A Hermenêutica Jurídica na obra de Francesco Ferrara:
uma (re)leitura do “Tratatto de Diritto Civille Italiano”
Éder Ferreira
acadêmico dos cursos de Direito e Administração pela Universidade de Uberaba, co-fundador da Comissão de Estudos para Implantação do Conselho Municipal do Idoso em Uberaba (2003).
“A interpretação deve ser objetiva, equilibrada, sem paixão, arrojada por vezes, mas não revolucionária, aguda, mas sempre respeitadora da lei.”
(Francesco Ferrara)
Resumo: O presente artigo visa apresentar a concepção hermenêutica do direito apresentada por Francesco Ferrara, na Itália, em 1921, no Tratatto do Diritto Civille Italiano, o qual traz um debate atual acerca da interpretação e aplicação do direito. Ferrara, neste tratado, atribui papel central ao caráter teleológico da interpretação jurídica, sem, entretanto, excluir os momentos histórico, gramatical e lógico do processo hermenêutico. Além disso, defende a junção e fusão das vistas, das críticas e dos desejos da teoria e da prática, isto é, entre a lei e sua aplicação, que somente ocorre no órgão jurisdicional, para cooperarem na atividade legislativa.
Palavras-chave: Hermenêutica Jurídica, Francesco Ferrara, Aplicação do Direito.
1 – Introdução
O juiz tem o papel de mediador entre a lei e o fato, ou seja, o juiz diz o direito frente aos fatos apresentados. Entretanto, o juiz o faz obedecendo a três operações:
I – averiguar o estado de fato que é objeto da controvérsia;
II – determinar a norma jurídica aplicável;
III – pronunciar o resultado jurídico que deriva da subsunção do estado de fato aos princípios jurídicos.(FERRARA, 2002, p. 09).
Diz-se, pois, que o julgamento é um silogismo cuja premissa maior é a lei, a premissa menor é o fato e a conclusão, a sentença (vide esquema 1). Entretanto não se pode reduzir a atividade judicante em mera operação matemática, uma vez que a aplicação do direito envolve fatores psíquicos e apreciações de interesse, principalmente na determinação do sentido da lei, em que não se pode alcançar a neutralidade axiológica.
Esquema 1
Premissa Maior: Lei Fatores psíquicos,
apreciações de interesse
Premissa Menor: Fato
———————–
Conclusão: Sentença
Daí, conclui-se que, antes de julgar, o juiz deve apurar os fatos e determinar o direito a que o fato se subordina. Sendo de suma relevância o fato de que cabe às partes o ônus da prova dos fatos e ao juiz a averiguação da(s) norma(s) que se aplica ao fato, atividade que constitui tarefa central do juiz e para a qual deve previamente proceder às seguintes indagações:
I – apurar que o direito existe;
II – determinar o sentido desta norma jurídica;
III – decidir se esta norma se aplica ao caso concreto.(FERRARA, 2002, p. 11).
2 – Verificação da Existência da Norma Jurídica
2.1) Crítica do texto da lei
A crítica do texto da lei consiste na verificação da autenticidade da lei em sua complexidade e em suas partes, o que na modernidade perdeu campo visto que as leis são escritas e publicadas em documento oficial. É a verificação formal da existência da lei, levando em consideração os erros materiais do texto e os erros conceituais de redação ou coordenação.
Os erros materiais do texto que levam a lei ao vício ocorrem por incorreções tipográficas, erros de impressão, mudança de palavras ou de algarismos, acréscimos ou omissões, pontuação diversa, transposições, que podem alterar o sentido da disposição.(FERRARA, 2002, p. 13)
Quando esses vícios ocorrem de maneira tal que se possa perceber palavra estranha ao texto legal que lhe retira a coesão ou coerência e há outra palavra foneticamente semelhante que em substituição àquela devolve ao texto o caráter lógico, ou casos semelhantes que não demandem muito esforço de correção, pode o juiz exercer sua crítica e até emendar o texto da lei.
