O problema da aplicabilidade da lei em desuso na peça "Medida por Medida"

Henrique Smidt Simon
mestrando em direito pela UnB, em Brasília (DF)

I) INTRODUÇÃO:

William Shakespeare (1564 – 1616) é considerado o maior dramaturgo da História e um dos melhores e mais importantes escritores do mundo. Entre as suas peças mais conhecidas e encenadas encontram-se Romeu e Julieta, Macbeth, Otelo, Ricardo II, Hamlet entre outras tantas. A peça que será aqui discutida – Medida por Medida – está classificada como integrante da fase trágica de Shakespeare. Inicialmente foi tida como insatisfatória e imoral e só mais tarde teve a aceitação da crítica (1).

Trate-se de uma peça sobre o abuso do poder na Administração Pública, traição, problemas de sexo e moral e aplicação da lei positiva. Os personagens centrais do enredo são: o Duque, Ângelo, Isabela, Cláudio (irmão de Isabela), Éscalo (uma espécie de conselheiro do Duque); Mariana (esposa prometida de Ângelo); Lúcio (um rufião amigo de Cláudio) e Julieta (noiva de Cláudio).

O resumo da trama é o seguinte: o Duque sai da cidade dizendo que vai à Polônia e encarrega Ângelo como seu substituto com plena autoridade, deixando Éscalo como seu auxiliar. Porém, o intuito verdadeiro do Duque é bem diferente da anunciada viagem. Na cidade de Viena (onde se passa a história) a luxúria se tornou uma prática corriqueira em todas as camadas da sociedade. Os bordéis estavam espalhados por todas as partes – periferia e centro da cidade. Apesar de existirem leis que punem a fornicação e a luxúria até com a pena capital, elas não são aplicadas há mais de 14 anos, passando a ser negligenciadas ou até mesmo desconhecidas pelos cidadãos. Diante de tal libertinagem, o Duque sente que é preciso colocar um freio nessa conduta praticada corriqueiramente pelos indivíduos. No entanto, teme ser taxado como tirano por aplicar leis depois de tanto tempo ignoradas por ele mesmo. E aí está o motivo para Ângelo substitui-lo no poder: sendo homem de conduta reta e fria e profundo conhecedor das ciências sobre o Estado, ele não hesitaria ao aplicar a lei. Desse modo, o governante de Viena (que continuaria na cidade disfarçado de padre) poderia observar a reação da sociedade à aplicação das leis e, ainda, vigiar Ângelo atuando como soberano.

Ao assumir o poder, Ângelo condena Cláudio por fornicação ao constatar que ele havia engravidado Julieta. A caminho da cadeia, Cláudio encontra com Lúcio e pede que encontre Isabela para convencê-la a ir falar com Ângelo pedindo o seu perdão. A irmã do condenado vai, então, tentar convencer o substituto do Duque a perdoar a infração de seu irmão. A primeira reação de Ângelo é negar o pedido, mas acaba maravilhado pela beleza e virtudes morais e intelectuais de Isabela. Totalmente obcecado pela mulher que estava prestes a ser freira, o preposto propõe que Isabela troque a vida do irmão pela sua castidade, o que ela nega a princípio.

O Duque, que está espreitando tudo o que ocorre na cidade, fica sabendo da atitude de Ângelo e, disfarçado de padre, propõe a Isabela que marque o encontro e que, em seu lugar, mande Mariana, a esposa prometida de Ângelo, mas que não teve o seu casamento concretizado por ter perdido o dote prometido. Mariana aceita o embuste e Isabela marca o encontro. Mesmo acreditando ter tido um encontro carnal com a irmã do condenado, o substituto não muda a sentença e determina a morte de Cláudio. Contudo, para evitar que a sentença seja cumprida, o Duque (ainda disfarçado), convence o delegado a mandar para Ângelo a cabeça de outro prisioneiro que havia morrido.

Assim, o governante de Viena manda uma carta anunciando a volta e determinando que Ângelo e Éscalo encontrem-no na entrada da cidade para retomar o seu poder em público. Ao se encontrarem, Isabela denuncia Ângelo, que é desmascarado. O Duque, então, determina que Ângelo case com Mariana, que Lúcio case com uma alcoviteira que ele havia engravidado, liberta Cláudio e pede a mão de Isabela em casamento.

