Comentários sobre os fundamentos axiológicos da hermenêutica com base nos escritos do professor José Ricardo Cunha
Paulo Sá Elias
advogado em São Paulo (SP)
Já dissemos em outra oportunidade (1) que o estudo da hermenêutica jurídica e da interpretação lamentavelmente não têm recebido o merecido prestígio nos últimos tempos. A hermenêutica jurídica, sem dúvida alguma, ocupa posição predominante em relação à dogmática jurídica. Há uma preferência geral pela criação de novas leis a qualquer custo. Parece mais fácil e prático. Mas este cenário traz consigo uma problemática muito séria: há um risco de antinomia grave, sem contar o substancial crescimento da montanha infinita de normas jurídicas que existem no país. Uma leitura básica e fundamental sobre o tema em discussão é “Hermenêutica e Aplicação do Direito” (Ed. Forense) do grande mestre Carlos Maximiliano Pereira dos Santos – uma obra clássica do direito brasileiro. Na oportunidade também citamos o muito distinto professor Christiano José de Andrade (2) e seu artigo: “A contribuição de Habermas para a Hermenêutica Jurídica” – fazendo referência à pretensão da universalidade hermenêutica de Jüergen Habermas.
Como faremos uma relação entre nossas pesquisas na área do “direito da informática” e os fundamentos axiológicos da hermenêutica, é importante sempre lembrar que no estudo de novas áreas jurídicas é de vital importância o aprofundamento em hermenêutica e interpretação de leis. Não existirá aqui, no entanto, o que em regra é possível encontrar na grande maioria dos escritos sobre hermenêutica: a preocupação excessiva pelo estudo dos métodos (3), v.g., doutrinal, judicial, administrativo, legal, gramatical, lógico, sistemático, histórico, sociológico, declarativo, extensivo e restritivo.
Tenho percebido que o maior equívoco no ensino da hermenêutica em diversos cursos jurídicos no país é justamente o exagerado apego às questões de forma, de método (das diretrizes e formas de interpretação). Não se prestigia o estudo do que realmente é a hermenêutica e sua diferenciação da interpretação, bem como sua indispensabilidade em relação ao estudo de todas as áreas do Direito. A propósito, tal situação está diretamente relacionada com uma crise muito séria no ensino do Direito no Brasil, especialmente em relação à idéia equivocada de que o profissional da área jurídica com vasta experiência “prática” mas sem nenhuma experiência na pesquisa científica será necessariamente um bom professor.
Caio Mário da Silva Pereira, um dos mais respeitados juristas do direito brasileiro ressalta que: “(…) apenas interessados em que as faculdades funcionem e, por isso, faturem, os seus mantenedores admitem professores muitas vezes incapacitados para as matérias, no aspecto pedagógico. (…) Um outro aspecto resultante dessas distorções no ensino universitário é a freqüência de uma juventude cada vez menos estudiosa, mais preocupada em terminar o curso para exercer a profissão do que em aprofundar e aprimorar seus conhecimentos, em geral num nível abaixo do sofrível. (…) Na verdade, desde o curso secundário, os jovens estão recebendo uma formação de pior qualidade do que a anterior, o que resulta num círculo vicioso que aprisiona a educação já nos seus passos iniciais: o ensino ruim gerando alunos pouco estudiosos. É inevitável, portanto, que também nas universidades o corpo discente, em seu conjunto, se apresente tão pouco preparado para acompanhar os cursos, por rudimentares que sejam tanto no método quanto no conteúdo. É a ampliação para o nível superior do círculo vicioso iniciado lá embaixo.” (4)
A verdade é que assistimos o desprestígio da formação humanística em diversos cursos jurídicos no Brasil. Vivemos a era do ensino formalista, centrado em códigos, despolitizado, vazio de aspectos sociológicos/históricos. Uma verdadeira catequização por meio de manuais e apostilas.
Caio Mário (na obra em referência) defende a tese de que os cursos jurídicos deveriam dar ao acadêmico tanto a formação técnica, como principalmente a humanística – “(…) Houve uma época em que se entendeu devesse reformular o ensino do Direito para priorizar o instrumental técnico, em detrimento do enriquecimento intelectual, sob o fundamento de que a finalidade de uma faculdade era formar “profissionais”, assim entendidos os que estivessem preferencialmente preparados para a ´vida prática´, na qual seria supérflua, por dispensável, a maior qualificação cultural. Visão estreita, esta, que deriva de um triste e desastroso engano: as duas finalidades devem ser preenchidas, quando se deseja formar profissionais sem aspas, na inteireza de sua capacidade – prática, intelectual e moral.” (5)
Disciplinas que ofereçam maior desenvolvimento do raciocínio jurídico, da reflexão e da crítica deveriam ser mais prestigiadas. A filosofia está sendo relegada cada vez mais a poucos semestres durante o curso de Direito. O mesmo ocorre com a IED – Introdução ao Estudo do Direito, onde há necessidade de maior aprofundamento em hermenêutica e interpretação (mesmo que isso ocorra em momentos diversos durante o curso).
