Sonegação fiscal – Os limites da ação da Polícia Federal

Embora integrantes da Procuradoria-Geral da República e a direção da Polícia Federal em São Paulo venham, nas entrevistas que têm dado à imprensa, insistindo em enumerar as sanções penais aplicáveis aos acionistas da fábrica de cervejas Schincariol e aos proprietários da Daslu pelos crimes tributários de que são acusados, nos meios jurídicos a opinião dominante é a de que são remotas as possibilidades de condenação judicial das duas empresas. Isto porque, segundo a legislação em vigor, em matéria de sonegação as ações penais só poderiam ser propostas pela Fazenda Nacional depois de encerrados os procedimentos na esfera administrativa nos quais a validade da autuação é julgada. E isso não teria ocorrido nem com a Schincariol nem com a Daslu.

“Pela investigação ainda incipiente, as prisões parecem simbólicas, para marcar posição”, disse ao jornal Valor a criminalista Dora Marzo Cavalcanti de Albuquerque, titular de um dos mais conceituados escritórios de advocacia do país. Mesmo após a constatação da sonegação e a definição dos valores que deveriam ter sido pagos, por parte da Receita Federal, afirmou ela, os contribuintes têm a prerrogativa de pagar seus débitos, o que extingue automaticamente a ação penal e, junto com ela, os demais processos por “crimes acessórios”, como, por exemplo, o de formação de quadrilha.

“Essa é uma previsão da legislação brasileira que vem sendo acatada nas decisões do Judiciário. O entendimento tem prevalecido, inclusive, em julgamento dos ministros do Supremo Tribunal Federal, a mais alta Corte do país”, concluiu a advogada, cuja opinião é tão mais importante por ter sido sócia do criminalista Márcio Thomaz Bastos até um dia antes dele assumir o Ministério da Justiça.

Esse pormenor, aliás, dá maior peso à sua afirmação de que as prisões dos acionistas da Schincariol e dos proprietários da Daslu teriam sido realizadas apenas “para marcar posição”. Se uma ação penal por sonegação só pode ser aberta após o término do processo administrativo no qual se julga a validade das autuações feitas pelas autoridades fiscais, como afirma a antiga sócia do ministro da Justiça, fica evidente que as operações realizadas pela Polícia Federal na Schincariol e na Daslu, além de espalhafatosas na forma, também foram abusivas, em termos legais.

Basta ver que, no caso da fábrica de cerveja, cuja invasão, por coincidência, ocorreu na mesma data em que estava marcado o depoimento sobre o “mensalão” pelo deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ) na Câmara, até hoje as autoridades fiscais nem sequer concluíram a fiscalização sobre o que teria sido sonegado.

Embora tenha divulgado a operação como a maior ação da história brasileira contra sonegação praticada por uma só empresa, a Receita anunciou que só poderá concluir seu trabalho em seis meses.

Por sua vez, o procurador da República que acompanha o inquérito afirmou recentemente que dispunha apenas de uma simples minuta da denúncia criminal que irá apresentar à Justiça. No caso da Daslu, a Receita também já admitiu que a fiscalização não estará concluída antes de seis meses, o que impede os proprietários da loja de esgotar todas suas possibilidades de defesa na esfera administrativa.

Diante da opinião predominante nos meios jurídicos de que é remota a hipótese de condenação das duas empresas por crime fiscal e da opinião de uma criminalista insuspeita de que as prisões de seus dirigentes foram atos simbólicos “para marcar posição”, é plenamente justificável o temor dos meios políticos e empresariais de uma instrumentalização partidária da PF.

Antes de mais nada, a PF é um órgão do Estado e a ele deve servir, na defesa dos interesses nacionais. Convertê-la em instrumento político do governo, para que atue em sintonia com uma estratégia de marketing eleitoral, é atropelar as liberdades públicas, pôr em risco a segurança jurídica e ameaçar a essência do regime democrático.

*Editorial publicado pelo jornal O Estado de S.Paulo neste domingo, 17 de julho de 2005.

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