A importância da interpretação jurídica na busca da realização da Justiça

Lúcio Delfino
advogado e consultor jurídico na cidade de Uberaba (MG), pós-graduado em Direito Processual Civil e Direito Civil pela Universidade de Franca, mestrando em Direito Empresarial pela Universidade de Franca

1. Introdução

O direito, para alcançar os anseios de um povo, deve evoluir, não se limitando, somente, a técnicas jurídicas. Para à aplicação correta da lei ao caso sub judice, deve-se conhecer os fatos sociais onde está submersa determinada sociedade, buscando, com isso, possa o aplicador do direito perceber às causas dos problemas que afligem à coletividade e, assim, interpretar a lei fria de forma a gerar o calor da justiça desejada.

Procura-se desenvolver no presente trabalho raciocínio no sentido de demonstrar a importância da interpretação do direito em sintonia com a situação cultural, social, política e jurídica de uma determinada sociedade, objetivando, com isso, a realização do bem comum.

2. Conceitos de hermenêutica e interpretação jurídica e suas diferenciações

A importância da linguagem no direito é fundamental, pois é através do seu uso que se exprime o verdadeiro e o falso, o justo e o injusto, o poder e o não poder. Sem o domínio da linguagem, o sistema jurídico ficaria a mercê da obscuridade, da incongruência com o real, e a aplicação da lei restaria duvidosa, estranha ao fim social a que se destina.

J.J. Calmon de Passos, em Seminário promovido pelo Instituto do Direito, nos dias 20, 21 e 22, realizado no Rio de Janeiro, intitulado Direito Civil e Processo Civil – Inovações e Tendências -, ao salientar a importância da linguagem, afirmou, categoricamente, que “a linguagem é o homem”.

A palavra, mesmo usada de forma correta, gera, muitas vezes, interpretações distintas, pelo fato da linguagem normativa não apresentar significados unívocos. Como se não bastasse, existem também as hipóteses em que o texto legal vem empobrecido com erros gramaticais que confundem sobremaneira a interpretação correta da norma jurídica.

Tais considerações, apesar de informarem de forma evidente a importância da interpretação normativa, não são suas únicas justificativas: a maior razão de ser da atividade interpretativa consiste na obrigatoriedade do Estado na realização da paz social, dirimindo conflitos de interesses, visando, assim, manter a ordem jurídica. Essa tarefa obriga o operador jurídico a aplicar regras de interpretação jurídica, visando a adequar e aplicar a norma escrita ao objeto do litígio, sempre atento aos elementos concretos e vivos da experiência social.

“A norma jurídica sempre necessita de interpretação. A clareza de um texto legal é coisa relativa. Uma mesma disposição pode ser clara em sua aplicação aos casos mais imediatos e pode ser duvidosa quando se aplica a outras relações que nela possam enquadrar e às quais não se refere diretamente, e a outras questões que, na prática, em sua atuação, podem sempre surgir. Uma disposição poderá parecer clara a quem a examinar superficialmente, ao passo que se revelará tal a quem a considerar nos seus fins, nos seus precedentes históricos, nas suas conexões com todos os elementos sociais que agem sobre a vida do direito na sua aplicação a relações que, como produto de novas exigências e condições, não poderiam ser consideradas, ao tempo da formação da lei, na sua conexão com o sistema geral do direito positivo vigente.” 1

“As leis positivas são formuladas em termos gerais; fixam regras, consolidam princípios, estabelecem normas, em linguagem clara e precisa, porém ampla, sem descer a minúcias. É tarefa primordial do executor a pesquisa da relação entre o texto abstrato e o caso concreto, entre a norma jurídica e o fato social, isto é, aplicar o Direito. Para o conseguir, se faz mister um trabalho preliminar: descobrir e fixar o sentido verdadeiro da regra positiva; e logo depois, o respectivo alcance, a sua extensão. Em resumo, o executor extrai da norma tudo o que na mesma se contém: é o que se chama interpretar, isto é, determinar o sentido e o alcance das expressões do Direito” (MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 1994, p. 1).