O promotor de justiça e professor da UNESP (Franca/SP) – Antônio Alberto Machado, ressalta que o caráter utilitário dos cursos universitários em geral, com a crença absoluta na neutralidade técnica, acaba resultando um saber distanciado de questões sociais e crítico-filosóficas. “A fetichização do conhecimento técnico e a absoluta ausência de crítica no espaço universitário, de pleno acordo com a lógica dos mercados – que confirma o saber científico apenas pelo desempenho descartando a reflexão crítica – apresentam-se como dois fatores relevantes e estruturalmente responsáveis por esse contexto de crise em que se encontra a universidade. Seja porque fizeram com que esta se desviasse do seu papel fundamental de refletir acerca das idéias, e da evolução do espírito humano; seja porque levaram a mesma a abandonar o seu mister, também fundamental, de elaborar o pensamento crítico a respeito dos modelos econômicos propostos, deixando de refletir sobre os sistemas de produção e a forma de organização política da sociedade. Qual então a influência que esse modelo de universidade, voltada apenas para os apelos do mercado e para a formação de uma intelligentsia técnica, sem conteúdo crítico-humanístico, poderia ter na formação jurídico-cultural dos bacharéis em direito e, por conseqüência, também no seu modus operandi, considerando-se ainda a influência de uma ideologia jurídica liberal individualista, cujo saber repousa em paradigmas científicos estritamente formalistas, orientados no plano filosófico pelo positivismo comteano? (…) O ensino do direito, tal como ocorre nos demais campos da ciência, está também aprisionado pelo modelo tecnológico de transmissão do saber como uma exigência do mercado.” (6)
Em nossa área de pesquisas, há uma inópia científica, entrando em cena o empirismo, a fundamentação exclusiva em conteúdos jornalísticos, o “ouvir falar” e para piorar ainda: a dominação cultural e o excessivo culto ao direito processual. É necessário joeirar com rigor científico o conteúdo jurídico disponível na Internet e também nos escritos sobre a Internet, tecnologia e o direito. Saber as leis não é conhecer-lhes as palavras, porém a sua força e poder. Seu sentido e seu alcance. Há muito já se dizia: “nem as leis nem os senatus-consultos podem ser escritos de tal maneira que em seu contexto fiquem compreendidos todos os casos em qualquer tempo ocorrentes – neque leges, neque senatusconsulta ita scribi possunt, ut omnes casus qui quandoque inciderint comprehendantur”. (7)
Não é novidade para ninguém que o ordenamento jurídico positivo não têm capacidade para prever todos os casos e inovações que podem surgir ao longo dos anos. Por isso é que sempre se recomendou que ante a impossibilidade de prever todos os casos particulares, o legislador deve pairar nas alturas, fixar princípios e preceitos gerais, de amplo alcance, embora precisos e claros.
A norma jurídica do direito evoluído caracteriza-se justamente pela generalidade. Não tendo por objeto situações concretas, tem como estabelecer um padrão de conduta social, um tipo de relação jurídica que poderá ocorrer, não endereçado a ninguém em particular. A conseqüência desta generalidade é a flexibilidade da norma, assim a ordem jurídica poderá se transformar pela interpretação sem a constante interferência do legislador. “A letra da lei permanece, apenas o sentido se adapta às mudanças que a evolução opera na vida social – surgem novas idéias, aplicam-se os mesmos princípios a condições sociais diferentes. O intérprete melhora o texto legal sem lhe alterar a forma; a fim de adaptar aos fatos a regra antiga, ele a subordina às imprevistas necessidades presentes, embora chegue a postergar o pensamento do elaborador prestigioso; deduz corretamente e aplica inovadores conceitos que o legislador não quis, não poderia ter querido exprimir” (8).
Eis a razão do scire leges non hoc est, verba earum tenere, sed vim ac potestatem – saber as leis não é conhecer-lhes as palavras, porém a sua força e poder, isto é, o sentido e o alcance respectivos. A interpretação como se sabe, visa determinar o sentido e o alcance das expressões do direito. É sem dúvida uma das mais importantes ferramentas disponíveis na ciência jurídica. Deveria ser atualmente mais prestigiada.
Como dizia Wach, Thoel e outros importantes juristas citados por Carlos Maximiliano – Pode a lei ser mais sábia do que o legislador; porquanto abrange hipóteses que este não previu. Conclui o mestre: “(…) ao invés de abandonar um vocábulo clássico e preciso, é preferível esclarecer-lhe a significação, variável com a marcha evolutiva do Direito. Termos técnicos suportam as acepções decorrentes do progresso da ciência a que se acham ligados. (…) De fato, não é possível que algumas séries de normas, embora bem elaboradas, sintéticas, espelhem todas as faces da realidade. Por mais hábeis que sejam os elaboradores de um Código, logo depois de promulgado surgem dificuldades e dúvidas sobre a aplicação de dispositivos bem redigidos. Uma centena de homens cultos e experimentados seria incapaz de abranger em sua visão lúcida a infinita variedade dos conflitos de interesses entre os homens. Não perdura o acordo estabelecido, entre o texto expresso e as realidades objetivas. Fixou-se o Direito Positivo; porém a vida continua, envolve, desdobra-se em atividades diversas, manifesta-se sob aspectos múltiplos: morais, sociais, econômicos. Transformam-se as situações, interesses e negócios. Surgem fenômenos imprevistos, espalham-se novas idéias, a técnica revela coisas cuja existência ninguém poderia presumir quando o texto foi elaborado. Nem por isso se deve censurar o legislador, nem reformar a sua obra. A ação do tempo é irresistível, não respeita a imobilidade aparente dos Códigos. Aplica-se a letra intata a figuras jurídicas diversas, resolve modernos conflitos de interesses, que o legislador não poderia prever. Se de outra forma se agisse e se ativesse ao pensamento rígido, limitado, primordial, a uma vontade morta e, talvez, sem objeto hoje, porquanto visara a um caso concreto que se não repete na atualidade; então o Direito positivo seria uma remora, obstáculo ao progresso, monólito inútil, firme, duro, imóvel, a atravancar o caminho da civilização, ao invés de o cercar apenas de garantias” (9). Nesse sentido, a interpretação e a aplicação do direito devem levar em consideração a realidade sócio-cultural atual para lograr aceitabilidade ou razoabilidade.
É muito comum as leis possuírem por fundamento um abuso recente. Diversos autores consagrados, como v.g., Paulo Dourado de Gusmão, lembram que em regra, os elaboradores das normas são sugestionados por fatos isolados, nitidamente determinados, que impressionam a opinião pública, embora a linguagem mantenha o tom de idéias gerais, preceito amplo. A elaboração de uma lei é tarefa de extrema responsabilidade e seriedade.
Sabemos que o direito é por natureza conservador, sendo certo que a introdução de novos princípios e normas exigidos pelos desafios dos novos fatos é lenta e gradual. Há um descompasso freqüente entre a ordem jurídica e as transformações sociais, não devendo o direito conforme a experiência têm demonstrado, distanciar-se com grande intensidade das transformações da sociedade.