Se no entanto esses vícios importarem em substancial divergência de pensamento ou determinam equívoco sobre o sentido da lei, o juiz estará vinculado ao texto publicado na imprensa oficial. Neste caso, poderá a parte interessada argüir a inexatidão do texto publicado em relação ao texto original, já que, sendo assim, nenhuma lei atingiu existência – o texto impresso por não corresponder à vontade do legislativo, e o texto original por não ter sido devidamente publicado – e, portanto a solução cabível é uma nova publicação do texto original ou uma retificação oficial.
Já os erros conceituais de redação ou coordenação são manifestações, omissivas ou comissivas, tecidas na elaboração do texto da lei que não coincidem com a vontade do legislador. Neste caso, dado o caráter vinculante do erro no texto da lei, não pode o juiz retificar a lei, salvo se a retificação resultar da interpretação do texto da própria lei ou de outras normas. Ou seja, a tarefa crítica do judiciário se alarga na medida em que se aplicam leis mais antigas ou princípios do direito, os quais devem ser observados em consonância à época.
2.2) Controle substancial da existência da lei
E o controle substancial da existência da lei diz respeito à análise da substância da lei, ou seja, é neste momento que se distingue a norma jurídica das demais
regras que não têm caráter jurídico, ou por falta das condições e formas constitucionais para seu nascimento, ou por falta de competência e poder na autoridade que as emanou, ou enfim, porque essas normas perderam sua eficácia em virtude de ab-rogação.(Ibidem, 2002, p. 16).
No caso de discordância entre o texto aprovado pelas duas Câmaras e o sancionado e promulgado, dir-se-á que não há lei, “há aparência de lei”, da qual não pode decorrer nenhuma conseqüência jurídica, visto que a sanção e promulgação estão subordinadas à aprovação nas duas Câmaras, não podendo, pois, substituí-la. Uma vez que
A promulgação, com efeito, não serve para completar a lei, não é o último estádio de seu processo de formação, mas pressupõe a lei já formada. É um documento que atesta solenemente a existência da lei […].(FERRARA, 2002, p. 19).
Por isso, entende-se que a promulgação não constitui meio único de se verificar a existência da lei, sendo pois, suscetível de crítica e revisão, do judiciário, mas somente no que tange à “existência exterior dos elementos da lei: aprovação dos órgãos legislativos, promulgação, publicação […]”.
Com efeito, a esfera jurisdicional engloba também a delegação legislativa do poder executivo, a qual, quando extrapola sua competência, reveste-se de nulidade no campo jurídico mediante ato jurisdicional. O decreto-lei é uma disposição emanada do poder executivo, em circunstâncias extraordinárias e de urgência, para as quais o processo legislativo demoraria a formalizar decisões, mas o executivo por ser uma “espécie de gestor de negócios” pode antecipá-lo em fornecer uma solução. Desta forma, “resulta que os decretos-lei hão de considerar-se como leis potenciais, dependentes de aprovação, e que tal aprovação opera com eficácia retroativa”.(Ibidem, p. 20)
3 – Determinação do Sentido das Normas Jurídicas – Interpretação
“Aplica-se a interpretação a todas as leis, sejam claras ou sejam obscuras, pois não se deve confundir a interpretação com a dificuldade da interpretação.”
(Francesco Ferrara)
3.1) Idéias Gerais
A lei exprime a vontade do legislador por meio de palavras, que constituem a letra da lei, ou seja, a lei está para a alma como as palavras – letra da lei – estão para o corpo. A lei é, pois, muito mais profunda que seu texto, e, portanto, o aplicador do direito deve apreciar a vontade da lei, não o que as palavras que a constitui representam estritamente (1). Daí surge a classificação da aplicação das leis em sentido amplo e em sentido estrito, sendo esta a interpretação que “consiste em determinar a significação da lei e desenvolver seu conteúdo em todas as direções” e aquela, a que “compreende também a analogia, isto é, a elaboração de normas novas para casos não contemplados, induzidos de casos afins regulados pela lei”.