Tal interpretação é feita, sempre, conforme algumas regras e enunciados preestabelecidos; realizada de acordo com regras de como interpretar regras jurídicas. O nome dado à ciência que estuda e confecciona o repertório de enunciados a serem respeitados pela via interpretativa é hermenêutica.

Cabe, neste momento do estudo, salientar a opinião de alguns autores, dentre eles o mestre Miguel Reale, no sentido de esclarecer a diferenciação entre hermenêutica e interpretação com desprezo, por não trazer qualquer sentido prático a consecução dos fins.2

No entanto, seguimos entendimento diverso do eminente jurista, adotando a opinião do mestre Celso Ribeiro Bastos:

“Faz sentido aqui a diferença posto que hermenêutica e interpretação levam a atitudes intelectuais muito distintas. Num primeiro momento, está-se tratando de regras sobre regras jurídicas, de seu alcance, sua validade, investigando sua origem, seu desenvolvimento etc. Ademais, embora essas regras, que mais propriamente poder-se-iam designar por enunciados, para evitar a confusão com as regras jurídicas propriamente ditas, preordenem-se a uma atividade ulterior de aplicação, o fato é que eles podem existir autonomamente do uso que depois se vai deles fazer. Já a interpretação não permite este caráter teórico-jurídico, mas há de ter uma vertente pragmática, consistente em trazer para o campo de estudo o caso sobre o qual vai se aplicar a norma.” 3

Assim, a interpretação tem caráter concreto, seguindo uma via preestabelecida, em caráter abstrato, pela hermenêutica. Pode-se dizer que a interpretação somente se dá em confronto com o caso concreto a ser analisado e decidido pelo judiciário. A hermenêutica, ao contrário é totalmente abstrata, isto é, não tem em mira qualquer caso a resolver.

Com a maestria que lhe é peculiar, Carlos Maximiliano ressalta “o erro dos que pretendem substituir uma palavra pela outra; almejam, ao invés de Hermenêutica, – Interpretação. Esta é aplicação daquela; a primeira descobre e fixa os princípios que regem a segunda. A Hermenêutica é a teoria científica da arte de interpretar.” (MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 1994, p. 1).

Afirma o ilustre jurista Celso Ribeiro Bastos que a interpretação é verdadeiramente uma arte. Compara as tintas que se apresentam ao pintor aos enunciados hermenêuticos que são deixados ao tirocínio do intérprete: “Assim como as tintas não dizem onde, como ou em que extensão deverão ser aplicadas na tela, o mesmo ocorre com os enunciados quando enfrenta-se um caso concreto. Por isso, não é possível negar, da mesma forma, o caráter evidentemente artístico da atividade desenvolvida pelo intérprete. A interpretação já tangencia com a própria retórica. Não é ela neutra e fria como o é a hermenêutica. Ela tem de persuadir, de convencer. O Direito está constantemente em busca de reconhecimento. Não se quer que o intérprete coloque sua opinião, mas sim que ele seja capaz de oferecer o conteúdo da norma jurídica de acordo com enunciados ou formas de raciocínio explícitos, previamente traçados e aceitos de maneira mais ou menos geral, advindos de determinada ciência, mas sem necessariamente com isto estar-se fazendo ciência.”4

Carlos Maximiliano ressalta, ainda, que “não basta conhecer as regras aplicáveis para determinar o sentido e o alcance dos textos. Parece necessário reuni-las e, num todo harmônico, oferecê-las ao estudo, em um encadeamento lógico.

