Gilson Sidney Amancio de Souza
A Lei 9.605, de 12/02/98, que dispõe sobre crimes ambientais, reavivou a polêmica a respeito da capacidade da pessoa jurídica ser sujeito ativo de infrações penais, ao prever, em seu artigo 3º, a imputação penal desses entes quando a infração for cometida em seu interesse ou benefício e por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado.
A idéia de que o ente moral possa cometer crimes divide a doutrina, sendo mais caudalosa a corrente que a repudia.
Até mesmo a existência de embasamento constitucional da responsabilização da pessoa jurídica, conquanto seja largamente admitida pelos doutrinadores pátrios, encontra respeitáveis opiniões em contrário, como a de Cezar Roberto Bitencourt, para quem a Carta de 1988 “não dotou a pessoa jurídica de responsabilidade penal. Ao contrário, condicionou a sua responsabilidade à aplicação de sanções compatíveis com a sua natureza” 1, e a de Damásio E. Jesus 2, entre outras.
Sem ingressar, contudo, na análise da constitucionalidade formal da norma em questão, temos que, ainda que se parta da premissa de que o art. 225, § 3º, da Constituição Federal autoriza a imputação criminal da pessoa moral, não é possível, sob um prisma realista, alicerçado na certeza de que o conhecimento não cria o objeto, mas apenas o reconhece, eis que ele existe fora e antes desse conhecimento, admitir conduta delituosa de ente jurídico, pela simples e prosaica razão de que o ente jurídico não é capaz de qualquer conduta, criminosa ou não, porque lhe falta o essencial em qualquer ato: vontade e consciência próprias.
As teorias organicistas que, estribadas numa concepção puramente formal-idealista, procuram reconhecer nos entes jurídicos uma vontade própria e distinta da vontade dos seres humanos que a integram ou dirigem, afastam-se da realidade e enveredam pela ficção jurídica; e seus reflexos, no âmbito do Direito Penal, são a negação da intranscendência da pena, erigido, em nosso ordenamento, ao “status” de princípio constitucional, inscrito no cerne imutável da Constituição (art. 5º, inc. XLV), que assegura que “nenhuma pena passará da pessoa do condenado”, e o equivocado reconhecimento da possibilidade de haver crime sem conduta, o que representa verdadeiro retrocesso na evolução histórica do Direito Penal.
A respeito, manifestam-se Eugênio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli no sentido de que “o princípio “nullum crimen sine conducta” é uma garantia jurídica elementar. Se fosse eliminado, o delito poderia ser qualquer coisa, abarcando a possibilidade de penalizar o pensamento, a forma de ser, as características pessoais, etc. Neste momento de nossa cultura isto parece suficientemente óbvio, mas, apesar disto, não faltam tentativas de suprimir ou de obstaculizar este princípio elementar…
“Em nossos dias, , as penas impostas às coisas e aos animais têm um puro valor histórico, mas um dos caminhos pelos quais atualmente se nega ou pretende-se negar o princípio de que não há delito sem conduta é a pretensão de punir as pessoas jurídicas, particularmente as sociedade mercantis, sob o argumento político-penal do auge da delinqüência econômica.” 3
Inconcebível, efetivamente, a idéia de crime sem conduta, e de conduta sem vontade e consciência.
Quer se conceba a ação como simples ato deflagrador do processo causal, sem perquirir de qualquer meta anelada pelo agente (teorias causalistas), quer se a tenha como ato finalístico que, transcendendo a mera vontade, abrange um fim querido, que a moveu, isto é, como o “exercício da atividade finalista”, consoante a formulação de Welzel, de qualquer modo não se pode prescindir, na sua concepção, dos componentes vontade e consciência, coeficientes necessariamente psíquicos constantes e indissociáveis de qualquer conduta.
Inimaginável, no mundo real, conduta sem vontade. “Exige-se, para que haja conduta, um mínimo de participação subjetiva: a vontade, que lança a conduta” 4.