Deve o aplicador, então, interpretar todas as leis, claras ou não, de forma arrojada por vezes, mas não revolucionária, evitando os excessos:
de uma parte daqueles que por timidez ou inexperiência estão estritamente agarrados ao texto da lei, para não perderem o caminho (…); por outro lado, o perigo ainda mais grave de que o intérprete, deixando-se apaixonar por uma tese, trabalhe de fantasia e julgue encontrar no direito positivo idéias e princípios que são antes o fruto das suas locubrações teóricas ou das suas preferências sentimentais.(FERRARA, Op. Cit., p. 25).
Deve ainda observar que a interpretação jurídica não se assemelha à histórica ou filológica, as quais se aplicam a documentos históricos esgotando-se com o achado de um sentido histórico, sem, entretanto avaliar sua logicidade. Diferente é a interpretação teleológica, aplicável ao direito, e que tem por objeto os fins a que se destina a lei, a finalidade para a qual foi criada, os resultados que dela se espera, uma vez que a lei sempre visa a tutela de um bem, dito jurídico.
Dado, então, o caráter lógico da interpretação, quando fala-se em interpretação filológica, está-se buscando “determinar o sentido da lei através de sua formulação verbal”, ou seja, “pretende-se inferir logicamente das palavras o valor da norma jurídica”. Por isso é válida, no direito, a interpretação gramatical.
Na verdade, a interpretação é uma atividade única e complexa. É única por ser um processo e complexa porque se constitui de vários momentos que se integram entre si, não podendo o todo ser coeso sem uma das partes, nem as partes sem serem consideradas no todo.
3.2) A Chamada interpretação autêntica
A interpretação autêntica é aquela feita pelo próprio órgão do qual emanou a lei. A interpretação autêntica se processa mediante a elaboração de leis interpretativas, ou seja, leis que têm por finalidade a determinação do sentido de uma norma jurídica.
Não estamos em face de uma interpretação autêntica, quando se regula só para o futuro [preâmbulo] ou se completa qualquer lacuna de uma lei precedente [leis confirmativas e retificativas].(FERRARA, 2002, p. 28).
O efeito da lei interpretativa é criar interpretação vinculada ao sentido determinado por ela.
A interpretação autêntica, pelo contrário [em relação à interpretação doutrinal], declara formal e obrigatoriamente o sentido de uma lei anterior, prescindindo de que este se ache efetivamente contido na lei interpretada.(Idem, p. 28).
Portanto, não estará o legislador elaborando lei interpretativa quando esta alterar o sentido da norma interpretada ou dar-lhe finalidade diversa. E mais importante que a vinculação da interpretação da norma anterior, é a eficácia retroativa de que se reveste a lei interpretativa, já que mesmo antes de receber autêntica interpretação a norma anterior já gerava efeitos jurídicos, salvo se a controvérsia já houver sido resolvida por transação, ou pelo transito em julgado da sentença. Por isso tal lei deve emanar de órgão que possa derrogar à norma interpretada.
3.3) Objeto da interpretação – Voluntas legis, non legislatoris
A voluntas legis é a vontade do texto da lei, e a voluntas legislatoris é a vontade do legislador, expressa em lei. Na interpretação, o aplicador deve analisar a vontade da lei, aquilo que do texto pode ser extraído independente da vontade do legislador.
O intérprete deve apurar o conteúdo de vontade que alcançou expressão em forma constitucional, e não já as volições alhures manifestadas ou que não chegaram a sair do campo intencional. Pois que a lei não é o que o legislador quis ou não quis exprimir, mas tão somente aquilo que ele exprimiu em forma de lei.[SCHLOSSMANN. Der Irrtum über wesentl. Eigenschaften, p. 26.].
[…]Como diz Thöl, pela sua aplicação a lei desprende-se do legislador e contrapõem-se a ele como um produto novo, e por isso a lei pode ser mais previdente do que o legislador.(Idem, p. 30).
A grande relevância disso é que assim se pode interpretar a lei independentemente da vontade do legislador, não por desvirtuar seu sentido pela ação do tempo, mas por aplicar (novos ou antigos) princípios com uma diversa apreciação e projeção no meio social.