“A memória retém com dificuldade o que é acidental; por outro lado, o intelecto desenvolve dia a dia o logicamente necessário, como consequência, evidente por si mesma, de um princípio superior. A abstração sistemática é a lógica da ciência do Direito. Ninguém pode tornar-se efetivo senhor de disposições particulares sem primeiro haver compreendido a milímoda variabilidade do assunto principal na singeleza de idéias e conceitos da maior amplitude ou, por outras palavras, na simples unidade sistemática”

“Descobertos os métodos de interpretação, examinados em separado, um por um nada resultaria de orgânico, de construtor, se os não enfeixássemos em um todo lógico, em um complexo harmônico. À análise suceda a síntese. Intervenha a Hermenêutica, a fim de proceder à sistematização dos processos aplicáveis para determinar o sentido e o alcance das expressões do Direito.” (MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Citando Heinrich Gerland, Prof. da Universidade de Jena. Rio de Janeiro: Forense, 1994, p. 5. ).

Assim, a interpretação é, nada mais nada menos, que a aplicação ao caso concreto de enunciados já estabelecidos pela ciência da hermenêutica. Uma coisa é interpretar a norma legal, outra coisa é refletir e criar as formas pelas quais serão feitas as interpretações jurídicas. Interpretar é descobrir o sentido de determinada norma jurídica ao aplicá-la ao caso concreto. A vaguidade, ambigüidade do texto, imperfeição, falta da terminologia técnica, má redação, obrigam o operador do direito, a todo instante, interpretar a norma jurídica visando a encontrar o seu real significado, antes de aplicá-la a caso sub judice. Mas não é só isso. A letra da lei permanece, mas seu sentido deve, sempre, adaptar-se às mudanças que o progresso e a evolução cultural imputam à sociedade. Interpretar é, portanto, explicar, esclarecer, dar o verdadeiro significado do vocábulo, extrair da norma tudo o que nela se contém, revelando seu sentido apropriado para a vida real e conducente a uma decisão. 5

3. O direito e a sociedade

A diferenciação entre hermenêutica e interpretação jurídica tem no presente estudo um significado todo especial: foi feita com o intuito de realçar a grande importância da interpretação jurídica pelo magistrado antes da aplicação da regra jurídica ao caso sub judice.

Houve tempo em que se acreditava ser a lei uma fórmula “mágica” , expressão definitiva do direito, através do qual o Estado poderia resolver todos os problemas jurídicos da sociedade. Acreditava-se que através da regra positiva poder-se-ia dirimir todas hipóteses de litígios surgidos na sociedade.

Tal pensamento eqüivale a igualar o ser humano à espécie animal. O animal vive em conformidade com seus instintos, segue uma ordem que não permite desvios ou transgressões. A vida dos animais segue, portanto, uma regularidade orgânica fixa e constante.

O homem se organiza de forma distinta por ser dotado de inteligência. Está, sempre, procurando desenvolver-se, melhorar suas condições de vida, progredir. O homem, diversamente da espécie animal, não segue seu instinto e sua vida está em constantes mudanças e adaptações. Sua vida social não esta organizada de modo inexorável e rígido; ao contrário, se desenvolve dentro de margens mais amplas, em uma grande variedade de formas suscetíveis de desenvolvimento, que exigem, sem sombra de dúvidas, um ordenamento construído sempre com liberdade.

O ordenamento animal é fixo, rígido, constante; a vida social do homem segue caminhos flexíveis, mutáveis, sempre em desenvolvimento. Luis de Garay, ao comprarar o instinto animal com o ordenamento jurídico, concluiu que “el orden jurídico es, en la sociedad de los hombres, el sustituto y complemento del orden instintivo.”6

No entanto, não se alcança a harmonia, a justiça e a ordem, simplesmente seguindo o curso livre dos acontecimentos. Daí vem a necessidade e obrigação do homem de criar um ordenamento jurídico real, passível de interpretações, sem ilusões ou mágica, visando regular os atos humanos em conformidade com a realidade social.