II) A QUESTÃO DA APLICABILIDADE DA LEI EM DESUSO:

Dentre os pontos de discussão presentes na peça e que são notórios, é imperioso destacar-se a questão da aplicação da lei. Como já dito acima, a prática da luxúria já havia se disseminado por todos os segmentos da sociedade e as leis que a coibiam não eram aplicadas há mais de 14 anos.

O próprio Duque reconhece que as leis precisam ser aplicadas novamente, mas teme passar por tirano ao aplicar a lei depois de permitir a libertinagem por tanto tempo. Resolve, então, colocar Ângelo no poder para que ele aplique a lei severamente até que a situação fique mais controlada.

Imediatamente após assumir o poder, o substituto manda prender e executar Cláudio por ter engravidado Mariana antes de se casar com ela. E é a partir desse fato que o texto apresenta a discussão sobre a aplicabilidade ou não da lei (discussão essa que dura até cerca da metade da peça).

Vários personagens que representam diversos segmentos da sociedade tomam uma posição de indignação diante da condenação, todos achando que a lei não deve ser aplicada ou que não se deve infligir a pena com tanto rigor. Cláudio – que era filho de nobre – assim se defende do ato de Ângelo (2):

“E quem agora representa o Duque –/ Talvez porque o que é novo não vê bem,/ Ou por a coisa pública ter forma/ De montaria para quem governa/ E quem é novo quer marcar a sela,/ Quem está no mando enfia logo a espora./ Se a tirania é própria do lugar,/ Ou se a auto importância é o que o inchou/ Eu não sei –/ Mas o novo governante despertou o catálogo de penas/ Penduradas quais fossem armas sujas,/ Há dezenove voltas do zodíaco/ Ali sem uso, e só pra criar fama/ Joga todas as leis adormecidas/ Sobre mim: na certa é só pra fama” (3).

Para Cláudio, a pura e simples aplicação da lei sem valoração alguma não passa de ato de tirania de quem quer mostrar que tem poder. A aplicação de leis há muito esquecidas seria “só pra fama”.

Outro personagem que discorda da pena imposta pelo preposto é Éscalo – o conselheiro do Duque. Contudo, este pensa ser a pena desmedida em relação ao ato praticado. Eis as suas palavras:

Porém melhor é cortar só um pouco/ Que, podando, matar. Esse rapaz/ Que procuro salvar tinha pai nobre./ Indague de sua honra –/ Que sei ser inflexível na virtude –/ Se no correr de suas afeições/ Quando a hora, o local e o desejo,/ Ou a forte insistência de seu sangue/ O pudesse levar ao que queria;/ Se em um momento ou outro de sua vida/ Não pecou nesse ponto em que o censura,/ Torcendo a lei para si…” (4).

Aqui o conselheiro do Duque apela para o bom senso de Ângelo dizendo que a falta cometida é muito comum e até ele – Ângelo – já pode tê-la cometido ou, ao menos, deve tê-la imaginado. Sendo tal ato tão corriqueiro e pouco grave, a pena capital seria desmedida.

Um outro personagem que argúi o desuso da lei e, ainda, que o exemplo de Cláudio não seria suficiente para intimidar a transgressão da lei é Pompeu – um cafetão:

“Se decapitarem e enforcarem todos os que transgredirem nesse ponto por dez anos, vocês vão ter de encomendar mais cabeças: se essa lei valer em Viena por dez anos, eu alugo a melhor casa da cidade por três tostões a janela. Se estiver vivo para vê-lo, pode contar que Pompeu já tinha avisado” (5).

O cafetão Pompeu claramente não acredita que a condenação de Cláudio sirva como forma de evitar que o desrespeito à lei perdure e, dessa forma, muitíssimos outros teriam de ser mortos. O rigor da lei faria apenas com que a população de Viena fosse dizimada (é a profecia que faz ironicamente).

O próprio delegado da cidade se mostra inseguro para aplicar a pena a Cláudio. Ao conversar com Ângelo, ele tem a esperança de que o substituto mude de idéia:

“(…) Quero/ Saber do seu desejo; talvez ceda./ Esse vício é de toda classe e idade./ Mas este morre!/ (…) (aqui se dirigindo a Ângelo) Eu não quero imprudências./ O senhor me desculpe, mas já vi/ Juízes que depois da excussão/ Lamentam a pena” (6).

Está patente que o delegado reconhece que o crime cometido por Cláudio é por demais disseminado, sendo praticado por todos os tipos de indivíduos. E é por isso que acha ser a condenação à morte exagerada.

