Autor: *Antônio Hortêncio Rocha Neto
A Lei Nº 8.072/90, que trata dos crimes hediondos, vem causando grande polêmica acerca de sua real aplicação, não só pela divergência entre autores, bem como pelo número de jurisprudências contrárias.
A grande dúvida está em se saber se a Lei de Crimes Hediondos deve ser aplicada também aos casos ocorridos antes de sua vigência, ou mais precisamente, aos processos em andamento.
Todavia, antes se faz necessário distinguir lei penal de caráter material da lei penal de caráter processual. Esta tem aplicação imediata, e todos os atos praticados na vigência da lei anterior são válidos. Àquela, aplica-se o princípio da irretroatividade, ou seja, as leis penais são editadas para o futuro, não podendo ter efeito para o passado, a menos que seja para favorecer o réu.
Há três correntes sobre a Lei de Crimes Hediondos. Uma que a vê como lei material, outra, como lei processual, e ainda uma terceira que diz ser ela de caráter misto, contendo preceitos materiais e processuais. Esta última é a mais aplaudida.
Vale ressaltar que há jurisprudências em todos os sentidos, não sendo a matéria pacífica a respeito do caráter dessa lei. Admitindo-se ser ela de caráter material, aplica-se somente aos crimes praticados após a sua vigência. Por outro lado, se for de caráter unicamente processual, aplica-se aos crimes praticados antes e após sua vigência. E ainda, se for considerada de caráter misto, os preceitos materiais nela contidos terão aplicação unicamente aos crimes, tidos como hediondos, praticados posteriormente à sua vigência, e os de caráter processual aplicar-se-ão aos crimes ocorridos tanto antes como depois da entrada em vigor dessa lei.
Como já foi dito, a corrente mais aceita é a que considera a Lei de Crimes Hediondos como sendo de caráter misto. Essa também é a minha opinião.
Há entendimentos no sentido de que, mesmo considerando a Lei 8.072/90 como sendo de caráter processual ou ainda misto, não deve ser aplicada aos processos anteriores a ela, pois, por conter preceitos sancionadores mais severos, iria prejudicar o réu, e uma lei penal só pode retroagir para beneficiar.
Esse é o entendimento da Egrégia Câmara Criminal do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba, que, em relação ao fato de o réu não poder recorrer em liberdade após sentença condenatória, fez valer a seguinte súmula:
SÚMULA Nº 07 – É direito subjetivo do réu condenado, que respondeu solto ao processo e teve a primariedade e os bons antecedentes reconhecidos na sentença, apelar em liberdade, a menos que exista motivo que determine a sua prisão, ressalvado o disposto no § 2º do art. 2º da Lei 8.072/90.
Todavia, há opiniões em contrário, afirmando que a aplicação da Lei de Crimes Hediondos, no que concerne à sua parte processual, faz-se não só nos casos futuros, mas também nos presentes e passados.
Nesse sentido, temos jurisprudência do STJ:
“A Lei nº 8.072/90 tem em seu bojo matéria substantiva e adjetiva; logo, esta tem aplicação a todos os casos – passados, presentes e futuros, e aquela somente aos novos casos, por ser mais gravosa que a precedente” (JSTJ 50/292-3).
Na doutrina, temos a lição do ilustre mestre Damásio E. de Jesus, que em comentários sobre o assunto nos esclarece:
“Irretroatividade: as normas de direito material da Lei 8.072/90 (arts. 1º e 2º, I e § 1º, tratando respectivamente, da qualificação legal do crime, da proibição de graça, indulto e anistia e do cumprimento da pena em regime fechado, e o art. 5º, cuidando do livramento condicional), são irretroativas (CF, art. 5º, XL), não se aplicando aos homicídios dolosos qualificados anteriores a 7.9.94, data em que entrou em vigor a Lei 8.930. Nesse sentido a orientação do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça citada anteriormente e cuidando dos delitos em geral. Dessa forma, por exemplo, a exigência de cumprimento total da pena em regime fechado não se aplica, se condenado, ao autor do homicídio doloso qualificado da atriz Daniela Peres. Retroatividade: as disposições de caráter processual penal da Lei 8.072/90, concernentes à liberdade provisória com ou sem fiança, apelação em liberdade e prisão temporária (art. 2º, II e § 2º e art. 3º), são de aplicação imediata, incidindo sobre os procedimentos em curso por delitos de homicídio doloso qualificado” (NOTAS E COMENTÁRIOS – RT 709/434).