O texto Fundamentos axiológicos da hermenêutica de autoria de José Ricardo Cunha, que passaremos a comentar brevemente, está inserido como importante capítulo do livro “Hermenêutica Plural” (São Paulo: Martins Fontes, 2002.) organizado pelos professores Carlos Eduardo de Abreu Boucault (UNESP – Franca/SP) e José Rodrigo Rodriguez.
No mesmo sentido do que dizíamos a pouco, o mundo jurídico, conforme destaca José Ricardo Cunha (J.R. Cunha), nunca se apresenta ao mundo da vida de maneira imediata, ou seja, instantânea, sem detença e sem permeio. As modificações na área jurídica são introduzidas lentamente em razão das estruturas que formam a ciência jurídica. O atraso nas transformações fica ainda mais evidente em comparação com a medicina, a informática, a biologia, etc.
O humanismo implícito na atividade hermenêutica e interpretativa é que oferece um suporte, uma tranqüilidade quanto ao pesadelo da aplicação mecânica e autômata da norma jurídica. Estamos vivendo a grave situação de acomodação do pensamento jurídico diante das supostas verdades que são aparentemente legitimadas por uma epistemologia positivista de caráter mecanicista e determinista. (10) A dogmática jurídica oferece a possibilidade da aplicação do direito sem compromisso com reflexões e estudos aprofundados. Não se trata de simplicidade, mas de um comportamento extremamente pragmático que acredita ser eficaz.
Citando Hanna Arendt, o referido autor no texto em análise, lembra das advertências acerca dos perigos e contradições da redução matematizante do mundo, capaz de nos embriagar com suas verdades absolutizantes e universais, porém limitadoras de uma experiência livre, radical e humana de pensamento. É a cultura do positivismo epistemológico determinista e absolutizante, que reduz o homem à condição de mero espectador, transformando sua racionalidade em uma máquina lógica para concluir verdades necessárias. (11)
A idéia do reconhecimento do modelo epistemológico supostamente linear e exato das ciências naturais como único modelo aceitável foi duramente combatida por diversos setores da filosofia contemporânea. José Ricardo Cunha ressalta a posição de Miguel Reale, que entre nós, já havia advertido sobre o gravíssimo erro de confundir os paradigmas das ciências naturais e humanas. “(…) Bastará dizer que as leis físico-naturais são cegas para o mundo dos valores; não são boas nem mais prudentes ou imprudentes, belas ou feias, mas podem ser apenas certas ou não, conforme sua correspondência adequada aos fatos que explicam (…) No mundo humano, ao contrário, como os fatos sociais fazem parte da vida, dos interesses e dos fins do observador, este, por mais que pretenda ser cientificamente neutro, não os vê apenas em seus possíveis enlaces causais. Há sempre uma tomada de posição perante os fatos, tomada de posição essa que se resolve num ato valorativo ou axiológico. (…) Daí Dilthey ter afirmado, e depois dele o problema tem logrado outros desenvolvimentos, que a natureza se explica, enquanto a cultura se compreende.” (12)
A propósito, é possível encontrar argumentos muito interessantes a respeito do conhecimento e o juízo de valor na obra de Karl Jaspers (Introdução ao pensamento filosófico. São Paulo: Cultrix, 1992). No começo do século XX já era extremamente relevante esclarecer a relação entre as considerações de valor e o conhecimento científico. Nas ciências humanas não podemos nos contentar com a constatação de algo que fisicamente existe, perceptível aos nossos sentidos, mensurável, avaliado através de experiências. Nas ciências humanas, temos de compreender a significação perseguida pelos seres que agem, pensam, prevêem e acreditam; Não podemos nos contentar com o conhecimento exterior das coisas, mas temos de apreender, no seu interior, o significado posto pelo homem. (13)
Sobre a diferença estabelecida por Dilthey (citada por Miguel Reale) e referenciada nos escritos de J.R. Cunha, é interessante ressaltar a menção ao trabalho de Hans-Georg Gadamer (O problema da consciência histórica) – e as diferenças dos fundamentos epistemológicos das Geisteswissenchaften (ciências do espírito) em relação às Naturwissenschaften (ciências da natureza), já que, diferentemente destas, as primeiras se baseiam numa realidade social e histórica e, como tal, irredutíveis a modelos causalistas.
Ressalta J.R. Cunha, que a hermenêutica ocupa papel de vital importância no âmbito do direito, pois assegura a função ôntica do sujeito (relativa ao seu estudo, às suas características) na constituição da regulação jurídica, recuperando o teor essencialmente humanístico que deve permear o direito em todas as suas situações. “Diferentemente das verdades naturais que a epistemologia positivista entende, equivocadamente, como verdades universais e necessárias, as verdades jurídicas estão em constante mutação, num devir (14) permanente cadenciado por uma hermenêutica que liga o mundo da vida e o mundo jurídico, o fato e a norma, sujeito e objeto. Nesse dinamismo a tentação das crenças metafísicas e axiomáticas não resiste à necessidade de contínua refundamentação, uma vez que tudo é provisório e precisa, por isso mesmo, ser reafirmado constantemente, sob pena de desaparecer ou se tornar obsoleto.” (15) (destacamos)
No início das reflexões sobre os conceitos acerca da hermenêutica jurídica, o autor em referência, ressalta a definição de consciência histórica de Gadamer como o privilégio do homem moderno ter plena consciência da historicidade de todo presente e da relatividade de toda opinião. “Ninguém pode atualmente eximir-se da reflexividade que caracteriza o espírito moderno. Seria absurdo, daqui por diante, confinar-se na ingenuidade e nos limites tranqüilizadores de uma tradição fechada sobre si mesma, no momento em que a consciência moderna encontra-se apta a compreender a possibilidade de uma múltipla relatividade de pontos de vista.” (16) A consciência histórica reflete que o passado e futuro são feitos a nossa imagem e semelhança, positiva e negativamente. É da consciência histórica que desdobra a nossa consciência ética, lembrando-nos sobre o nosso passado e alertando-nos sobre que tipo de futuro queremos. Com efeito, para J.R. Cunha apresentam-se totalmente indissociáveis a consciência hermenêutica, histórica e ética.
