A mídia ligou os holofotes, mas detesta holofotes em cima dela. Acionou o ventilador giratório, mas esconde que a lama respingou nela. Adora fazer barulho, desde que o barulho não seja sobre ela. É um fenômeno, essa nossa mídia.
Ágil, criativa e ousada mas, ao mesmo tempo, penosa, omissa e pusilânime. A transfiguração da bela em fera dá-se apenas em uma circunstância: quando lhe oferecem um espelho. Basta ver-se equiparada às instituições dos comuns mortais, nossa alada mídia vira bruxa. Ou um tiranossauro.
Foi uma matéria de capa na Veja (de 18/5) que deflagrou a cascata de escândalos que está virando o país de ponta-cabeça. Mas quando a CPI dos Correios, criada pela repercussão desta matéria, desvendou na terça-feira (5/7) como esta matéria foi realizada e quem a realizou, o quinto maior semanário do mundo comporta-se como um panfleto paroquial: por pudor ou despudor, omitiu dos leitores qualquer referência sobre esta revelação.
Em sua última edição (de 13/7, página 9), a Veja comporta-se como a grande vestal da crítica da imprensa. Denuncia o denuncismo, defende a apuração diligente, parece até fiel seguidora deste Observatório, não fosse a omissão sobre as constrangedoras confissões do araponga-videomaker-e-agora-jornalista Jairo Martins sobre as suas promíscuas relações com a sucursal brasiliense.
Não apenas a Veja enrustiu seus pecados perante a opinião pública. No dia seguinte, quarta-feira, foi a vez do lobista Marcos Valério revelar diante da CPI e das câmeras de televisão que a reportagem de capa da IstoÉ Dinheiro com a entrevista-bomba de Fernanda Karina, programada para sair em setembro do ano passado, foi engavetada depois da visita de Marcos Valério a Domingo Alzugaray, dono da Editora Três, responsável pela publicação da Istoé Dinheiro. O lobista revelou ainda que pagou R$ 300 mil ao jornalista Gilberto Mansur, funcionário da editora e seu consultor.
Menos de 24 horas antes, no programa Observatório da Imprensa na TV, o repórter Leonardo Attuch, autor da matéria com Fernanda Karina, declarava peremptoriamente que a matéria não foi publicada em setembro de 2004 por falta de provas; negava, também peremptoriamente, qualquer encontro com Marcos Valério. O depoimento no dia seguinte, de Marcos Valério, mostrou que o jornalista mentiu duas vezes: esteve com Marcos Valério e a razão que impediu a publicação daquela bomba não foi a falta de provas, mas o peso dos R$ 300 mil pagos à Editora Três.
Na última edição da IstoÉ (o carro-chefe da Editora Três, com data de 14/7, na página 29), numa pequena e ardilosa nota, tenta-se defender Gilberto Mansur (que não precisa ser defendido, foi apenas intermediário de uma operação de compra e venda) e tira-se de cena o ex-galã de fotonovelas Domingo Alzugaray, atual publisher da editora.
A revista Época, completamente livre para mostrar à opinião pública os lamentáveis tropeços das concorrentes, de repente foi atacada de um inopinado surto de discrição e solidariedade. Parecia uma lady inglesa que finge um pigarro para não revelar as malícias da vizinha. Com o título “Bastidores da notícia”, descreve rapidamente as transações da IstoÉ, mas ignora totalmente o modus operandi investigativo da Veja (edição 373, 11/7, página 38).
O recato dos semanários sobre as mazelas do setor contrasta vivamente com o esbanjamento de indignação no relato sobre as patranhas do PT, do Executivo e do Legislativo. E não foi acidental. Os jornalões de quarta e quinta-feira (6 e 7/7) também foram omissos ou, na melhor das hipóteses, parcimoniosos ao contar os vexames das revistas na CPI dos Correios. Na quarta-feira, sobre a Veja, a Folha publicou pequena nota, O Globo algo ligeiramente maior e o Estadão, nada. Na quinta-feira, sobre a IstoÉ, apenas o Estadão registrou as constrangedoras revelações de Marcos Valério.
A fleuma não foi casual, é pactual. Faz parte de um histórico gentleman’s agreement, acordo de cavalheiros, montado no início dos anos 1980 (como reação à greve dos jornalistas) que resultou na criação da ANJ (Associação Nacional de Jornais, onde se incluía a Editora Abril). Mais tarde, em função de interesses específicos, a ANJ gerou um filhote, a Aner (Associação Nacional de Editoras de Revistas), controlada pela Abril mas no momento presidida por Carlo Alzugaray, filho de Domingo.
Como esperar, então, que a Aner condene a falta de decoro de duas poderosas associadas e que a loquaz e beligerante ANJ saia em defesa do bom nome da imprensa, se o grande pool da mídia impressa foi montado justamente para abafar as críticas?
Esta atuação corporativa tem origem fisiológica e pode ser flagrada no episódio da custosa campanha de publicidade para promover a imagem da Câmara dos Deputados, então comandada pelo desastrado João Paulo Cunha (PT-SP).
Num país verdadeiramente democrático, com uma imprensa verdadeiramente independente, seria inconcebível que o Poder Legislativo usasse o dinheiro do contribuinte para lustrar a imagem de uma instituição que abriga 300 picaretas.
Não obstante, a campanha foi lançada com estardalhaço no ano passado na TV, no rádio, em jornais e revistas. Nenhum veículo jornalístico protestou contra este abuso. Exceto este Observatório.
Ninguém quis abrir mão dos caraminguás que a Câmara distribuía tão generosamente. Agora descobre-se na CPI que o deputado João Paulo Cunha contratou uma das agências de Marcos Valério para promover a gastança na mídia. Se 10 meses atrás algum jornal ou jornalista tivesse se indignado diante da promiscuidade do Legislativo com a imprensa, parte dos escândalos poderiam ter sido abortados.
Nesta última semana, ficou claro que falta alguém na CPI. Mas nenhum dos seus integrantes terá coragem para fazer esta convocação.
Alberto Dines
jornalista