento Jurídico que em seu Texto Maior garante a inviolabilidade do direito à liberdade (caput do art. 5º da CF), funda o Estado Democrático de Direito na Dignidade da Pessoa Humana (inciso III, art. 1º da CF) e quer reger-se nas relações internacionais pelo respeito aos Direitos Humanos (inciso II, art. 4º da CF) aplicar uma sanção privativa de liberdade por quarenta anos a um indivíduo. Dizendo mais claramente, consideramos que tal pretensão está assinalada de inconstitucionalidade.

Cumpre-nos, também, o papel de denunciar a tentativa de “burlar” a alínea b, do inciso XLVII, do artigo 5º da nossa Carta Cidadã[xiii] por via transversa, tendo em vista que o aludido inciso veda a adoção de penas de caráter perpétuo. Ora, segundo o IBGE, em nosso país a expectativa de vida é de 68,4 anos[xiv], ao nascer, logo a apenação de uma pessoa por período igual a quarenta anos lhe retirará a possibilidade de sair com vida do sistema carcerário, se lá tiver entrado com mais de 28, 4 anos.

Além do que, qual o crime que está a justificar proporcionalmente a privação total do tempo de vida de alguém? Nossa Constituição, afinada com princípios de valorização do homem, fez, muito claramente, suas opções de Política Criminal. Por isso, vedou definitivamente a adoção da pena de morte em tempos de paz (alínea a, inciso XLVII, artigo 5º) e, agora, não tolerará Projeto de Lei de qualquer congressista, como por exemplo, o projeto de lei do Senado Federal nº 66 de 17/03/2003, de autoria do Senador José Sarney, vocacionado a ferir os princípios por ela defendidos. É contra projetos como esse que nos posicionamos.

Ademais, o endurecimento do regime de progressão de penas, o aumento das mesmas e outras medidas adotadas nesse sentido já se mostraram mais do que incapazes de exercer a função de prevenção geral satisfatoriamente, controlando e diminuindo a criminalidade, por exemplo, nosso país exibe uma taxa de 23 homicídios por grupo de cem mil habitantes, ao passo que o Japão tem uma média de um homicídio por grupo de cem mil habitantes.

Igual inidoneidade vemos ao observar a não consecução dos fins de prevenção especial, sempre que aferimos os níveis de reincidência.. Tal comportamento é fruto de uma concepção do Direito Penal em superação e divorciado das demais Ciências Criminais. É incompreensível que após décadas o pensamento do legislador ainda seja influenciado pela idéia de que a pena deve ter um caráter de vingança, castigo. Assim nos parece ser o pensamento dos ilustres representantes do povo nas Casas Legislativas.

São de tamanha pertinência as palavras do ilustre penalista Garcia-Pablos de Molina: “Atualmente, entende-se que política criminal, criminologia e direito penal devem caminhar no sentido de um modelo integrado, imposto pela necessidade de um método interdisciplinar e pela unidade do saber científico. A criminologia deve incumbir-se, assim, de fornecer o substrato empírico do sistema, seu fundamento científico; a política criminal, de transformar a experiência criminológica em opções e estratégias concretas de controle da criminalidade; por último, o direito penal deve encarregar-se de converter em proposições jurídicas, gerais e obrigatórias, o saber criminológico esgrimido pela política criminal”.[xv]

Devemos ter o maior cuidado sempre que uma pena for cominada num caso concreto, uma vez que é manifesta a impossibilidade de nosso sistema prisional cumprir os fins que as penas pretendem alcançar, e, em contrapartida, a valoração da proporcionalidade abstrata ou legislativa tem que se orientar segundo os fins da pena e do Direito Penal. Aquela, com efeito, não é um fim em si mesma e muito menos deve ser usada com objetivos de retribuir o mal causado pelo agente, como querem as teorias absolutas.

Então, cabe-nos perguntar: uma associação humana assentada em base territorial, para garantir as condições vitais de reprodução e existência carece de levar uma pessoa por tão longo tempo para a clausura? E mais, acreditando que está “ressocializando” o mesmo? A função da pena deve ser evitar que condutas desagregadoras precipitem a sociedade num despenhadeiro. A necessidade a que ele se refere será aferida pela culpabilidade, limite e pressuposto da pena. A ressocialização para qual convívio poderá defender os que propugnam por essa disfarçada pena perpétua?

Em um Estado Democrático de Direito, os únicos significados válidos são aqueles compatíveis com as normas constitucionais substanciais e com os direitos fundamentais por elas estabelecidos. Conforme sustenta o professor Luiz Flávio Gomes, defendendo o Garantismo-Constitucionalista, “Evitar a vingança privada estabelecer um conjunto de garantias frente ao ius puniendi, reduzir a violência, inclusive a estatal, também são fins do Direito Penal, protegido, amparado pelo nosso Ordenamento”[xvi]. A dogmática penal deve estar político-criminalmente orientada, segundo as bases do Estado Constitucional de Direito (Funcionalismo).