Daí dizer-se que a lei á uma obra de arte, distinta, pois, de quem a criou:
A obra legislativa é como uma obra artística em que a obra de arte e a concepção do criador não coincidem. Também o conteúdo espiritual da lei não coincide com aquilo que dela pensam os seus artífices: na lei está sempre um fundo, de inconsciente e apenas suspeitada vida espiritual, em que repousa o trabalho mental de séculos.(Idem, p. 31).
Dessa forma é dada a objetivação da lei, ou seja, ela é considerada em si mesma, enquanto corpo de pensamento e vontade próprios.
3.4) Método de interpretação
” A interpretação não é pura arte dialética, não se desenvolve com método geométrico em um círculo de abstrações, mas perscruta as necessidades práticas da vida e a realidade social.”
(Francesco Ferrara)
Na busca do sentido da lei, o intérprete deve analisá-la em vários momentos: primeiro, socorre-se do momento literal, ou seja, analisa o texto da lei com base nas palavras e na conexão lingüística; depois, deve-se submetê-lo – o texto da lei – à interpretação lógica, a partir da qual quer-se deduzir a voluntas legis com base em outras circunstâncias que não as gramaticais, quer sejam os elementos históricos, os racionais, quer sejam os sistemáticos.
[…] A interpretação lógica, porém, não deve contrapor-se rasgadamente à interpretação lingüística: não se trata de duas operações separadas, […] são as partes conexas de uma só e indivisível atividade.(FERRARA, Op. Cit., p. 33).
A interpretação literal (gramatical, lingüística ou verbal) é a análise da lei com base nas palavras que compõem seu texto, bem como da conexão entre elas. E se, “efetivamente, o texto da lei forma o substrato de que deve partir e em que deve repousar o intérprete”, a interpretação literal há de ser o primeiro momento da interpretação da lei.
Neste momento, o intérprete visa o sentido das palavras a partir do uso lingüístico, com base nos seguintes passos:
1°.As palavras devem entender-se no seu sentido usual comum, salvo se da conexão do discurso ou da matéria tratada derivar um significado especial técnico;
Se a acepção técnica da palavra não coincidir nem corresponder ao seu significado popular, é de presumir que o legislador usou as palavras com plena reflexão e, portanto, se serviu de seu significado técnico, de preferência ao vulgar;
2°.Quando o legislador empregar uma fórmula e maneira de dizer com um valor especial, diverso do ordinário e do jurídico, e que resulte do confronto com a terminologia e a estilística adaptada em um código ou corpo de leis, deve prevalecer este significado individual;
3°.As palavras devem ser entendidas em sua conexão;
5º)
“se as palavras são equívocas ou indeterminadas, se todo o princípio é obscuro, se resultam conseqüências contraditórias ou revoltantes, (…) Será preciso recorrer à interpretação lógica”.(FERRARA, 2002, p. 34).
Entretanto, dada a possibilidade de que as palavras sejam defeituosas ou imperfeitas; ou sejam demasiado gerais; e que não se exclui o emprego de termos errôneos, “O sentido literal é incerto, hipotético, equívoco”. Daí emerge a necessidade do momento lógico.
A interpretação lógica refere-se ao momento em que se quer deduzir a voluntas legis com base em outras circunstâncias que não as gramaticais, quer sejam os elementos históricos, os racionais, quer sejam os sistemáticos.
O elemento racional da interpretação lógica implica na análise da lei a partir da ratio legis, sem, entretanto, ignorar a occasio legis. Ou seja, entende-se o sentido da norma com base na razão que ensejou sua elaboração – ratio legis – entretanto, tal razão pode ser encontrada observando-se a ocasião de sua criação – occasio legis. A ratio legis é, pois, o “fundamento racional objetivo da norma”, enquanto a occasio legis é a “circunstância histórica de onde veio o impulso exterior para a criação da lei”.
Quanto a este elemento torna-se mister ressaltar que:
[…] a cessação das circunstâncias que fizeram nascer uma lei não exercita nenhuma influência sobre seu valor jurídico.