Carlos Maximiliano, esbanjando vivacidade, ensina:

“Não há como almejar que uma série de normas, por mais bem feitas que sejam, vislumbrem todos acontecimentos de uma sociedade. Neque leges, neque senatusconsulta ita scribi possunt, ut omnes casus qui quandoque inciderint comprehendantur (nem as leis nem os senatus-consultos podem ser escritos de tal maneira que em seu contexto fiquem compreendidos todos os casos em qualquer tempo ocorrentes).

Por mais hábeis que sejam os elaboradores de um Código, logo depois de promulgado surgem dificuldades e dúvidas sobre a aplicação de dispositivos bem redigidos. Uma centena de homens cultos e experimentados seria incapaz de abranger em sua visão lúcida a infinita variedade dos conflitos de interesses entre os homens. Não perdura o acordo estabelecido, entre o texto expresso e as realidades objetivas. Fixou-se o Direito Positivo; porém a vida continua, evolve, desdobra-se em atividades diversas, manifesta-se sob aspectos múltiplos: morais, sociais, econômicos.

Transformam-se as situações, interesses e negócios que teve o Código em mira regular. Surgem fenômenos imprevistos, espalham-se novas idéias, a técnica revela coisas cuja existência ninguém poderia presumir quando o texto foi elaborado. Nem por isso se deve censurar o legislador, nem reformar sua obra. A letra permanece: apenas o sentido se adapta às mudanças que a evolução opera na vida social.”

O intérprete é o renovador inteligente e cauto, o sociólogo do Direito. O seu trabalho rejuvenesce e fecunda a fórmula prematuramente decrépita, e atua como elemento integrador e complementar da própria lei escrita. Esta é a estática, e a função interpretativa, a dinâmica do Direito. (MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 1994, p.12 ).

Assim, o homem necessita de um ordenamento jurídico que o discipline. Carece de normas que regulem seus próprios atos e o de seus semelhantes. No entanto, tais normas são somente letras gélidas e não possuem força alguma sem a vivacidade e criatividade do intérprete.

Não existem normas que possam abranger e esgotar todo um inventário de situações a existir em uma sociedade. Isso é ilusório, fantasioso e impossível de se estabelecer, pois, o homem é um ser dinâmico e impreciso, fatos esses que geram, sempre, situações novas, imprevisíveis na sua vida em sociedade.

Percebe-se que a interpretação jurídica possui, sem dúvida alguma, importante função, pois a lei, por ser escrita, permanece, e, por isso, necessita da criatividade e vivência cultural do intérprete no sentido de adequá-la ao caso sub judice.

4. O juiz, a evolução cultural e a justiça

O direito deve acompanhar a evolução cultural. Necessariamente o ordenamento jurídico deve interagir-se com os acontecimentos sociais, visando a buscar a realização de necessidades humanas reais. Há que se evitar o vezo persistente de apresentar doutrinas e teorias jurídicas desligadas de suas condicionantes sociais e políticas, para que não apareçam como puras construções do espírito entre as quais é difícil escolher.8

Não há como cultivar o direito, isolando-o da vida, que, em nossa época, se caracteriza pela rápida mobilidade, determinada pelo progresso científico e tecnológico, pelo crescimento econômico e industrial, pelo influxo de novas concepções sociais e políticas e por modificações culturais.9

No entanto, o ordenamento jurídico conserva formas, originárias dos séculos XVIII e XIX, que impedem a adequação do direito às aspirações sociais da atualidade. Como exemplos vivos em nossos tempos, cite-se o Código Civil Brasileiro, que veio a lume em 1.916 e que deixa, em muitas situações concretas, a desejar, já que possui normas arcaicas, inaplicáveis na atualidade. Daí a necessidade de edição de leis extravagantes para atender aos anseios da sociedade. Outro exemplo normativo ultrapassado, mas ainda em vigor no Brasil, é a Lei de Falências e Concordadas adotada em 1.945. Lei criada na época visando, somente, à solução da situação dos credores. Hoje, diante do atual desenvolvimento da empresa e, em função de sua importância, tanto econômica como social, não se pode conceber visão tão retrógrada.