Ao meu ver, o erro daqueles que defendem a não aplicação da parte processual da Lei de Crimes Hediondos aos processos em andamento, na data em que esta entrou em vigor, está no fato de confundirem o princípio da irretroatividade com o princípio da aplicação imediata da lei. A lei processual penal não é retroativa, pois, se assim o fosse, anularia todos os atos processuais anteriormente praticados. A sua aplicação é imediata, tendo pleno efeito os atos já praticados. Nesse sentido, ensina-nos Mirabete que “A lei processual penal não é retroativa pois não está regulando o fato criminoso anterior a ela, regido pelos princípios de aplicação da lei penal, mas atos processuais a partir do momento em que ela passa a viger. Poderia retroagir, anulando atos processuais anteriores se expressamente a lei formulasse a exceção e desde que não atingisse direito adquirido, ato jurídico perfeito ou coisa julgada. Embora seja possível que uma nova lei processual possa acarretar maiores gravames para o autor do delito, se, por exemplo , restringe o direito à liberdade, exclui algum recurso etc., aplica-se o disposto no artigo 2º do CPP” (Código de Processo Penal Interpretado, pag. 31).
Edgard de Oliveira Santos Cardoso ao tratar do assunto, em matéria publicada na RT 711/288, na parte referente à doutrina, assevera:
“No tocante à nova lei, no que concerne à liberdade provisória com ou sem fiança, apelação em liberdade e prisão temporária, não há falar em retroatividade. Todavia, deverão os doutos Magistrados aplicar as regras da nova lei, mesmo aos processos em andamento, desde que ainda não requeridos pelo réu. Por exemplo: um processo em andamento, onde apura-se a responsabilidade pela ação de grupo de extermínio, não terá o réu direito à liberdade provisória, se não a requereu antes da vigência da nova lei. Isso porque a nova lei tem força para o futuro e aplicação imediata”.
Da mesma forma, se o réu já havia requerido antes da lei entrar em vigor, não se deve aplicá-la, pois estaria retroagindo e anulando atos praticados anteriormente à sua vigência.
Condenado o réu por prática de crime hediondo, seja este praticado antes ou depois da vigência da lei, e vindo respondendo em liberdade, deve ele ser recolhido, para aguardar o trânsito em julgado preso. Além do mais, a Lei de Crimes Hediondos determina que “em caso de sentença condenatória, o Juiz deverá decidir fundamentadamente se o réu poderá apelar em liberdade”, invertendo, assim, a regra geral.
Com relação ao disposto no art. 2º, II, da Lei de Crimes Hediondos, precisamente no que tange a liberdade provisória, vêem alguns autores a volta da prisão preventiva compulsória. Este é outro ponto bastante guerreado, com predominância, até o momento, do entendimento de que também é necessário o preenchimento de algum dos pressupostos da prisão preventiva para que esta seja decretada, e não o simples fato do crime ser hediondo.
Com fundamento em todos esses argumentos, entendo que os preceitos de caráter processual da Lei 8.072/90 devem ser aplicados também aos processos em andamento na data da sua vigência. Esses preceitos, vale lembrar, são aqueles que tratam da liberdade provisória com ou sem fiança, apelação em liberdade e prisão temporária.
Todavia, ressalte-se que a presente matéria não é pacífica, tanto na doutrina como na jurisprudência.
* O autor é Acadêmico do 4o ano de Direito da Universidade Federal da Paraiba e Estagiário Concursado do TJ/PB