Ora, se muitas críticas receberam as teorias tradicionais por sua concepção naturalística que, artificialmente, separa a vontade de seu conteúdo, justamente por afastar-se da realidade das coisas, com maior razão há de se tecer críticas à pretensão de reconhecer conduta no ato da pessoa jurídica, porquanto tal idéia representa um distanciamento ainda maior da realidade.
Como, dentro de um prisma realístico, imaginar uma vontade de uma sociedade comercial ou de qualquer associação, destacada, independente e estanque de qualquer determinação de seus integrantes pessoas físicas? Como entender a existência de um querer próprio de um ente despido de qualquer componente psíquico, cognitivo ou sensorial?
Além disso, não se pode olvidar que nosso Direito Penal é todo alicerçado no princípio da culpabilidade. Entre nós vigora a parêmia “nullum crimen sine culpa”, de modo que à perplexidade causada pela idéia de conduta sem componente psíquico, soma-se a perplexidade da imposição de pena sem seu pressuposto lógico-jurídico, a culpabilidade.
Assim, admitida ainda fosse a conduta sem voluntariedade e consciência, já que só assim pode ser a “conduta” da pessoa jurídica, como fazer o juízo de censurabilidade dessa “conduta”?
Justamente por falta desse requisito culpabilidade, muitos exegetas recusam reconhecimento de responsabilidade penal do ente jurídico: “as sociedades não podem cometer crimes. O crime exige ação culpável, e às sociedades é impossível a culpabilidade” 5 , o que emerge curial.
Como, por exemplo, solucionar a questão do concurso de pessoas, quando houver partícipes pessoas físicas e entes jurídicos, concorrendo para um mesmo crime? Tal situação não é impossível na fantasia introduzida pela Lei 9.605/98; antes, é expressamente admitida pelo parágrafo único de seu art. 3º, mera transcrição do disposto no artigo 121-2, do Código Penal francês de 1994.
Ora, sendo aplicáveis às normas penais esparsas, à falta de disposição expressa em contrário, as regras e princípios contidos na Parte Geral do Código Penal, não se poderá evitar, para individualização das penas, a aferição da medida da culpabilidade de cada concorrente. Como fazer isso em relação ao ente moral?
Como solucionar eventual alegação de erro de tipo ou erro de proibição pela pessoa jurídica, sem abandonar o exame da “conduta” desta e enveredar pela análise da ação de seu dirigente ou administrador?
E se, depois do fato, antes da sentença condenatória, a pessoa jurídica se desfaz, sem que se tenha apurado responsabilidade pessoal de qualquer de seus sócios ou dirigentes?
As dificuldades operacionais de aplicação da norma de responsabilização criminal das pessoas jurídicas, decorrente da própria natureza fictícia destas, impedem, de forma absoluta, o exercício do “jus puniendi” contra tais entes para impor-lhes sanções penais.
A tentativa de reconhecer imputabilidade criminal na pessoa moral é a confissão da impotência dos mecanismos de investigação e persecução do Estado para individualizar responsabilidades subjetivas quando os crimes são cometidos por meio de entes jurídicos. É procura de subterfúgios legais para remediar essa incapacidade, e que não justifica o abandono dos mecanismos de punição e repressão administrativa de que dispõe o Estado para dar colorido de punição criminal a providências que não tem outra natureza que não a administrativa.
Na verdade, o que a Lei 9.605/98 faz é transportar, do âmbito do Poder de Polícia, exercitável pela Administração Pública sem necessidade de ingerência do Judiciário, penalidades de cunho nitidamente administrativo para o âmbito jurisdicional, passando a exigir a intervenção de órgão de jurisdição penal para a imposição de sanções administrativas. Isso, entretanto, não lhes altera a substância, continuam a ser sanções de cunho administrativo e não criminal. Parafraseando o Romeu de William Shakespeare, por acaso as rosas, se não se chamassem rosas, não teriam o mesmo perfume nem seriam tão belas? Que importa o rótulo que se dê ao instituto, se sua essência continua a mesma?