A ratio legis [também] pode mudar com o tempo. O intérprete, examinando uma norma de há um século, não está incondicionalmente vinculado a procurar a razão que induziu o legislador de então, mas qual é o fundamento racional de agora.(FERRARA, Op. Cit., p. 36).
Já o elemento sistemático da interpretação lógica quer se referir ao caráter complexo do direito, ou seja, o significado de uma norma em relação com as outras hierarquicamente superiores ou mais gerais.
O direito objetivo, de fato, não é um aglomerado caótico de disposições, mas um organismo jurídico, um sistema de preceitos coordenados ou subordinados, em que cada um tem o seu posto próprio.(Idem, p. 37)
Temos, pois, que o elemento sistemático nos permite vislumbrar o direito enquanto um todo harmônico, à metáfora de um organismo. É a análise da parte sem perder de vista o todo.
E, sendo “o direito, em especial o direito privado, o produto de uma lenta evolução”, o elemento histórico da interpretação racional refere-se ao (re)montar da história de institutos jurídicos com a finalidade de entender o que pelo elemento lógico não se pôde compreender. É delinear o sentido de uma norma com base na sua história, nas acepções sobre ela quando de sua criação original, no conjunto de transformações que sofreu desde sua elaboração.
3.5) Os trabalhos preparatórios
“… os Trabalhos Prepearatórios (…) amiúde não nos dizem nada ou são uma caótica mixórdia de teorias opostas em que todo o intérprete pode achar cômoda confirmação para as opiniões próprias.”
(Francesco Ferrara)
Os trabalhos preparatórios são o conjunto de trabalhos realizados pelos legisladores e que precedem à lei, incluindo desde os projetos de lei, as discussões de comissões, os motivos, relatórios, até os discursos parlamentares.
Mas a grande questão é: qual o valor desses Trabalhos Preparatórios ?
Está hoje refutada a obsoleta concepção que, identificando o legislador com o redator da lei, dava a tais discussões e opiniões quase a autoridade de uma interpretação autêntica.(Idem, p. 39).
Considera-se, pois, atualmente, os Trabalhos Preparatórios como mero material interno dos órgãos legiferantes que refletem debates dos legisladores, demonstram teorias citadas para defender ou refutar a razão da elaboração da norma, ou seja, são a expressão da manifestação de vontade individual dos diversos atores da criação da lei. Sendo assim, se nem todos fazem registrar sua vontade, e se as vontades manifestadas se contraditam, como podem ser os Trabalhos Preparatórios valorados na interpretação da lei? Duas são as possíveis valorações, como se segue:
Os trabalhos preparatórios podem esclarecer-nos relativamente às idéias e ao espírito dos proponentes da lei ou de alguns votantes, e [1] valem como subsídio, quando puder demonstrar que tais idéias e princípios foram incorporados na lei. [2] Em caso diverso, devem considerar-se momentos estranhos à lei e sem influência jurídica. Valem apenas como ilustrações de caráter científico.(FERRARA, 2002, p. 39).
Reforça-se aqui que a interpretação da norma deve ser feita no seu valor objetivo, e em conexão com o sistema jurídico.
3.6) Resultado da interpretação
“Se as palavras empregadas são equívocas ou indeterminadas, se todo o princípio é obscuro, se resultam conseqüências contraditórias ou revoltantes, a interpretação literal não poderá remediar esta situação. Será preciso recorrer à interpretação lógica”.
(Francesco Ferrara)
Quando há concordância entre o resultado da interpretação lógica e o da gramatical, diz-se ter havido uma interpretação declarativa, na qual, nada mais é feito que “declarar o sentido lingüístico coincidente com o pensar legislativo”.
-Há perfeita correspondência entre as palavras e o sentido da lei: a interpretação lógica apenas confirma e valoriza a interpretação literal ou;
– as palavras da lei são ambíguas e permitem vários sentidos à lei, e a interpretação lógica ajuda a fixar o sentido da lei: “A interpretação lógica adotará, conforme as circunstâncias, o sentido que melhor se ajuste à vontade da lei”.