Para concluir o rol de argumentos que demonstram a inépcia de tal medida, lembramos da Razão. Pois, não abriga Razão tal posicionamento, o qual, apesar de saber da inidoneidade e da inconveniência, quer ver a Ordem principiológica erigida pela Constituição ultrajada.

3.1 Estudo da Constitucionalidade à Luz dos Princípios Considerados

No que tange à Proporcionalidade, um estudo simples é capaz de demonstrar a inconstitucionalidade que atinge o referido Projeto de Lei, tendo como base o que já foi exposto no devido capítulo.

As normas penais produzidas pelo legislador e as decisões proferidas pelas autoridades competentes deverão sempre, principalmente no direito penal, observar a razoabilidade e a proporcionalidade.

Trata-se de questão pacífica, ainda que pelo senso comum, o fato de que as normas penais deverão se basear em motivos, meios e fins. Tratemos agora dos requisitos da Proporcionalidade aplicada no direito penal.

A adequação de uma norma penal é indispensável no momento de sua criação, visto que o legislador e o juiz deverão, ao legislar e resolver, apreciar tais medidas para saber se elas atingirão seus objetivos. É evidente que uma pena de 40 anos não atinge nenhum objetivo do Direito Penal moderno.

No que se refere à necessidade, devemos ter bastante atenção, pois esta preconiza a busca pelo caminho menos prejudicial para se atingir o fim objetivado. E, ao tratarmos de direito penal, muitas vezes lidamos com a liberdade de um ser humano, e não podemos deixar que direito tão valioso seja ferido à toa, principalmente mantendo um indivíduo preso por 40 anos numa penitenciária.

Finalizando a análise dos requisitos, deve sempre o legislador penal buscar a ponderação para saber se teremos benefícios com suas medidas normativas. Ora, nada justifica a prisão de um ser humano por 40 anos. Nenhum benefício nos seria trazido com tamanho aumento.

Analisemos, agora, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. O ideário garantista da dignidade humana, positivado na constituição, figura como uma unidade axiológica dentro do sistema penal. Em vista que “a dignidade da pessoa humana é a pedra angular sobre que deve ser construído todo o monumento do sistema penal (…) além de fundamento, o ideal humanitário passa a ser considerado como uma unidade axiológico-penal funcionando como um paradigma geral e imperativo na dinâmica do sistema penal, desde a escolha da política criminal até a execução das conseqüências jurídicas do delito, passando pelo processo legislativo penal e por todos os fatores envolvidos com a aplicação da ordem penal.”[xvii]

Abstraiamos, por conseguinte, um outro duplo contingenciamento de ação penal. Além de sua clássica função protetora de tutela de bens jurídicos relevantes, existe também a função garantista de que o sistema penal e a própria política criminal pautar-se-ão no corolário de preservação da dignidade do agente infrator.

Como poderiam os idealizadores de uma pena de 40 anos fundamentar o respeito ao referido princípio? Infelizmente, eles não conseguiriam. Pensamos que em nada fica preservada a dignidade de um apenado que passa 40 anos de sua vida encarcerado.

Para finalizar o estudo dos princípios nos quais sustentamos nosso pensamento, trataremos do Princípio da Humanidade das Penas. Na sistemática penal moderna no que pese o crime ser realidade inexorável de todas sociedades como assertoa Dworkin, bem pontua Luiz Flávio Gomes ao dizer que “o princípio da humanidade das penas não permite que a justiça humana faça uso, nas punições, da mesma irracionalidade do criminoso”[xviii]. Assim, através das excelentes palavras do autor, fica claro que a proposta de aumento da pena máxima viola também esse princípio.

Atualmente é escopo do direito penal ligado intrinsecamente à dignidade da pessoa humana a necessidade de responsabilidade social em relação ao sentenciado com direito à assistência para sua recuperação. Destarte nossa Carta Magna sagra a proscrição de penas que contrariem o principio da humanidade[xix], dando vazão às penas racionais auferindo inconstitucionalidade de seqüelas jurídicas ou físicas do delito, no que pese a estigmatização inexorável do agente que se ver envolto pela esfera penal devido à prática de algum ilícito.

Vale pontuar que por mais que o ordenamento jurídico esteja embasado nesses princípios constitucionais, a aplicação do jus puniendi não tem como abstrair de sua ontologia a violência. Deveras, o Direito Penal é um “mal necessário”, um remédio amargo necessário a uma sociedade de “seres imperfeitos”. Desse modo, os fins da pena “não podem ser alcançados sem dano e sem dor (…) dentro dessas fronteiras, impostas pela natureza de sua missão, todas as relações humanas reguladas pelo direito penal devem ser presididas pelo principio de humanidade”[xx].