As mesmas sanções “penais” previstas na Lei em comento, estabelecidas nos arts. 21 a 23, poderiam, com vantagem para o interesse público, estar previstas em dispositivos de natureza administrativa, e aplicáveis com estribo naquela reconhecida “faculdade de que dispõe a Administração Pública para condicionar e restringir o uso e gozo de bens, atividades e direitos individuais, em benefício da coletividade ou do próprio Estado” 6, a que se denomina Poder de Polícia, imponível, esse sim, tanto às pessoas naturais quanto aos entes jurídicos, porque visa condicionar e limitar atividades e direitos, atributos que podem também pertencer à pessoa moral, e pode ser exercido tanto por edição de atos normativos quanto por providências administrativas materiais, preventivas (fiscalização, vistoria, autorização, etc) ou repressivas (interdição de atividade, dissolução de reunião, etc), com o fim de coagir o infrator a cumprir a lei 7.
Não há razão nem necessidade de cobrir com a haura do Direito Penal as providências estatais de repressão aos entes coletivos, quer quando ofendam o meio ambiente, quer por lesão a qualquer outro bem ou interesse relevante da sociedade ou do Estado. Tanto o “jus puniendi” quanto o Poder de Polícia têm o mesmo fundamento: a soberania do Estado. Reportando-se a Nelson Hungria, o festejado José Frederico Marques preleciona que “a ilicitude jurídica é uma só do mesmo modo que um só, na sua essência, é o dever jurídico; donde a conclusão de que um fato ilícito punível não é um fato contrário exclusivamente ao Direito Penal, senão a todo o Direito” 8, o que leva a concluir que não há distinção ontológica entre a ilicitude penal ou extrapenal: o que há é diferença de sanções, de modo que, só sendo compatíveis com a natureza da pessoa moral as sanções administrativas ou civis, só estas é que se lhes podem impor, qualquer que seja o título ou o rótulo que se lhes atribua, qualquer que seja a via, jurisdicional ou administrativa, usada para atingi-las.
As sanções estabelecidas na Lei 9.506/98 para as personalidades jurídicas são, aliás, penalidades recorrentes em leis e atos de cunho administrativo. A multa é típica penalidade administrativa, imposta pela Administração tanto a seus funcionários e servidores, no âmbito interno, por infrações funcionais, com estribo em seu poder disciplinar, quanto, com fulcro no poder de polícia, a terceiros, administrados, desde o contribuinte que se atrasa na entrega da declaração anual de bens e rendimentos até o motorista que estaciona seu veículo em local proibido.
A interdição de estabelecimento ou a suspensão de atividades, igualmente, são encontráveis com freqüência em normas administrativas, por exemplo para punir casas de espetáculo ou dança excessivamente ruidosos, ou restaurantes que não satisfaçam requisitos de higiene exigidos pelo Poder Público.
A proibição de contratar com o Poder Público é imponível, administrativamente, às pessoas jurídicas que estejam em débito com o Fisco, ou que violem o princípio da continuidade do serviço público (art. 87, inc. III, da Lei de Licitações e Contratos Públicos – Lei 8666/93), etc.
Levado, quiçá, pela falsa idéia de que o Direito Penal é a panacéia para todos os males sociais, e na contramão dos ideais da intervenção penal mínima, o legislador, sob o falso rótulo de responsabilização criminal da pessoa jurídica, instituiu a intervenção da jurisdição penal para aplicação, aos entes jurídicos que exerçam atividade lesiva ao meio ambiente, de sanções cuja natureza é nitidamente administrativa, malgrado a Lei dos Crimes Ambientais as tenha travestido com a fantasia de penas criminais.