A interpretação declarativa pode ser lata ou restrita conforme se adote o sentido limitado ou amplo das expressões ambíguas, respectivamente.
Entretanto, quando há discordância entre o resultado da interpretação lógica e o da gramatical, tal ” imperfeição lingüística pode manifestar-se de duas formas: ou o legislador disse mais do que queria dizer [restritiva], ou disse menos, quando queria dizer mais [extensiva].” ( FERRARA, 2003).
Ou seja, a interpretação restritiva se aplica quando o texto da lei se refere a uma classe ampla, genérica, quando quis se referir a uma classe especial de relações. Sendo assim, aplica-se:
1º) se o texto, entendido no modo tão geral como está redigido, viria a contradizer outro texto de lei; 2º) se a lei contém em si uma contradição íntima (é o chamado argumento ad absurdeum); 3º) se o princípio, aplicado sem restrições, ultrapassa o fim para que foi ordenado.(FERRARA, Op. Cit., p. 43).
Já a interpretação extensiva se aplica aos casos contrários aos da interpretação restritiva. Ou ainda, destina-se a corrigir um texto que restringe por demais a aplicabilidade da lei.
O legislador, exprimindo seu pensamento, introduz um elemento que designa espécie, quando queria aludir ao gênero, ou formula para um caso singular um conceito que deve valer para toda uma categoria.(FERRARA, Op. Cit., p. 43).
E pelo fato de reintegrar o pensamento legislativo, a interpretação extensiva se aplica a todas as normas, inclusive as normas penais e as de caráter excepcional. É, pois, o meio mais eficaz para a sistematização dos princípios do direito.
Há ainda a chamada interpretação abrogante. O resultado mais extremo a que pode chegar uma interpretação é a abrogação de uma lei, que consiste em negar sentido e valor a uma norma por ser absolutamente contraditória e incompatível com outra de caráter superior e principal. Há, embora, casos em que as normas absolutamente contradicentes e incompatíveis têm “preceitos igualmente principais e antagônicos, [é quando] a contradição leva à sua elisão recíproca”.
3.7) Desenvolvimento do sentido da lei
“Os preceitos jurídicos têm um conteúdo virtual, que é função do intérprete extrair e desenvolver.”
(Francesco Ferrara)
O intérprete da lei deve desenvolvê-la, ou seja, extrair-lhe princípios implícitos, além dos explícitos – é claro – e tirar desses princípios todas as conseqüências possíveis: tanto as expressas, quanto as latentes.
Para desenvolver a lei, o aplicador pode se utilizar dos seguintes argumentos:
1º) Legitimado um fim, legitimados estão os meios indispensáveis para se conseguir esse fim (aplicação nos temas das servidões, art. 639º). Vice-versa, se o fim é incondicionalmente proibido, são também ilícitos os meios respectivos.
2º) Quem tem direito ao mais, tem direito ao menos (argumentum a maiori ad minus). Se é vedado o menos, deve sê-lo também o mais (argumentus a minori ad maius). Se a disposição é limitada só a uns tantos casos, para os outros casos não abrangidos deve entender-se o contrário (argumentum a contrario).(FERRARA, Op. Cit., p. 46).
Entretanto, não há que se confundir o desenvolvimento das leis com a interpretação extensiva, pois enquanto esta “tem lugar quando o legislador quis dizer mais do que disse”, aquela, ao invés, propõe-se “extrair um pensamento novo não expresso, em antítese com o estabelecido para caso regulado”.(Idem, p. 47).
3.8) Integração das lacunas das leis – Analogia
“Por muito previsora e vigilante que seja a obra legislativa, é impossível que todas as relações encontrem regulamentação jurídica especial e que a plenitude da vida prática se deixe prender nas apertadas malhas dos artigos de um Código.”
(Francesco Ferrara)
As relações sociais e a sociedade se alteram com o passar do tempo, e pode ocorrer que novas formas de se relacionar se originem, não estando, pois, sob a égide do direito. Mas o ordenamento jurídico possui “tendência a contentar a aspiração das várias relações a tornarem-se objeto de regulamentação adequada”. Sendo assim, o ordenamento jurídico revela-se como um universo que contém todo o espaço amostral das relações sociais (“… é uma atmosfera que circunda a vida social…”).