Pelo que já foi posto, fica em evidência o papel do magistrado, maior intérprete da lei, na busca da realização da justiça.

Em tempos de constantes transformações políticas e ideológicas, onde países se agregam unindo economias, em que regimes absolutistas extinguem-se, nações liberam-se, a pobreza, a miséria e a fome espalham-se como uma verdadeira epidemia, a violência invade lares e a evolução tecnológica atinge patamares inimagináveis, o papel do magistrado é, sem sobra de dúvidas, difícil e árduo. A sociedade se transforma, o direito, necessariamente, deve acompanhá-la.

Hoje, a democracia não permite um judiciário apático e passivo. Exige um poder forte, atuante e voltado para a solução dos problemas que abraçam a nação.

Conforme ensina Plauto Faraco de Azevedo “o jurista, visto como técnico a serviço de uma ordem jurídica dita neutra, em verdade é formado para ser o ordenador do poder instituído, seja ele qual for. Preparado para nada contestar, torna-se incapaz de colaborar de modo efetivo na construção da democracia, que passa necessariamente pelo adequado encaminhamento dos problemas suscitados pela justiça distributiva, reclamando agentes de pensamento aberto, habituados ao confronto e discussão de idéias contrárias, capazes de compreender o presente e planejar o futuro.” 10

Assim, faz-se mister o juiz estar preparado, jurídica e culturalmente, a fim de que, possa realmente interpretar a regra jurídica e aplicá-la em conformidade com os anseios da sociedade moderna. Para tanto, deve o magistrado procurar soluções nos quadros cultural, político, econômico, social e jurídico, desvestindo-se da couraça conservadorista da lei, sempre procurando alcançar soluções mais próximas possíveis do que se chama justiça.

5. A interpretação jurídica quando realizada em desconformidade com realidade social

A interpretação da norma jurídica em desconformidade com o bem comum, com a evolução cultural, ou ainda, em desacato a própria estrutura de um ordenamento jurídico geram injustiças, desigualdade social ou, no mínimo, situação de desrespeito em relação ao Judiciário.

Em excelente artigo intitulado “A Hermenêutica jurídica de Hans-George Gadamer e o pensamento de São Tomás de Aquino” publicado no site do Conselho da Justiça Federal, Rodrigo Andreotti Musetti ensina que “A existência do ordenamento jurídico, por si só, não garante o fim do Direito, qual seja, a justiça. Se assim fosse, já teríamos computadores recolhendo os casos concretos e aplicando neles as leis pertinentes. A natureza e a realidade humana não podem ser tratadas como números ou fórmulas.”11

E conclui o eminente jurista:

“Como nos ensinaram Hans-George Gadamer e São Tomás de Aquino, ao jurista é imprescindível, muito mais que aplicar a lei ao caso concreto, saber interpretá-la de modo a alcançar o justo. Essa interpretação deve considerar, essencialmente, a causa do homem — visto como ser humano que vive em sociedade, que aspira ao bem comum. A lei deve existir para servir ao homem e não o homem à lei.

A lei pode não ser condizente com sua finalidade original, por ter sido elaborada de forma a não garantir o bem comum ou por sua desvirtuada aplicação e interpretação. À medida que a lei se afasta de sua finalidade original, que pode, muitas vezes, não ser a finalidade desejada pelo legislador, ela perde seu compromisso com o bem comum e, naturalmente, deixa de beneficiar a todos para beneficiar alguns. Tal lei, em perdendo sua identidade/sentido, não pode continuar a ser lei, devendo ser revogada.

Tanto a criação da lei como a sua aplicação devem visar ao bem comum. Se assim não for, a lei não estará cumprindo a sua finalidade.

Elaborar a lei para benefício da minoria é uma aberração. Aplicar e interpretar a lei sem visar ao bem comum é outra aberração”.