Lembra-nos ainda que “a despeito do caráter pragmático que possa ter a ordem jurídica com a composição de conflitos específicos, a idéia de direito seria insondável caso se afastasse dela sua responsabilidade histórica e ética com a regulação das ordens vigentes. Por isso, a consciência da experiência jurídica representa a responsabilidade do operador jurídico com o passado e o futuro de uma comunidade ou dada sociedade organizada através do direito. O que se pretendeu na propositura da norma jurídica e o que se pretende na sua concreção correspondem a um processo de mediação voltado para um futuro próximo e específico: o da composição da lide. Na tarefa judicante impera a consciência hermenêutica, uma vez que “entre a hermenêutica jurídica e a dogmática jurídica existe, pois, uma relação essencial, na qual a hermenêutica detém uma posição predominante. Pois não é sustentável a idéia de uma dogmática jurídica total, sob a qual se pudesse baixar qualquer sentença por um simples ato de subsunção” (17) (…) O caso concreto presente que é o ponto de partida invoca resolução através de um ordenamento jurídico preexistente – passado – visando uma composição fundada em justa ponderação – futuro.” (18) O futuro não pode ser uma abstração imaginativa, mas o resultado da consciência hermenêutica do operador do direito, em especial o magistrado.
É a hermenêutica jurídica que atribui a responsabilidade ao operador do direito pela concreção, louvável ou reprovável, da ordem jurídica ou da idéia de direito. Por essa razão destaca-se que a hermenêutica não pode ser pensada sem os devidos fundamentos axiológicos ou éticos.
Fazendo um resgate etimológico da palavra “hermenêutica”, J.R. Cunha ressalta as origens gregas desde hermeneuein que é tradicionalmente traduzido como interpretar até às referências na mitologia grega, como Hermes (titã que, segundo a mitologia, teria sido o descobridor da linguagem e da escrita).
Sobre a diferença entre hermenêutica e interpretação, é mencionada a tendência da doutrina brasileira em acompanhar o já clássico pensamento de Carlos Maximiliano Pereira dos Santos (Hermenêutica e aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 1997.) que define interpretação como a determinação do sentido e alcance das expressões de direito e hermenêutica como a ciência responsável pelo estudo e sistematização dos processos utilizados pela interpretação. Referenciando os escritos de Dilvanir José da Costa (Curso de hermenêutica jurídica. Belo Horizonte: Del Rey, 1997.) – lembra-nos ainda que “(…) no sentido amplo, interpretação é sinônimo de hermenêutica. Mas técnica e juridicamente se distinguem. Enquanto interpretação é o próprio ato de extrair o sentido exato da lei, de traduzir a vontade social, a hermenêutica é a ciência, a teoria e a doutrina da interpretação.” – Um critério genérico, mas presente na maior parte das conceituações, diz respeito ao binômio teórico-prático, isto é, enquanto a hermenêutica jurídica se liga a uma tarefa mais teórica, reflexiva ou especulativa, a interpretação jurídica se realiza como tarefa de ordem prática ou operativa. (…) Assim, a interpretação jurídica tem como pressuposto a hermenêutica jurídica que lhe confere os valores e princípios fundamentais que devem orientar a busca do sentido e do alcance das normas aplicáveis (19). (…) A hermenêutica é responsável pela inteligibilidade da ordem jurídica, ou seja, pela sua compreensão a partir dos valores e princípios que são fundantes do próprio direito e das finalidades últimas da ordem jurídica. Dessa compreensão decorre que a experiência jurídica não pode reduzir-se jamais aos cânones (20) legais e o conhecimento do direito não pode se limitar ao conhecimento do direito positivo, pois este só é produtivo através da mediação histórica de sujeitos livres no âmbito da hermenêutica.” (21) (destacamos)
A estrutura do ordenamento jurídico está diretamente relacionada com as exigências sociais de ordem e estabilidade consolidadas em valores como dignidade, liberdade, solidariedade e igualdade. J.R. Cunha lembra ainda que em razão dessas implicações teleológicas que conformam os fins últimos do direito, o respeito e a lealdade a esta estrutura deve ser “(…) inspiração constante no trabalho hermenêutico de inteligibilidade do ordenamento jurídico e na ação interpretativa de aplicação desse mesmo ordenamento. Assim sendo, a busca de sentido empreendida pela interpretação e sustentada pelos fundamentos da hermenêutica deve estar voltada para a superação de três ameaças incompatíveis com a finalidade da ordem jurídica, a saber: vagueza, incoerência e iniqüidade. A vagueza resulta da inconsistência do enunciado normativo, provocando uma dose de instabilidade excessiva; a incoerência resulta da contradição entre os enunciados normativos, provocando ameaçadora desordem; e, finalmente, a iniqüidade resulta do não-reconhecimento das condições singulares do caso, provocando injustiça incompatível com os valores jurídicos. (…) A partir da tarefa precípua do intérprete de superar a vagueza, a incoerência e a iniqüidade, a doutrina jurídica organizou e classificou diretrizes e formas distintas de interpretação, embora entrelaçadas e, muitas vezes, complementares. Apesar de certa variação decorrente do enfoque específico do autor, a classificação segue padrão geral e pode ser dividida a partir de três critérios básicos: o agente, o método e o efeito. A interpretação classificada quanto ao agente responde à pergunta “quem interpreta?”. Essa pode ser: a) doutrinal; b) judicial; c) administrativa e d) legal. (…) A interpretação classificada quanto ao método responde à pergunta “como interpreta?”, podendo ser: a) gramatical; b) lógica; c) sistemática; d) histórica e e) sociológica. (…) A interpretação classificada quanto ao efeito responde à pergunta “qual o resultado?” – Pode ser: a) declarativa; b) extensiva e c) restritiva.” (22)