Por isso embora o direito positivo não apresente disposição especial para certa matéria ou caso, há nele, porém capacidade e força latente para a elaborar, e contém os germes de uma série indeterminada de normas não expressas, mas ínsitas e viventes no sistema.(FERRARA, Op. Cit., p. 49).
Tem-se, então, que as lacunas do direito são as brechas no ordenamento jurídico deixadas pelo surgimento de novas relações jurídicas, as quais são integradas ao sistema jurídico por meio da analogia, desde que observadas as seguintes regras:
1º) Que falte uma precisa disposição de lei para o caso a decidir, que portanto a questão não se encontre já regulada por uma norma de direito – e isto não apenas segundo a letra, mas também segundo o sentido lógico dessa norma.
2º) Que haja igualdade jurídica, na essência, entre o caso regular e o caso regulado.(Idem, p. 53).
A analogia não cria direito novo, ela apenas descobre um direito já existente; é, pois, o desenvolvimento de normas latentes.
3.9) A escola do direito livre e os novos métodos de interpretação
A escola do direito livre consiste em uma nova orientação doutrinal em contraposição à clássica que delimita por demais os poderes do aplicador das leis, estando ele fadado a sempre obedecer à norma.
A escola livre do direito sustenta que,
visto ser a lei defeituosa e insuficiente, toca ao juiz corrigi-la e completa-la, e que nesta função integradora ele pode guiar-se por momentos subjetivos, por apreciações de interesses, pelo seu próprio sentimento, criando no posto e ao lado do direito positivo um direito livre judiciário.(FERRARA, Op. Cit., p. 56-57).
Seus defensores e suas respectivas teses são:
– Adickes: nega a teoria das fontes sob alegação de que lei e costume não criam o direito, ele nasce na convicção individual, logo o juiz deve descobrir livremente o direito em sua consciência. “O direito positivo é um limite à convicção do juiz, mas para além desta barreira ele pode formar direito livremente”.
– Bülow: confere à função jurisdicional a força criativa de direito, ao reconhecer um direito judiciário. “A lei não passa de ser um plano do ordenamento jurídico que é realizado só pelo juiz”.
– Kohler: estuda a teoria da interpretação, pondo à luz a força criadora da jurisprudência.
– Geny: critica os métodos tradicionais baseados na lógica formal – construção de silogismos – restritiva das possibilidades jurídicas, afirmando dever o juiz produzir o direito com base nos princípios da justiça, da sociologia, da filosofia…
– Kantorowickz: “o juiz deve decidir a seu arbítrio; a sentença não deve ser motivada; liberdade em toda a linha; em uma palavra, o direito entra em sua fase voluntarística.”
– Ehrlich: em caso de silêncio da lei, pode o juiz aplicar o direito livremente descoberto consoante sua época.
– Stampe: a descoberta do direito se dá mediante apreciação de interesses.
– Muller Ersbach: o método realista da ponderação dos interesses, é o que fazem a teoria e a prática, embora inconscientemente. (2)
Entretanto, há divergências sobre a amplitude da livre criação do direito uma vez que alguns autores defendem tal possibilidade somente nos casos de silêncio da lei (analogia), outros, no âmbito da interpretação lógica, e há aqueles que defendem a criação do direito em qualquer hipótese.
3.10) Elaboração científica – O direito como ciência
A interpretação e o desenvolvimento da lei, entretanto, são funções jurisdicionais do operador do direito, e constituem a etapa mais baixa e primitiva do conhecimento do direito. Não são, pois, as únicas atividades desempenhadas pelos juristas. Há uma sistematização das normas no sentido de extrair-lhe conceitos e sistematiza-los, mediante simplificação quantitativa – classificação e redução a categorias – e qualitativa – ordenação interior, para se estabelecer uma unidade harmônica.