IV. CONCLUSÃO

Assim, chegamos à conclusão de que a alteração do art. 75 do Decreto-Lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal para aumentar o tempo máximo de cumprimento da pena privativa de liberdade de 30 (trinta) para (40) quarenta anos se traduz em medida que ataca nossa Carta Magna, promulgada em 1988.

Começando pelo princípio da Proporcionalidade, o projeto de lei que visa aumentar a pena máxima, não conseguiria atingir seu fim objetivado (requisito da adequação). Além disso, esta não é a medida menos danosa para se chegar à proteção da sociedade e garantir a segurança pública (requisito da necessidade) e os malefícios gerados não são menos onerosos que os possíveis benefícios trazidos (requisito da proporcionalidade em sentido estrito).

Passando pelo princípio da Dignidade Humana, o próprio Senso Comum nos possibilita perceber que a elevação a 40 anos da pena de prisão é uma medida absurda, que desrespeita inteiramente o citado princípio. Não entendemos que 40 anos dentro de uma penitenciária irá retratar o apenado, principalmente porque todos os seus direito já foram desrespeitados.

Por fim, quanto à Humanidade das Penas, é inaceitável que 4 décadas numa prisão representem o respeito ao referido preceito, haja vista que este pressupõe a possibilidade de delação das marcas mais fortes de uma pena de prisão.

Portanto, estão listados os nossos argumentos para justificar a inconstitucionalidade do supracitado Projeto de Lei. Cabe a nós a espera por uma reflexão cautelosa e uma decisão sensata das Casas Legislativas Brasileiras. Esperamos, por fim, que o movimento de “Lei e Ordem” não contamine nossos legisladores, que podem terminar por cobrir com a mácula da injustiça nosso derrocado sistema penal.

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[i] Barroso, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. Saraiva, 1998. p. 206

[ii] Canotilho, J.J. Gomes, Direito Constitucional, cit., p. 488 Apud Barroso, Luís Roberto Idem p.208.

[iii] Barroso, Luís Roberto. Idem. p.209

[iv] Toledo, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. Saraiva, 1994. p. 203

[v] Nesse sentido bem assevera Luiz Flávio Gomes: “O juiz constitucionalista trabalha com princípios constitucionais e busca a solução do justo em cada caso concreto”. Grifos nossos.

[vi] Apesar da ojeriza que alguns teóricos nutrem pelo etnocentrismo é necessário observar que a os valores contidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos carrega dentro da própria nomenclatura a pretensão de uma universalidade a valores geridos notadamente pela cultura ocidental . Sobre tal observação de ordem ontológica, coadunamos com a escola francesa a qual, no que pese esse aspecto, não encontra restrição de aplicabilidade ou difusão a nível mundial dos referidos direitos humanos.

[vii] Palestra proferida no II Congresso de Direito Constitucional Aplicado realizado na cidade de Salvador em agosto de 2003.

[viii] Tais como no art. 5o., III, XLII, XLIII, XLVIII, XLIX, L da CF conforme magistério do ilustre mestre J.J Gomes Canotilho.

[ix] “ Damiens fora condenado, a 2 de março de 1757], a pedir perdão publicamente diante da porta principal da Igreja de Paris [onde devia ser] levado e acompanhado numa carroça, nu, de camisola, carregando uma tocha de cera acesa de suas libras; [em seguida], na dita carroça, na praça de Grève (…)]. Essa última operação foi muito longa, porque os cavalos não estavam afeitos à tração; de modo que, em vez de quatro, foi preciso colocar seis; e como isso não bastasse, foi necessário desmembrar as coxas do infeliz, cortar-lhe os nervos e retalhar-lhe as juntas”…

[x] Vale transcrever trecho do livro: “… a pena deve ser, de modo essencial, pública, pronta, necessária, a menor das penas aplicáveis nas circunstâncias referidas, proporcionada ao delito e determinada pela lei”.

[xi] Por óbvio excluiu-se neste raciocínio o dispositivo do CPM que à luz da CF possibilita a pena de morte para militares em caso de beligerância.

[xii] Dados obtidos na teleconferência do Ministério da Justiça, Sistema Penitenciário – Penas Alternativas, em 1996.

[xiii] Art. 5º Não haverá penas:

(…)

b) de caráter perpétuo; (…)

[xiv] Estimativas para 1999 extraídas do documento IBGE/DPE/DEPIS “projeção da população das Grandes Regiões por sexo e idade 1991 – 2020”.

[xv] MOLINA, Garcia-Pablos de. Criminologia, , trad. Luiz Flávio Gomes, RT, S. Paulo, 1992. p. 97-8

[xvi] GOMES, Luiz Flávio. Bases e Perspectivas da Teoria Constitucionalista do Delito (Fato Punível), p. 1

[xvii] In BOLDRINI, Rodrigo Pires da Cunha. A proteção da dignidade da pessoa humana como fundamentação constitucional do sistema penal. Jus Navigandi, Teresina, a. 7, n. 66, jun. 2003. Disponível em:

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