A propósito dos diversos métodos, Christiano José de Andrade destaca que o intérprete faz falar o texto legal, reformulando-o, de modo que o seu sentido é apresentado com palavras mais claras e precisas, aumentando desta forma sua eficácia comunicativa e persuasiva e serviço do poder. O intérprete apresenta-se como mediador diante do texto legal, realizando uma conversão parafrástica redefinitória e persuasiva. (cit. Roberto J. Vernengo) – “(…) A interpretação, bem como os seus métodos, tem conexão com a ideologia que influencia o sentido dado às normas pelo intérprete, ao mesmo tempo em que atua no discurso normativo como elemento estabilizador e neutralizador, ao eliminar outras possibilidades, o que configura uma imposição de significados, como violência simbólica. As chamadas teorias científicas sobre a interpretação da lei não passam de dados ideológicos sobre o sentido das normas servindo assim como diretrizes para o raciocínio dos juristas. Todavia, os diversos métodos de interpretação inventados pelos juristas situam-se na perspectiva da progressiva racionalização de todos os setores da vida, inclusive do Estado e do Direito, conforme a arguta observação de Max Weber, e tem assim o objetivo de descartar estratégias ou métodos irracionais para evitar distorções excessivas e impedir que a interpretação fique abandonada ao arbítrio do intérprete. (…) Interpretar um texto legal significa decidir-se por uma entre muitas possíveis interpretações, o que resulta em imposição de um significado ou poder de violência simbólica. Assim a pretensão de uma interpretação verdadeira, correta e definitiva, ou seja, de cientificidade, oculta uma opção política ou ideológica. (…) Conforme Kelsen, não há condições de afirmação de critérios científicos para a interpretação (23). (…) Na interpretação parece prevalecer a ideologia da realidade social do tempo da aplicação da lei. Atender à realidade sócio-econômica é o mesmo que atender as exigências do bem comum e aos fins sociais da lei que dão a regulagem da interpretação e da decisão justa. Assim a “ratio legis” se objetiva e se atualiza. Embora sem desprezar a dimensão estabilidade, a interpretação está mais voltada para a dimensão mobilidade do Direito, adaptando-o à realidade social do momento de sua aplicação. A valoração jurídica é um fato do presente. A dogmática jurídica torna-se então menos retrospectiva e mais prospectiva. (…) A positivação do Direito, quer no concernente à lei, quer no atinente à decisão de um “dubium” conflitivo, é uma manifestação da soberania estatal. Em ambos os casos, o ato decisório do poder faz preponderar significados com funções estabilizadoras e neutralizadoras. Neste sentido, a interpretação jurídica configura uma violência simbólica. Como diz Tércio Sampaio Ferraz Jr., é um processo em que há uma relação de autoridade, em cuja base está o valor justiça, uma referência à liderança, o valor, o consenso, a opinião dos teóricos do Direito, de um modo geral, e uma relação de reputação, capaz de despertar a crença de que o emissor fala a verdade. Assim, a interpretação, para ter autoridade, liderança e reputação, e, destarte, impor significados precisa recorrer a técnicas ou instrumentos específicos de exercícios do poder. Neste sentido, a interpretação aumenta a eficácia comunicativa do texto legal, como transmissão de seletividade, a serviço do poder. Também a violência simbólica reforça a eficácia do sistema jurídico e a efetividade do poder político. O ato decisório da escolha e da opção por uma interpretação é um ato de poder, que culmina na discricionariedade, ou seja, num voluntarismo estruturado ou racionalizado e não na arbitrariedade, significando que a interpretação pode ser controlada. Nas situações problemáticas, a opção por uma das alternativas representa um grau maior de vontade ou discricionariedade. A imprecisão semântica das palavras da lei também propicia essa discricionariedade. Também o pensamento eqüitativo está conectado ao poder discricionário. A justificação da escolha já é uma limitação do arbítrio. Assim a função dos métodos de interpretação é opor limites a liberdade do intérprete, determinando a área de soluções justificáveis e evitando soluções arbitrárias à margem do Direito. (…) O sistema combinatório e medianeiro, de Carlos Maximiliano, culmina no evolucionismo teleológico, de Jhering, de feição moderada, adotado no art. 5º da LICC, e que engloba o método teleológico e o histórico-evolutivo ou progressivo. Baseado em Jhering (O espírito do direito romano), Carlos Maximiliano afirmava que o método evolutivo já era praticado habilmente pelos primitivos jurisconsultos romanos, para atender as necessidades da vida real e as exigências da época. Para R. Limongi França, adepto do sistema da livre pesquisa moderada de Gény, o método histórico-evolutivo é o que mais profundas raízes deita em nossa tradição jurídica; os próprios Estatutos da Universidade de Coimbra já consagravam esse sistema, que, em nosso direito, aflora na obra de Antonio Joaquim Ribas, de Lourenço Trigo de Loureiro e de Teixeira de Freitas. (…) Todavia, parece-me que a combinação do evolucionismo teleológico assente no art. 5º, da LICC, com os modos de integração previstos no art. 4º, da mesma lei, e nos arts. 126 e 127, do CPC, torna o nosso sistema mais completo e amplo do que o sistema da livre pesquisa científica, moderada, de Gény, que num primeiro momento exige do intérprete fidelidade ao texto legal, sem lançar mão de artifícios como o método histórico-evolutivo. A doutrina jurídica exerce influência nas decisões judiciárias, segundo o critério de justiça. Os pontos de vistas gerais ou lugares comuns, influenciados pela doutrina, auxiliam o intérprete a construir as premissas dos entimemas (24), que justificarão retoricamente a decisão como solução razoável, mais humana, mais justa, dos problemas apresentados. Por conseguinte, a argumentação retórica equivale à lógica do razoável. E esta versão refinada da eqüidade, desponta nos métodos teleológicos e histórico-evolutivos. A nova retórica proposta por Chaïm Perelman, segundo Antonio Luiz Chaves Camargo, servirá de base para a constante atualização dos termos da lei, que serão adaptados à situação do momento. (…) A solução da real antinomia é encontrada pelo intérprete, mediante o emprego da interpretação eqüitativa, semelhante à lógica do razoável, ante o disposto no art. 5º, da LICC, que prescreve que na aplicação da lei deverá o juiz atender aos fins sociais a que ela se dirige e as exigências do bem comum. Assim deve ser adaptada a norma que for mais razoável à solução do caso concreto. A incapacidade humana para prever o futuro é a base da indeterminação das regras jurídicas, expressadas numa linguagem natural. Daí as imprecisões semânticas da linguagem normativa, caracterizadas sobretudo pela vagueza e ambigüidade de suas palavras. Essa imprecisão favorece o poder discricionário do intérprete, propiciando até o processo direto de redefinição, que é a alteração de significado de um termo, possibilitando sua aplicação a situações antes não consideradas. Isto explica as inúmeras divergências doutrinárias e jurisprudenciais. A lógica do razoável, versão refinada da eqüidade, que aflora nos métodos teleológico e histórico-evolutivo é o processo mais apto para solucionar os casos marginais ou atípicos, da chamada zona de penumbra. (…) A interpretação funciona como uma redefinição de forma persuasiva, sob a aparência de uma definição empírica, objetiva e neutra, encobre juízos de valor diante da plurivocidade (vagueza e ambigüidade) dos conteúdos normativos. E, ao fazer utilização de seus métodos, a interpretação identifica o sentido da norma, dizendo, através de uma paráfrase, como ele deve ser, impondo assim um significado. A paráfrase reformula o texto leg