E Isabela, a irmã do condenado – que estava prestes a se tornar freira – também pensa, assim como Éscalo, ser a lei justa, mas a pena desproporcional. Eis uma parte de seu diálogo com Ângelo:

“(…) Pense bem:/ Quem já morreu aqui por tal ofensa?/ São muitos os que a cometeram” (7).

Isabela, sendo quase uma noviça – pois só não havia entrado num convento para tentar salvar Cláudio – também condena o erro de seu irmão. Mas, em virtude de ser o crime praticado por muitos e por não ter sido punido tal ato durante muito tempo, pensa ser a condenação à morte uma pena muito dura.

E, assim, Shakespeare deixa claro, por meio de vários personagens que representam os diversos segmentos da sociedade, os dois argumentos contra a condenação de Cláudio: por não ter sido aplicada durante muito tempo, a lei teria entrado em desuso e a luxúria teria passado a fazer parte do dia a dia dos indivíduos. Assim, não seria correto aplicar-se uma lei que há muito estaria esquecida pela sociedade. O segundo argumento é que, se é justo que a lei seja aplicada, não é razoável que a pena seja tão rigorosa, já que o crime (por ter se espalhado pelo seio da sociedade tornando-se prática comum) não escandalizava tanto a comunidade.

Mas Shakespeare apresenta também os argumentos a favor da aplicação da lei. Estes se encontram principalmente nas falas de Ângelo. O substituto do duque acredita que a lei é o remédio que se deve aplicar para manter a ordem na sociedade e evitar os prejuízos causados à comunidade pelos atos perversos dos indivíduos.

Para Ângelo, a lei deve controlar a sociedade por meio do medo da sanção que o indivíduo sofrerá se for descoberto. Se a lei não é aplicada, ela perde a sua razão de ser.

“Á lei não deve servir de espantalho/ Para meter medo em aves de rapina,/ Ou ficar fixa até que, por costume,/ Vire para elas pouso e não terror” (8).

Esse pensamento também está presente no seu primeiro diálogo com Isabela:

“Não ‘stava morta a lei; ela dormia:/ Não teriam pecado todos esses/ Se o primeiro a infringir o estatuto/ Tivesse respondido por seus atos./ A lei desperta e nota, qual profeta,/ Que os males que o futuro vê no espelho,/ Já concebidos ou que o acaso mostre/ Sendo chocados e a ponto de nascer,/ Que não mais passarão por tais etapas,/ Morrendo antes que vivam” (9).

Dessa forma, só ao se aplicar a lei é que seria possível dar ordem à sociedade e extirpar a prática da luxúria. Implícita está a idéia de que a lei deve prever o maior número possível de ações humanas visando a limitar a liberdade natural dos indivíduos para manter a ordem social (10).

O preposto também defende a igualdade de todos os cidadãos perante a lei, independente da posição social:

“(…) Não se atenua a ofensa que ele faz/ Com faltas minhas; é melhor lembrar-me/ Que quando eu que o condeno assim errar, por sentença que dei devo morrer” (11).

E, mais adiante, quando debate sobre a liberdade de Cláudio com Isabela:

“(…) A lei, não eu, condena o se irmão./ Se fosse meu parente, meu irmão ou filho,/ Seria o mesmo. Ele morre amanhã” (12).

O raciocínio que defende a igualdade perante a lei também serve para justificar a limitação do poder por meio da lei: o príncipe também deve respeitar e agir dentro dos limites da lei, pois pode ser julgado e punido como um cidadão comum.

É importante frisar que, apesar de Ângelo ser o grande antagonista da trama, seu pensamento não é discordante do pensamento do Duque – que é o protagonista. É o que fica claro no diálogo deste último com o frei Tomás:

“Nós temos leis e estatutos severos,/ Freio e bridão de portos cabeçudos,/ Que não cumprimos há quatorze anos,/ Como um leão idoso que, na toca,/ Não sai para caçar. Qual pai bondoso,/ Que só impunha a vara de marmelo/ Para branir aos olhos de seus filhos/ Por susto e não para uso, esta se torna/ Em motivo de riso e não de medo,/ De modo igual as nossas leis ‘stão mortas./ A liberdade abusa da justiça./ O neném surra à ama, e o que é direito/ ‘stá todo torto” (13).