Exemplo de interpretação e aplicação da lei, em total desconsideração ao ordenamento jurídico e ao bem comum, foi protagonizado pela mais alta corte do país recentemente.

Coube ao ministro Relator, decidir em caráter liminar, sobre ação impetrada pela Associação dos Juízes Federais, visando a um aumento salarial para a categoria.

Para obtenção do objetivo, pleitearam na referida ação o repasse aos vencimentos dos ministros o valor pago aos deputados a título de auxílio moradia. Caso tivessem êxito e o aumento aos ministros fosse definido, esse geraria um efeito cascata às demais instâncias da Justiça Federal.

Ocorre que a ação permaneceu no Supremo Tribunal Federal por cinco meses sem ser apreciado o pedido de liminar, fato que levou a categoria a convocar greve nacional. Tal greve, conforme prescreve a Constituição Federal Brasileira, é ilegal pelo fato de o juiz exercer atividade essencial.

Resolveu, então, o Relator do processo, conceder liminar para atribuir verdadeiro aumento salarial, interpretando a lei e aplicando-a de forma totalmente equivocada, viciada e política.

Sem se ater ao elemento político da concessão de tal liminar, pode-se perceber, com clareza, que o relator do processo atropelou disposições legais, visando a solucionar a questão. De acordo com o próprio ministro, a urgência e a relevância da decisão que tomou decorreram da situação de greve. Posição no mínimo estranha, pois o relator se deixou convencer por um ato ilegal (greve), interpretando a lei em total desconformidade com o caso concreto e, por fim, a aplicou concedendo uma liminar sem a existência de suas características fundamentais (fumus boni iuris e periculum in mora).

Nesse exemplo, a interpretação jurídica e a aplicação da lei foram inconseqüentes, arbitrárias, e desrespeitosas ao próprio ordenamento jurídico, deixando o Supremo Tribunal Federal em situação de descrédito perante a sociedade. Essa Corte é exatamente a que tem a missão de defender a lei e, sobretudo, a Constituição Federal.

Não se pode interpretar uma norma jurídica visando a interesses contrários ao bem comum, sob pena de gerar arbitrariedade e, consequentemente, injustiças. A lei foi elaborada com o objetivo de estabelecer o benefício comum, não se admitindo, em hipótese alguma, interpretação que venha a satisfazer objetivos contrários à realização da justiça, sob pena de ferir a democracia vivificada em nosso país.

Lembra a propósito Chaim Perelma que “se o juiz viola regras de justiça concreta aceitas por ele, é injusto. Ele o é involuntariamente se seu julgamento resulta de uma representação inadequada dos fatos. Ele só o é voluntariamente quando viola as prescrições da justiça formal.” (Ética e Direito. Tradução Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: 1966, ed. Martins Fontes, p. 23)

6. A interpretação jurídica e o respeito à norma legal

O juiz, ao interpretar a lei, não pode ater-se a simpatia ou ojeriza às partes no que tange a suas classe social, nacionalidade, profissão, idéias políticas e religiosas. Deve, acima de tudo, procurar interpretar o direito sempre de forma objetiva, equilibrada, desapaixonante, respeitando a razão e, as vezes usando de audácia.

O intérprete deve manter o raciocínio longe da paixão, pois ela o cega. Deve, sempre, procurar interpretar e aplicar a lei ao caso concreto de forma a objetivar o bem comum, mas nunca, para isso, extrapolar o limite da própria norma jurídica.

“Cumpre evitar, não só o demasiado apego à letra dos dispositivos, como também o excesso contrário, o de forçar a exegese e deste modo encaixar na regra escrita, graças à fantasia do hermeneuta, as teses pelas quais este se apaixonou, de sorte que vislumbra no texto idéias apenas existentes no próprio cérebro, ou no sentir individual, desvairado por ojerizas e pendores, entusiasmos e preconceitos.” (MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 1994, p.103).