al, redefinindo-o, tornando-o mais claro e conveniente, aumentando a sua eficácia comunicativa e persuasiva, a serviço de um poder de violência simbólica. No direito positivo brasileiro prevalece como regra metanormativa, extensiva e impositiva a toda a ordenação jurídica, o art. 5º, da LICC, que se projeta na perspectiva da eqüidade, da lógica do razoável, e dos métodos teleológicos e histórico-evolutivos. Este preceito básico, que tem similar no direito espanhol atual, tem servido de orientação à hermenêutica jurídica aplicada pelos nossos tribunais. (…) A interpretação exerce liderança e impõe significados de acordo com o consenso dos doutrinadores, do povo, etc. (…) A interpretação da lei é feita tendo em vista a sua aplicação. Toda aplicação da lei já é interpretação. E para alguns autores, a interpretação se qualifica como concretização. Todavia, numa sociedade estratificada, altamente complexa, contraditória e muito desigual economicamente, aumentam as dificuldades para a avaliação do bem comum e dos fins sociais da lei, que calibram a justiça da interpretação e da decisão.” (25)
No que diz respeito, especificamente, aos valores na hermenêutica jurídica, José Ricardo Cunha ressalta ainda que a hermenêutica não pode ser reduzida a mero procedimento técnico de regulação sem o reconhecimento dos aspectos valorativos. “Pode-se falar de fundamentos axiológicos da hermenêutica jurídica, devendo estes fornecer os conteúdos éticos necessários à inteligibilidade da ordem jurídica e a sua concreção através da atividade interpretativa voltada para a aplicação do direito. (…) Seria grotesca vulgaridade cogitar uma aplicação do direito esvaziada de seu compromisso com os valores sociais e com os valores constitutivos da própria ordem jurídica. (…) Entre os romanos, donde herdamos considerável acervo de nossa cultura jurídica, já se registrava, nas primeiras páginas do “Digesto”, essa fundamentação axiológica ou ética que é inarredável da idéia direito: “Iuri operam daturum prius nosse oportet, unde nomem iuris descendat. Est autem a iustitia appelatum, nam, ut eleganter Celsus definit, ius est ars boni et aequi.” – “Convém, para aqueles que haja estudar o direito, primeiro conhecer de onde provém a palavra ´ius´. Ora, é chamada assim porque derivada de “iustitia”; pois como, elegantemente, Celso define: “ius” é a arte do bom e do justo.” (26)
Como “regra de ouro” e base axiológica da hermenêutica e da interpretação jurídica, José Ricardo Cunha, destaca ainda o art. 5º, da Lei de Introdução ao Código Civil – “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.” – É a justificação de uma aplicação razoável da norma (aceitável, pois restrita aos parâmetros éticos que sustentam a juridicidade).
Fatores internos e externos ao ordenamento geram como conseqüência uma série de atualizações de sentido e valoração das normas, proporcionando com isso alteração de sentidos normativos sem alterações no texto. Como afirma Miguel Reale, citado no texto em estudo: “(…) basta que se altere o prisma histórico-social de sua aferição axiológica.” (27)
Paulo Dourado de Gusmão menciona em sua obra, importante passagem em que “Kirchmann (El carácter a-cientifico de la llamada ciencia del derecho, trad.) em conferência célebre, disse: “(…) a ciência do direito, tendo por objeto o contingente, é também contingente: três palavras retificadoras do legislador tornam inúteis uma inteira biblioteca jurídica”. Tal contingência, comum às coisas históricas, só tornaria anacrônica uma forma de saber jurídico, que seria substituída por outra tendo por objeto o novo direito. Anacrônico, mas não sem validade, por ter valor histórico. Capograssi, em 1937, respondendo a essa objeção clássica, admitiu poder ser sustentada a natureza científica do estudo do direito, apesar de sua mutabilidade, desde que não se considere a norma jurídica, que é mutável, como objeto da ciência do direito, mas a experiência jurídica dotada de certa estabilidade, semelhante à dos demais fatos históricos, pois, pelo menos, ao se modificar, não anula a experiência passada, que, como tradição, se mantém viva. Diga-se de passagem: não é a norma que é mutável, mas o seu conteúdo.” (28) (destacamos)
Em sua teoria tridimensional do direito, Miguel Reale afirma que: “(…) muitas e muitas vezes, porém, as palavras das leis conservam-se imutáveis, mas a sua acepção sofre um processo de erosão ou, ao contrário, de enriquecimento, em virtude de interferência de fatores diversos que vêm amoldar a letra da lei a um novo espírito, a uma imprevista ratio juris. Tais alterações na semântica normativa podem resultar: a) do impacto de valorações novas, ou de mutações imprevistas na hierarquia dos valores dominantes; b) da superveniência de fatos que venham modificar para mais ou para menos os dados da incidência normativa; c) da intercorrência de outras normas, que não revogam propriamente uma regra em vigor, mas interferem no seu campo ou linha de interpretação; d) da conjugação de dois ou até mesmo dos três fatores disciminados.” (29)
Interessante mencionar a passagem onde J.R. Cunha fala sobre a influência decisiva da epistemologia positivista na definição de “segurança” para o direito em geral. “(…) É entendida como sinônimo de previsibilidade, bem a gosto do lema positivista: ver para prever. No entanto, é sabido que esta idéia do previsível, do necessário, já não encontra fundamentos sólidos mesmo no campo das ciências da natureza, no qual a idéia de leis universais e imutáveis já foi colocada em xeque sobretudo pelo paradigma da física quântica, especialmente pelo princípio da incerteza de Werner Karl Heisenberg. Muito mais questionável é a idéia de previsibilidade no mundo da cultura, onde a realidade é sempre resultante da intervenção mais ou menos ordenada ou desordenada de sujeitos livres. (…) Em sede de argumentação jurídica sempre há possibilidade de refutação, e as conclusões são necessariamente provisórias e limitadas. (…) A objetividade da norma não pode ser convertida em fetiche da segurança jurídica e deve, também, ser tomada no âmbito da consciência hermenêutica segundo sua historicidade intrínseca.” (30)
Por isso cita Miguel Reale (na obra já referenciada): “(…) o Direito é um processo aberto exatamente porque é próprio dos valores, isto é, das fontes dinamizadoras de todo o ordenamento jurídico, jamais se exaurir em soluções normativas de caráter definitivo.”