E, mais tarde, ao falar com Pompeu disfarçado de padre:

“Um cafetão safado! Um cafetão!/ O mau que o senhor faz acontecer/ É o seu meio de vida. Pense só/ O que é encher o bucho ou vestir roupa/ Com esse vício tão sujo. Diga sempre:/ Com seus braços nojentos de fera/ Eu bebo, me visto e levo a vida./ Crê que é viver esse modo de vida,? Que se deve ao fedor? Vá se emendar!/ (…) Oficial,/ Leve-o para a prisão, pois o castigo/ E muito ensino têm de trabalhar/ Antes que essa besta melhore” (14).

No entanto, parece que Shakespeare substituiu esse debate sobre a questão da aplicabilidade da lei pelo debate sobre o abuso do poder e a sua capacidade de mostrar a faceta corrupta dos homens que a ele ascendem. Fica a sensação de que a questão da lei não é resolvida.

III) AS CARACTERÍSTICAS DOS ESTADOS ABSOLUTISTA E LIBERAL PRESENTES NA PEÇA:

E então, pode a lei ser derrogada pelo costume em virtude do desuso? Deve uma lei ser aplicada com todo o seu rigor após passar vários anos “adormecida” até ser esquecida pelos integrantes da comunidade? Como já foi afirmado anteriormente, parece que o dramaturgo inglês deixou de lado essa questão sem resolvê-la para trabalhar o abuso do poder e a sua capacidade de fazer com que os homens demonstrem os seus lados negros e para facilitar o seu happy end. Mas seria interessante para este estudo trazer à discussão uma outra hipótese.

Em todo o seu discurso, Ângelo se mostra um amante das virtudes e da lei. Mas, apesar dessa sua característica, acaba caindo na tentação e age como um tirano para conseguir obter a castidade da jovem Isabela, passando por cima da moral e até mesmo da lei que ele tanto prezava e queria fazer incidir sobre Cláudio. Dessa situação é que se pode tirar algo de interessante.

As posturas de Ângelo e do Duque podem ser reportadas às características dos Estados Liberal e Absolutista, respectivamente.

Os pontos tirados da argumentação do substituto do Duque – a lei como meio de ordenar a sociedade, a lei geral prevendo o maior número possível de ações humanas visando a limitar a liberdade natural do homem (15) (a lei deve limitar as ações humanas para evitar que um indivíduo invada a liberdade do outro se utilizando da força) e as noções de igualdade perante a lei e limitação do poder pela lei são justamente as características mais importantes do pensamento político liberal. Além disso, a sua insistência em aplicar a lei em todo o seu rigor e exatamente como ela está posta – sem interpretá-la – são as características principais do que viria a ser a Escola da Exegese, que nada mais foi que uma conseqüência e uma necessidade do pensamento liberal. Pode-se também dizer que Ângelo prefere a aplicação meramente lógica da lei: esta é a premissa maior e o fato é a premissa menor que deve se enquadrar à lei, disso decorrendo a sanção (16). Outro fator importante é a postura psicológica que Ângelo apresenta até o momento anterior às suas últimas falas no seu primeiro diálogo com Isabela. Veja-se, por exemplo, como Lúcio o descreve para irmã de Cláudio:

“(…) O Duque viajou estranhamente (…)./ (…) Em seu lugar,/ E instalado em plena autoridade,/ Governa Ângelo, homem com sangue/ Que é pura neve, homem que não sente/ Ferroadas ou ânsias dos sentidos;/ Que nega e anestesia a natureza,/ E se aprimora com estudo e jejum” (17).

Essas são justamente as características do juiz da época do Estado Liberal, que só aplica a letra fria da lei: um juiz que deve ser imparcial, neutro e isento de ideologias. E o próprio Ângelo procura parecer neutro e imparcial ao negar o pedido de perdão de Cláudio feito por Isabela no primeiro encontro do dois (18).

Além desses pontos destacados, o preposto procura ter a lei como parâmetro material para a Justiça:

“É ao fazer justiça que eu a mostro [piedade]./ Tenho piedade dos que eu não conheço,/ A quem a impunidade ofenderia,/ E agindo certo quanto ao que responda/ Por ato vil sem poder mais viver/ Pra fazer outro” (19).

Todos esses pontos destacados estão em conformidade com os parâmetros para a atuação do juiz dentro do contexto do Estado Liberal. Todas essas características foram construídas e justificadas pelos teóricos liberais como modos de conter o poder absoluto dos príncipes com o objetivo de preservar a liberdade do indivíduo em face dos abusos cometidos pelos monarcas protegidos por um poder ilimitado (20). Poder esse que permitia a confusão entre vontade do Estado e vontade pessoal do príncipe.