Em acórdão do qual foi relator o eminente Ministro Oscar Corrêa, o Supremo Tribunal Federal já decidiu:

“Não pode o juiz, sob alegação de que a aplicação do texto da lei à hipótese não se harmoniza com o seu sentimento de justiça ou equidade, substituir-se ao legislador para formular de próprio a regra de direito aplicável.

Mitigue o Juiz o rigor da lei, aplique-a com equidade e equanimidade, mas não a substitua pelo seu critério”. (Revista Brasileira de Direito Processual. Ed. Forense, vol. 50, p. 159).

“Em geral, a função do juiz, quanto aos textos, é dilatar, completar e compreender, porém não alterar, corrigir, substituir. Pode melhorar o dispositivo, graças à interpretação larga e hábil; porém não – negar a lei, decidir o contrário do que a mesma estabelece. A jurisprudência desenvolve e aperfeiçoa o Direito, porém como que inconscientemente, com o intuito de o compreender e bem aplicar. Não cria, reconhece o que existe, não formula, descobre e revela o preceito em vigor e adaptável à espécie. Examina o Código, perquirindo das circunstâncias culturais e psicológicas em que ele surgiu e se desenvolveu o seu espírito; faz a crítica dos dispositivos em face da ética e das ciências sociais, interpreta a regra com a preocupação de fazer prevalecer a justiça ideal (richtiges Recht), porém tudo procura achar e resolver com a lei, jamais com a intenção descoberta de agir por conta própria, proeter ou contra legem.” (MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 1994, p. 80).

Carlos Maximiliano, citando C.A. Reuterskioeld – Ueber Rechtsauslegung, 1889, p. 66, esbraveja lição que deve ficar integrada ao consciente do intérprete:

“Esteja vigilante o magistrado, a fim de não sobrepor, sem o perceber, de boa fé, o seu parecer pessoal à consciência jurídica da coletividade; inspire-se no amor e zelo pela justiça, e “soerga o espírito até uma atmosfera serena onde o não ofusquem as nuvens das paixões.” (MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 1994, p.105).

Pode-se concluir que a regra escrita nem sempre é justa, a não ser nos casos onde a diferença entre a lei e o fato são praticamente insignificantes. No entanto, abandonar o ordenamento jurídico, sob o pretexto de alcançar o ideal de justiça, somente levaria a um mal maior. Isso porque a vantagem precípua das codificações consiste na certeza e na estabilidade do Direito, pois afinal “la vida de la comunidad humana exige una regularidad o, más bien dicho, una regulación que la haga posible, ordenada, perfectible, justa. Esto constituye el motor y el fin del derecho y es de una significación viva y permanente. (El hombre es un animal jurídico.).” GARAY, Luis de. Que es el derecho? México: Editorial Jus, 1976.

7. Conclusão

Sendo a existência do ordenamento jurídico uma constante em toda sociedade, deverá, sempre e necessariamente, sujeitar-se a regras de interpretação jurídica visando a conferir a aplicabilidade da norma legal às relações sociais que lhe deram origem, estender o sentido da norma às relações novas, inéditas ao tempo de sua criação, e temperar o alcance do preceito normativo, para fazê-lo corresponder às necessidades reais e atuais de caráter social.12

Interpretar é explicar, esclarecer; dar o significado de vocábulo, atitude ou gesto; reproduzir por outras palavras um pensamento exteriorizado; mostrar o sentido verdadeiro de uma expressão, extrair, de frase, sentença ou norma, tudo o que na mesma se contém. (MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 1994, p. 9).

Tais finalidades perseguidas na interpretação jurídica precisam ser essencialmente cumpridas, objetivando o acompanhamento evolucionário do ordenamento jurídico com o desenvolvimento cultural, de modo a afeiçoá-lo às exigências e necessidades sociais.