Tendo em vista esses argumentos, há referência às palavras de Herbert Hart: “(…) a textura aberta do direito significa que há, na verdade, áreas de conduta em que muitas coisas devem ser deixadas para serem desenvolvidas pelos tribunais ou pelos funcionários, os quais determinam o equilíbrio, à luz das circunstâncias, entre interesses conflitantes que variam em peso, de caso para caso.” (31)
O caráter complexo da aplicação do direito e seus fundamentos hermenêuticos são influenciados por juízos de valor e até mesmo morais. Pensar de forma diversa é reduzir o raciocínio jurídico aos padrões da lógica formal. Sobre o tema, cita-se Ferrara: “(…) Tem-se dito que o julgamento é um silogismo em que a premissa maior está na lei, a menor na espécie de fato e o corolário na sentença. E isto é verdade, embora não se deva acreditar que a atividade judicial se reduz a uma simples operação lógica, porque na aplicação do direito entram ainda fatores psíquicos e apreciações de interesses, especialmente no determinar o sentido da lei, e o juiz nunca deixa de ser uma personalidade que pensa e tem consciência e vontade, para se degradar num autômato de decisões.” (32)
A lógica formal não prestigia o estudo das formas de raciocínio que são de vital importância em disciplinas não matemáticas (Chaïm Perelman). O Direito como ciência social aplicada não pode se realizar no plano das contemplações intelectivas ou empíricas, mas na “delimitação das condutas juridicamente aceitáveis e na tomada de decisões acerca de relações concretas, o que implica debate, escolhas, deliberações, sanções e convencimento. Trata-se de um complexo processo no qual a racionalidade não pode ser confinada aos padrões da lógica analítica nem da mera observação sensível. (…) O raciocínio jurídico não se volta para uma conclusão baseada em verdades absolutas, e sim para uma decisão baseada em argumentos versossímeis. (…) A ilusão cientificista, sobretudo moderna, de uma verdade universal e necessária se quebra claramente na epistemologia jurídica que se realiza como conhecimento de uma experiência aberta e dinâmica, com conceitos e decisões sempre refutáveis. (…) É imprescindível notar que o reconhecimento do caráter verossímil e decisional do raciocínio jurídico implica um modelo de racionalidade que não pode ser reduzido à mera causalidade ou mecanicismo.” (33)
É interessante ressaltar que a existência da tensão interna no ordenamento jurídico no momento da aplicação da norma quanto às várias possibilidades de regulação concreta. Como destaca J.R. Cunha, o objetivo da interpretação é justamente conseguir encontrar a alternativa mais adequada de acordo com os postulados da hermenêutica jurídica. Em razão disso, afirma que toda hermenêutica jurídica possui um necessário fundamento axiológico, pois é este que sustenta a decisão judicial enquanto manifestação de uma escolha justa.
O raciocínio jurídico, nesses termos, “procura ir ao encontro de uma decisão razoável através de opções valorativas sustentadas pela consciência hermenêutica e pela consciência ética que atuam na tensão dialética do ordenamento jurídico e do processo judicial. É possível afirmar que os valores que fundamentam a interpretação e a aplicação do direito constituem o verdadeiro móbil do raciocínio jurídico numa perspectiva pós-positivista.” – e complementa citando Perelman: “o raciocínio jurídico, mesmo sendo sujeito a regras e a prescrições que limitam o poder de apreciação do juiz na busca da verdade e na determinação do que é justo – pois o juiz deve amoldar-se à lei, não é uma mera dedução que se ateria a aplicar regras gerais a casos particulares (…) Se acaso uma legislação francamente iníqua (34) não lhe permitir, por uma ou outra razão, exercer o seu ofício em conformidade com sua consciência, o juiz é moralmente obrigado a renunciar a suas funções. Pois ele não é uma simples máquina de calcular. Contribuindo, com seu concurso, para o funcionamento de uma ordem iníqua, ele não pode isentar sua responsabilidade” (35)
A consciência hermenêutica, levando em consideração sua historicidade e eticidade, deve realizar essa vocação axiológica do direito, fazendo da interpretação um trabalho constante de reconstrução da norma por meio da procura de um sentido eficaz na garantia da dignidade concreta do sujeito para o qual se destina esta norma. Continua sendo esse o maior desafio que se coloca para os filósofos, juristas e todos os que se voltam para a reflexão em torno da regulação normativa da sociedade, segundo o prestigioso professor carioca.