Apesar de Shakespeare ser anterior à época do liberalismo, é da mesma época de Richard Hooker (1554? – 1600), escritor de “As Leis da Política Eclesiástica” e um dos autores que mais influenciou John Locke. Veja-se o que escreveu sobre o poder e as leis, criticando o poder absoluto ao dar uma idéia de lei como garantia contra abuso do poder:

“No princípio, quando se estabeleceu certa espécie de regimento, pode ser que não se tivesse cogitado de nada mais com respeito à maneira de governar, mas que tudo se permitisse à sabedoria e discrição dos governantes, até que por experiência se verificou como tal sistema era inconveniente para todas as partes, de sorte que o que tinham inventado como remédio somente, na realidade, havia contribuído para aumentar o mal que deveria curar. Perceberam que viver pela vontade de um só homem se tornava a causa da miséria de todos. Viram-se assim obrigados a submeter-se a leis por meio das quais todos pudessem ver de antemão qual o próprio dever, ficando sabendo quais as penalidade por qualquer transgressão” (21).

Já o Duque atua como o verdadeiro rei absoluto. Sua conduta está sempre ao largo do que é a lei ou da moral convencional dos indivíduos. O modo como ele atua disfarçado mantendo o domínio da situação poderia ser tido como imoral. Contudo, ele visa ao bem da cidade, tentando estudar a reação do homem quando está no poder (o que ele é capaz de fazer) e buscando livrar a sociedade da prática da luxúria sem macular a sua imagem de bom governante. Tal postura se encaixa perfeitamente à teoria de Maquiavel exposta em “O Príncipe” em que ele diz que os atos políticos do príncipe são amorais, não devem seguir os mesmos padrões éticos dos indivíduos comuns. Os atos do governante estão sempre corretos desde que visem ao bem e à prosperidade do Estado – é o que se chama de razão de Estado. Isso também serve para as cenas em que o Duque, disfarçado de padre, convence Isabela a mentir para Ângelo dizendo que teria um encontro carnal com ele e quando convence Mariana também a enganar o seu substituto fazendo amor com ela pensando estar com Isabela.

E, como afirmado acima, a conduta do Duque não só não respeita a moral comum como desrespeita as leis da sua cidade, mostrando que está acima delas. A farsa criada com Isabela e Mariana são para salvar Cláudio, condenado de acordo com a lei. Ao desmascarar Ângelo e puni-lo junto com Lúcio, o governante de Viena condena-os ao casamento ao invés da morte ou chibatadas (como previa a lei), liberta Cláudio sem punição alguma, liberta Bernardino (personagem que já estava preso há anos na cadeia da cidade) mesmo tendo ouvido do delegado que o seu crime estava provado e ainda pede a mão de Isabela em casamento, sem levar em consideração o fato de ela estar prestes a se tornar uma noviça.

Tudo isso mostra como o Duque atuava de acordo com as suas vontades e do modo como lhe convinha, mesmo que fosse sempre pensando no benefício de Viena. É o príncipe absoluto, que tem poderes para fazer o que bem quer como bem entender mas com o dever moral de buscar o bem do Estado. Apesar do Estado ter como única fonte jurídica a lei, esta não vincula o príncipe, que está acima dela e não pode ter o seu poder limitado por ela. A expressão máxima do ordenamento jurídico estatal é a vontade do príncipe (22).

IV) CONCLUSÃO:

Apesar de não estar claro na peça, pode-se dizer, a partir do que aqui foi exposto, que Shakespeare acabou resolvendo, mesmo que de modo indireto, a questão imposta no início da peça.

O autor da peça trabalhou a questão da aplicabilidade da norma em desuso até cerca da metade da trama, passando então a trabalhar a questão do abuso do poder e da corrupção de Ângelo. A trama termina com um final feliz, no qual o leitor tem a sensação de que foi feita justiça e até esquece a discussão da lei. Afinal, o costume da luxúria fez ou não com que a lei fosse derrogada?

A verdade é que essa pergunta não é respondida no texto. A questão que se propõe na peça está além do direito, ela diz respeito ao Poder e à Moral.