Em evidência, hoje, o fenômeno da globalização, caracterizado pela intensa circulação de pessoas, bens, capitais e tecnologia através das fronteiras, influenciando padrões culturais e trazendo, como conseqüências, problemas diversos que atingem todo o planeta, como a proteção dos direitos humanos, o desarmamento nuclear, o crescimento populacional e a poluição ambiental.

Os avanços na medicina como a evolução da engenharia genética, as experiências no campo da fecundidade, a reprodução humana assistida, a chamada barriga de “aluguel” e o banco de sêmen, são, induvidosamente, novidades que trarão reflexos no âmbito do Direito. (SEBASTIÃO, Jurandir. Responsabilidade Médica Civil Criminal e Ética. Belo Horizonte: 1998, Del Rey.)

A união homossexual que, atualmente, não constitui novidade, e sim, uma realidade em todo mundo. Comprova-se tal alegação pelo exemplo adotado na França que, recentemente, legalizou a união homossexual – Pacs – , criando, assim, algumas vantagens para os companheiros homossexuais.

Nota-se também o agravamento de problemas tais como a pobreza e a fome generalizadas, o aumento da mortalidade infantil e o crescimento exacerbado da violência urbana.

Todas essas inovações e problemas sociais estão, sem dúvida alguma, umbilicalmente ligados ao Direito. Deve procurar o intérprete não ficar adstrito à letra morta e fria da lei. Há de buscar sugar conhecimentos diversos ligados não só à ciência jurídica, como os relacionados às mudanças sociais, tecnológicas e políticas, enfim, todo o conhecimento inerente à realização do árduo ofício do juiz: a busca da justiça.

É bem verdade que “não existe nada indolor na interpretação e aplicação do direito. Por isto, faz-se necessário ir além, em direção à outra lógica, atinente aos raciocínios dialéticos ou retóricos, que não conduzem às verdades apodícticas, mas ensinam o jurista a conviver com a controvérsia, levando-o ao terreno do verossímil, do provável, de uma aproximação maior ou menor da verdade.”13

“Assim, interpretar uma expressão de Direito não é simplesmente tornar claro o respectivo dizer, abstratamente falando; é sobretudo, revelar o sentido apropriado para a vida real, e conducente a uma decisão reta.” (MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 1994. Citando Ludwing Enneccerus. Lehrbuch des Burgerlichen Rechts, 8ª ed., 1921, vol. 1).

É necessário interpretar a lei evitando, sempre que possível, sua rigidez natural e positivismo, sem no entanto ir contra ao que nela foi estabelecido, tendo em vista a assegurar o bem comum e atenuar as injustiças sociais, evitando, assim, decisões arbitrárias e sem sentido, que além de desprestigiar o judiciário, vão contra a natureza do objetivo da lei, qual seja, o prestígio e amparo do bem comum.

Somente assim agindo estará o intérprete exercendo o seu papel sem, todavia, alterar o espírito da lei, pois, afinal “a justiça é uma necessidade de todos e de cada instante; e assim como deve exigir o respeito, deve inspirar confiança”. (MIRABEAU. Discours Sur L’organisation Judiciaire).

NOTAS

1 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 381.

2 REALE, Miguel. Fundamentos do direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998.

3 BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e interpretação constitucional. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1997, p. 21.

4 BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e interpretação constitucional. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1997, p. 22.

5 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 381.

6 GARAY, Luis de. Que es el derecho? México: Editorial Jus, 1976, p.12.

8 AZEVEDO, Plauto Faraco de. Aplicação do direito e contexto social. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1996, p. 63..

9 Ibid., p. 64.

10 Ibid., p. 65.

11 MUSSETI, Rodrigo Andreotti. A Hermenêutica jurídica de Hans-george Gadamer e o pensamento de São Tomás de Aquino. http://www.cjf.gov.br/.

12 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. São Paulo: Saraiva, 1991, 382.

13 AZEVEDO, Plauto Faraco de. Aplicação do direito e contexto social. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1996, p. 146.

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