Nas considerações finais do excelente texto de José Ricardo Cunha, o autor lança uma pergunta que cabe ser feita por cada um daqueles que atuam no mundo jurídico: “Qual é a nossa responsabilidade nisso? Não em busca de uma resposta pragmática, mas de uma resposta ética que impeça o esconder-se atrás da lei e revele o cuidado que todos devemos ter com o outro e com o mundo. Buscar os valores que dão sustentabilidade e aceitabilidade moral ao direito significa assumir a responsabilidade pelo cuidado que devemos ter com o outro. (…) Para captar essa realidade complexa, vale recordar os ensinamentos de Blaise Pascal, filósofo e matemático francês que no século XVII introduziu uma valiosa distinção entre esprit de géometrie e esprit de finesse. O espírito de geometria é o espírito calculatório e pragmático, interessado na eficiência e no poder. Raciocina mecânica e ordenadamente a partir dos princípios objetivos. O espírito de finura é o espírito da sensibilidade e da sutileza, é aquele que busca os princípios entrevistos e pressentidos, unindo o sentimento ao pensamento para buscar o significado mais profundo, mesmo que desordenado, das grandes valorações. A modernidade sempre foi guiada pelo espírito de geometria, associando-o ao pensamento cientificista. Assim, relegou o espírito de finura a um plano tido como menos importante, associado à poesia e às artes. (…) A hermenêutica e a interpretação foram capturadas e controladas pelo espírito da geometria para sempre apresentadas simplesmente como técnicas de leitura e delimitação das proposições jurídicas. (…) Não há dúvida que os fundamentos axiológicos da hermenêutica jurídica são mais bem compreendidos pelo espírito de finura”. (36)
Não temos dúvidas que o pragmatismo simplicista, alimentado pelo conhecimento fragmentário e absolutamente superficial ocupa cada vez mais espaço na sociedade e na ciência jurídica. Devemos atuar no sentido de que o estudo da hermenêutica e da interpretação seja realmente prestigiado neste país. Como lembrou o muito distinto professor Francisco de Assis de Araújo Barreto Campello (Professor de Direito Civil aposentado da UNESP – Franca/SP) em trabalho que nos presenteou em maio de 2002, o apego ao texto da lei, sem a preocupação de um estudo sério e aprofundado em hermenêutica, caracteriza falta de maturidade do desenvolvimento intelectual e involução do pensamento jurídico. (37)
NOTAS
ELIAS, Paulo Sá. A lei pode ser mais sábia que o próprio legislador. Gazeta Mercantil, São Paulo, 27 jun. 2001. Caderno Doutrina & Jurisprudência. p. 2.
Christiano José de Andrade é promotor de justiça e professor da UNESP (Franca/SP) – (em ambas as funções, aposentado). É um dos grandes estudiosos da hermenêutica jurídica no Brasil.
Não estamos considerando que não sejam importantes, apenas optamos por um distinto enfoque didático que será justificado logo a seguir.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Algumas lembranças. Rio de Janeiro: Forense, 2001.
Opus citatum.
MACHADO, Antônio Alberto. Ministério Público – Democracia e Ensino Jurídico. Belo Horizonte: Del Rey, 2000.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 1997.
Id. ibidem.
Id. ibidem.
CUNHA, José Ricardo. Fundamentos axiológicos da hermenêutica. In: BOUCAULT, C.E.; RODRIGUEZ, J.R. (Org). Hermenêutica Plural – possibilidades jusfilosóficas em contextos imperfeitos. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 309-351.
Id. ibidem.
REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito. p. 86. Apud CUNHA, José Ricardo. Fundamentos axiológicos da hermenêutica. Ibidem.
JASPERS, Karl. Introdução ao pensamento filosófico. São Paulo: Cultrix, 1992.
Vir a ser; tornar-se, transformar-se, devenir.
CUNHA, José Ricardo. Op. cit.
GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998. apud CUNHA, José Ricard. Op. cit.
Id. ibidem.
CUNHA, José Ricardo. Op. cit.
Chega-se, pois, a conclusão caber à hermenêutica a inteligibilidade da ordem jurídica e à interpretação a operatividade e aplicabilidade dessa mesma ordem.
Conceitos, regras, modelos, padrões, maneira de agir.
Id. ibidem
No texto em estudo, José Ricardo Cunha apresenta um gráfico extremamente didático apresentando as referidas formas de interpretação. Consulte-o.
É importante garantir ao magistrado um arsenal que lhe permita encontrar uma sentença justa, de acordo com a realidade social do momento da interpretação.
Silogismo truncado ou incompleto em que falta uma premissa ou se subentende uma premissa.
ANDRADE, Christiano José de. A hermenêutica jurídica no Brasil. 1989. 400p. Tese de doutorado – Faculdade de Direito da Universidade de Sao Paulo (USP), São Paulo-SP.
Id. ibidem
REALE, Miguel. Op. cit. Apud CUNHA, José Ricardo. Op. cit.
GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao Estudo do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 1992
REALE, Miguel. Op. cit. Apud CUNHA, José Ricardo. Op. cit.
CUNHA, José Ricardo. Op. cit.
HART, Herbert L. A. O conceito de direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1986. apud CUNHA, José Ricardo. Op. cit.
FERRARA, Francesco. Interpretação e aplicação das leis. Coimbra: Armênio Amado, 1987. apud CUNHA, José Ricardo. Op. cit.
CUNHA, José Ricardo. Op. cit.
Contrária ao que é justo, mau, perversa, malévola.
PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1996. apud José Ricardo Cunha (op. cit)
CUNHA, José Ricardo. Op. cit.
CAMPELLO, Francisco de Assis de Araújo Barreto. Raízes indianas, gregas e romanas da integração, da interpretação e da aplicação da norma jurídica. Palestras do Curso de Direito, 1987, Faculdade de Direito da UNESP – Universidade Estadual Paulista (Franca/SP).
BIBLIOGRAFIA
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BOUCAULT, Carlos Eduardo de Abreu.; RODRIGUEZ, José Rodrigo. (Org). Hermenêutica Plural – possibilidades jusfilosóficas em contextos imperfeitos. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
CAMPELLO, Francisco de Assis de Araújo Barreto. Raízes indianas, gregas e romanas da integração, da interpretação e da aplicação da norma jurídica. Palestras do Curso de Direito, 1987, Faculdade de Direito da UNESP – Universidade Estadual Paulista (Franca/SP).
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