Mesmo se portando como o que se poderia denominar um “liberal”, Ângelo se utiliza do poder para realizar o seu desejo – e não teria como realizá-lo se não estivesse no lugar do Duque. Para isso, ignora a lei que ele próprio invocou para condenar Cláudio. E, ainda, se utiliza da lei para atuar da forma como ele pensa ser justo e correto, ignorando a opinião contrária de todos os segmentos da sociedade de Viena.

E não se diga que a postura de Ângelo não pode ser comparada à de um liberal por não se encontrarem presentes na peça os valores da liberdade e da propriedade. O valor da liberdade está presente na prisão injusta de Cláudio, como também está presente o direito à vida, ameaçado por uma sanção desmedida. Quanto ao direito de propriedade, Locke diz, em seu “Segundo Tratado Sobre o Governo”, que fazem parte do conjunto de propriedades do cidadão a vida e a liberdade, devendo ser protegidas pelo Estado contra todo aquele que pretender violá-los. E estes direitos foram violados justamente pela aplicação literal da lei.

No entanto, o Duque, apesar de agir “por debaixo dos panos” portando-se como um rei absoluto, termina a história aplicando castigos com justiça para cada castigado sem recorrer a lei alguma e nem por isso se deixa de ter o sentimento de que houve justiça. Sua conduta, ao aplicar as punições, baseou-se no que seria moralmente correto. Deixou-se guiar pela razão e pela ética ao invés de guiar-se por uma lei cuja aplicação seria injusta.

Quanto à questão da lei, talvez ela não tenha sido resolvida por ser, a princípio, insolúvel na época. Ângelo pensava ser aplicável, a sociedade discordava e o Duque tinha dúvidas. Dependendo da forma de raciocínio, da situação, do período histórico e da crença de cada um, a questão seria resolvida de forma diferente. Contudo, a Justiça se realizou da mesma forma.

Não seria incorreto afirmar que a moral da história é: mais vale um Estado com rei absoluto justo e correto que um Estado limitado por leis mas com governantes corruptos e canalhas no poder (porque, neste caso, a lei só serve de justificativa para as injustiças).

NOTAS

01. Enciclopédia Barsa, v. 14, Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda., Rio de Janeiro – São Paulo, 1987, p. 263.

02. É interessante notar que no teatro shakespeariano os nobres e as pessoas com melhor educação falam em verso e as demais em prosa.

03. SHAKESPEARE, William. Medida Por Medida. Trad. Para o português de Barbara Heliodora, editora Nova Fronteira, sem data, p. 47.

04. SHAKESPEARE, William. ob. cit., p. 61.

05. SHAKESPEARE, William. ob. cit., p. 77.

06. SHAKESPEARE, William. ob. cit., p. 81.

07. SHAKESPEARE, William. ob. cit., p. 87.

08. SHAKESPEARE, William. ob. cit., p. 61.

09. SHAKESPEARE, William. ob. cit., p. 87.

10. Para usar uma expressão contratualista. Fique claro que esta visão contratualista não está expressa no texto da peça.

11. SHAKESPEARE, William. ob. cit., p. 63.

12. SHAKESPEARE, William. ob. cit., p. 87.

13. SHAKESPEARE, William. ob. cit., p. 51.

14. SHAKESPEARE, William. ob. cit., p. 131/133.

15. É a idéia contratualista de John Locke apresentada no Segundo Tratado Sobre o Governo e que pressupõe um estado de natureza (anterior à formação da sociedade pelos indivíduos através de um contrato social) em que todos os indivíduos possuem liberdade plena para fazer tudo o que desejam sendo limitados apenas pela sua postura moral ou pela ação de uma força externa maior que a sua. Ver nota n. 10.

16. Esta fórmula é proposta por Cesare Beccaria na obra Dos Delitos e Das Penas.

17. SHAKESPEARE, William. ob. cit., p. 57.

18. Ver citação n. 12.

19. SHAKESPEARE, William. ob. cit., p. 87/89.

20. Segundo Norberto Bobbio, na sua obra Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant. 4. ed., Brasília, editora UnB, 1997, a lei seria a limitação externa ao exercício do poder soberano.

21. HOOKER, Richard. As Leis da Política Eclesiástica. Livro I, sec. 10; apud LOCKE, John, Segundo Tratado Sobre o Governo. In: Os Pensadores: Locke, 2. ed., São Paulo, Abril Cultural, 1978, p. 70.

22. BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant. op.cit., p. 12/13.

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