Daí decorre o caráter científico do direito, e de acordo com o qual se estabelecem métodos jurídicos. Sendo assim, podemos elencar três operações fundamentais da elaboração científica do direito:
– Análise jurídica – A análise jurídica consiste na decomposição da regra de direito nas suas unidades elementares, na separação e eliminação daquilo que é particular e contingente, e na redução dos preceitos a conceitos jurídicos.(FERRARA, Op. Cit., p. 67).
– Concentração lógica – Uma vez distinguidos e separados, os elementos do direito devem reunir-se para serem reagrupados segundo razões intrínsecas de semelhança, de íntima afinidade, e extraindo-se as regras gerais que presidem às soluções particulares.(Idem, p. 69).
– Construção jurídica – A fase mais alta da elaboração teórica do material de direito é a construção dos institutos jurídicos.
Entende-se por construção jurídica o procedimento pelo qual se procura colher as qualidades essenciais características de um instituto, reconduzindo-as a conceitos mais amplos e conhecidos, ou então se apresenta a concepção geral de um instituto, resumindo sob uma idéia unitária de caráter técnico e seu complexo ordenamento positivo.(Idem, p. 70).
A construção jurídica deve satisfazer a algumas condições para ser boa, tais como coincidir exata e inteiramente com o direito positivo – a construção jurídica deve respeitar todo o conteúdo das regras legais –, ter unidade sistemática – não pode haver contradições entre teoria e lei –, ter beleza artística – deve ser extremamente simples a construção jurídica. (3)
4 – Conclusão
“Está nisto a aplicação consciente do direito, ou a técnica da decisão: está em saber atinar com as diversas normas a que, na sua combinação, pertence governar o caso concreto.”
(Francesco Ferrara)
Técnica jurídica é a habilidade de aplicar a lei, pela utilização, a priori, de aplicação instintiva do direito e, a posteriori, da subsunção dos fatos à norma, somada à aplicação dos conhecimentos extrajurídicos que constituem elementos ou pressupostos do raciocínio. “Teoria e prática não estão em antítese, não são inimigas ou estranhas que mutuamente se ignoram ou desprezam…”(Ferrara, 2003).
A teoria, elaborada com base nas regras legais, é construída para ser aplicada, ou seja, para a prática. Então, deve o juiz observar a doutrina e seus resultados, na aplicação do direito, momento no qual deve pô-los à prova.
Temos, pois, que o direito se constrói na sua aplicação, uma vez que na prática é que a teoria irá colher a expressão das necessidades sociais.
Uma e outra [teoria e prática] devem juntar e fundir as suas vistas, as suas críticas, os seus desejos, para cooperarem na atividade legislativa.(FERRARA, Op. Cit., p. 81).
E visto que as normas jurídicas são criadas pelo estado e se desprendem das razões psicológicas e sociais de sua criação, bem como de quem as criou, uma norma apenas pode ser extinta por decisão do estado, o que ocorre somente em dois casos:
1º) quando a norma traz em si um limite à sua eficácia;
2º) ou quando a norma é mudada ou ab-rogada por outra posterior.
Referências Bibliográficas
BETIOLI, Antônio Bento. Introdução ao Direito: lições de propedêutica jurídica. São Paulo: Hermes Editora, 1989.
ERLICH, Eugen. Fundamentos da Sociologia do Direito. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1999.
FERRARA, Francesco. Como Aplicar e Interpretar as Leis. Belo Horizonte: Líder, 2002.
HERKENHOFF, João Baptista. Aplicar o Direito: à luz de uma perspectiva axiológica, fenomenológica e sociológica. 5ed. Rio de Janeiro: Forense, 1989.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 9 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981.
Notas
1 “A missão do intérprete é justamente descobrir o conteúdo real da norma jurídica, determinar em toda a plenitude o seu valor, penetrar o mais possível (como diz Windsccheid) na alma do legislador, reconstruir o pensamento legislativo.”(FERRARA, 2003, p. 24).
2 Além de Mayer com as normas de civilização e Stammler com o direito justo.
3 Elegentia Iuris: configuração artística da matéria, como forma simples, natural, transparente, da realidade jurídica.