A Criminalização de Ilícitos Praticados por Particular contra a Administração Pública – O descaminho

Autor: *Ivan Lira de Carvalho

1- Na contramão da história jurídico-penal universal, vem o Brasil assistindo a uma crescente criminalização dos eventos protagonizados por particulares contra a administraç&at ilde;o pública, numa clara demonstração da impot&ec irc;ncia do Estado em resolver, por meios civilizados e eficazes, os desvios d os quais é vítima.
2- Exemplo cabal da falência dos &oacut e;rgãos estatais, para reprimir extrapenalmente os ilícitos perpet rados contra a administração ou contra interesses p&uacu te;blicos expostos à tutela imediata desta, é a exasperaç&a tilde;o irracional das penalidades atribuídas aos praticantes dos chamado s “crimes ecológicos”, para os quais não é admitido nem seq uer a fiança (Lei 5.197, art.34).

3- A esse tipo de reaçã ;o do Estado impotente, os doutrinadores chamam de “Direito Penal do Terror”, de nominação inaugurada por RENE ARIEL DOTTI e divulgada por JOAO GU ALBERTO GARCEZ RAMOS , atestando surrada predominância ideológica d e um aparelho legiferante míope, que, em vez de procurar soluç&oti lde;es práticas e eficientes para os desafios apresentados crescentemente pelas relações sociais, opta por trespassar ao Judiciário o mister de carrasco ignóbil das mais absurdas penas.

4- Não &ea cute; moderno esse entendimento do Estado, de achar que a panacéia para q ualquer irregularidade comportamental advinda do particular somente pode ser cor rigida com a aplicação de penalidades deambulatórias. Ali&a acute;s, é de ser lembrada a infelicidade de um Chefe de Estado da Velha República que bradava ser a problemática social dos anos vinte “um caso de polícia”.

5- Um dos cacoetes da má-gestão dos pr oblemas administrativos, e nestes incluo os de ordem tributária, est&aacu te; na penalização da falta de pagamento do imposto correspondente ao ingresso de mercadoria estrangeira no Brasil. Fala-se mais especificamente d o delito de descaminho, previsto no art. 334 do Código Penal.

6- Ali&aa cute;s, é óbvio que não se prega aqui o absenteísmo do Estado, mesmo pelo seu braço judiciário, nas relaç&otild e;es entre o particular e o fisco. Não se pode desconhecer que entre o pu ro liberalismo dos meios de produção e consumo pregados por ADAM S MITH no Século Dezoito e o Estado Social idealizado por KARL MARX, tem pr eponderância, hoje em dia, o que LEON DIGUIT chamou de “Estado Bem-Estar”.

7- Se a Fazenda Nacional contasse com uma bem montada estrutura de fiscalização e de arrecadação, decerto carrearia ao Tesouro toda a carga tributária que tivesse por fato gerador o ingresso de bens de origem estrangeira, sem precisar criminalizar a conduta dos tergiversantes em pagar a exação. A previsão legal de um rol crescente de punições administrativas decerto bastaria a inibir os importadores mais afoitos e gananciosos.

8- HELENO CLAUDIO FRAGOSO , tratando de tema similar ao presente, já que despido de violência ou perigosidade, assevera ser tendência universal a descriminalização da emissão fraudulenta de cheques sem fundos, como ocorreu na França através do Dec. 75.903/75, com a substituição das penas criminais por sanções de cunho civil e administrativo, tais como multas e suspensão de operações bancárias. Aí está um belo exemplo de solução extrapenal para problemas sem o timbre da violência.

9- A observação do saudoso criminalista pátrio não passou indene à argúcia de EDILSON PEREIRA NOBRE JUNIOR, que, no ensaio “Cinco temas controvertidos do Direito Penal” , merecedor da atenção de DAMASIO E. DE JESUS , no subtítulo “Arrependimento posterior: alcance e Súmula nº 554 do Pretório Excelso”, rememora que a mens legis da reforma da parte geral do Código Penal, empreendida pela Lei 7.209/84, contemplou com a redução da pena (de um a dois terços) o agente que reparar o dano ou restituir a coisa antes do recebimento da denúncia ou da queixa, desde que o crime tenha sido cometido sem violência ou grave ameaça à pessoa.