De forma que, conquanto requestando, agora, a indispensável intervenção do juiz penal para sua aplicação, as penalidades estabelecidas na Lei em estudo para os entes coletivos, “não podem ter outra natureza senão a civil ou a administrativa”, como preleciona Oswaldo Henrique Duek Marques em artigo intitulado “A Responsabilidade da Pessoa Jurídica por Ofensa ao Meio Ambiente”, publicado no Boletim IBCCrim nº 65, abril/98, p. 6, pensamento com o qual comungamos.
Isso, ao reverso do que originariamente pretendeu o desavisado legislador, obstaculiza ou dificulta a repressão de tais atividades danosas, na medida em que, desde a necessária obediência ao princípio da tipicidade estrita, vigente no âmbito do Direito Penal e não incidente no campo do Direito Administrativo, aos princípios da presunção de inocência e da defesa material, efetiva, que orienta o processo penal, passando pelos maiores rigores formais de rito processual, de que são exemplos a impossibilidade de citação por correio ou por hora certa, a impossibilidade de citação por procurador, ainda que com poderes específicos, e a indispensabilidade das alegações finais de defesa, sob argumento de que constituem termo essencial do processo9 , constituem amarras, superáveis ou não existentes no procedimento administrativo, que procrastinam ou mesmo impedem, pela via da prescrição, a efetiva imposição da pena pela Justiça Criminal.
É certo que há precedentes, em ordenamentos jurídicos de outros países, da institucionalização da responsabilidade criminal do ente moral, como em Portugal, Estados Unidos da América, Holanda e, mais recentemente, a França, com seu novo Código Penal, vigente há apenas quatro anos. Essas tentativas alienígenas de abandonar o secular postulado “societas delinquere non potest”, entretanto, não bastam para que nosso legislador se lance, açodada e atabalhoadamente, a descrever tipos e cominar sanções imponíveis aos entes jurídicos, pena de se romper com todo um sistema e lançar-se num vácuo lógico-jurídico de conseqüências imprevisíveis.
Primeiro, não é porque tais experiências são levadas a efeito em outros países, com diversas realidade e cultura, de estrutura social e concepções distintas das nossas, que aqui também terão êxito.
Segundo, porque são sabidas as dificuldades de transição encontradas por esses Estados estrangeiros da concepção do crime como conduta exclusivamente humana para a adoção da responsabilidade da pessoa moral, podendo-se dizer, mesmo, que na verdade estabeleceu-se, em tais países, um sistema de sanções mistas, de cunho penal-administrativo, para as pessoas jurídicas que causem danos a determinados bens jurídicos cuja relevância os situa na órbita de tutela do Direito Penal.
Luiz Regis do Prado nos dá conta das profundas alterações que se viu a França obrigada a promover em seu sistema legal, para admitir a responsabilização penal do ente jurídico10 .
Impende, por fim, consignar que até vizinhos europeus dos franceses relutam em aceitar a concepção irreal de que a pessoa moral possa ter capacidade de cometer, por si e independente de seus sócios ou gerentes, condutas criminosas: A Espanha, cujo Código Penal é de 23/11/95, um ano e meio mais jovem que o francês, e apresenta nítidos aspectos de atualidade, prevendo desde crimes relacionados à manipulação genética (arts. 159 a 162) a crimes pertinentes a radiação ionizante (arts. 341 e seguintes), passando pela contemplação de crimes ambientais (arts. 325 a 331), permanece fiel ao princípio de que o crime é conduta exclusivamente humana, responsabilizando os crimes cometidos por meio de “una persona jurídica” a “los administradores, de hecho o de derecho” da mesma (art. 31 do Código Penal espanhol).
De bom alvitre que, prudentemente, sigamos o exemplo ibérico.
Gilson Sidney Amancio de Souza
Promotor de Justiça em Pres. Prudente
Professor de Direito Penal, Direito Ad-
ministrativo e Direito Processual Penal
na Faculdade de Direito de P. Prudente-
Instituição Toledo de Ensino e na UNO-
ESTE – Universidade do Oeste Paulista.