10- Quando julguei a ação penal nº 94.7535-9, da 5ª Vara Federal d o RN , deixei consignada a minha rebeldia, sã, acerca da hipertrofia repr essiva voltada contra os praticantes de conduta ilícita que tem a adminis tração pública no pólo passivo. Ali afirmei: “N&atil de;o pode ficar sem registro, o fato de que o caso em estudo é mais um da queles decorrentes do descontrolado ânimo que infelicita o Estado brasilei ro de uns anos para cá, tendente a transformar em crime todas as condutas de incorreção administrativa praticadas por particulares, notadam ente na área de arrecadação de receitas. Assim, ainda que a contragosto, tenho que aceitar mais esta incursão pelo que RENE ARIEL DO TTI nomina de “Direito Penal do Terror” , onde o Poder Executivo demonstra a sua impotência em resolver administrativamente ou civilmente as resistê ncias do contribuinte ou do substituto tributário, buscando na criminaliz ação a saída para arrecadar a receita que a sua próp ria estrutura funcional não sabe (ou não quer) buscar. As desvan tagens desse desvio estatal são escandidas por HUGO DE BR ITO MACHADO, para quem a transformação, em delito, do inadimplemento de obrigações tributárias, “pode ter a vantagem de diminuir as inadimplências, pela intimida&c cedil;ão dos obrigados. Tal vantagem, todavia, é efêmera , e termina por ser superada pelos inconvenientes dessa criminalizaç&atil de;o. (…) Realmente, a intimidação pode produzir, de iníc io, significativo efeito positivo. Depois, aos poucos os infratores se vã o acostumando à idéia de serem réus, e conhecendo as armas que pod em utilizar nas disputas com o Estado repressor, de sorte que aquele efeito inti midativo vai ficando amortecido. (…) Por outro lado, a criminalizaç&ati lde;o do inadimplemento de obrigações tributárias tem grave s inconvenientes, entre os quais podem ser apontados o direito ao silêncio , universalmente reconhecido ao criminoso; a presunção de inoc&eci rc;ncia, também reconhecida universalmente; a competência privativa do Poder Judiciário para aplicar sanções penais, e as form alidades processuais destinadas a garantir a liberdade e o direito de defesa dos acusados.” . Em resumo de tudo que acima foi comentado, segue a sintétic a afirmação de ROMEU FALCONI: “Nunca é demais repisar: a au sência de culpabilidade arrasta consigo também o desaparecimento da ilicitude da conduta.”

11- No Brasil, a lucidez já lançou gene rosos lampejos na mente dos responsáveis pela seara ora em discussã ;o. Assim é que o Decreto-lei nº 157, de 10.2.67, permitiu a extinç ;ão da punibilidade em decorrência do pagamento dos tributos, quand o o agente tivesse iludido o pagamento da exação, desde que a prov idência quitatória tivesse sido agilizada antes da deflagraç ão da ação penal, ou seja, antes do recebimento da den&uacu te;ncia. O sobremencionado Decreto-lei deu margem à edição da S&ua cute;mula 560, do Supremo Tribunal Federal: “A extinção da punibil idade, pelo pagamento do tributo devido, estende-se ao crime de contrabando ou d escaminho, por força do art. 18, § 2º, do Decreto-lei n. 157/67.”

12- E ntretanto, providenciou-se urgentemente o retorno da matéria à treva ante rior. Veio o Decreto-lei 1.550, de 19.12.78, objetivando pôr termo final à dita Súmula, afirmando, em seu art. 1º, que o disposto no art. 18, par&a acute;grafo único, do DL nº 157/67 “não se aplica aos crimes de co ntrabando ou descaminho, em suas modalidades próprias ou equiparadas, nos termos dos §§ 1º e 2º do art. 334 do Código Penal”. A inconstitucional idade do DL 1.550 foi declarada pelo TFR (DJU 18.6.80), cedendo es paço para a Lei 6.910, de 27.5.81, estabelecedora de restriç&otild e;es ao fim da punibilidade, pelo pagamento do tributo, nos casos de descaminho e contrabando.

13- Nova experiência foi feita pela Receita Federal, para receber os tributos de importação de carros estrangeiros que houv essem ingressado irregularmente no País. O DL 2.446/88 e o DL 2.457/88 ti veram morte anunciada já quando editados. O uso da inteligência na arrecadação dos referidos impostos vigorou até 30.6.88.

1 4- Sem embargo dos reclamos acima alinhados, temos, em realidade, o descaminho c omo tipo penal claro, encartado entre os “crimes contra a administraç&ati lde;o pública” antevistos na Parte Especial do Código Penal. O que fazer o magistrado diante de um caso concreto? Por certo nada que desabone os p rincípios básicos da deontologia, que são os sustentá ;culos destacados da missão do juiz no contexto social que o alberga. Mas deve ter a altivez de ampliar o seu espaço de influência na estrut ura do Estado, levando como estandarte da sua cruzada a lição de J OSE AUGUSTO DELGADO: “O Juiz que brota do sistema atual responsável pela sua formação, se não procurar cultuar valores de diferentes categorias que contribuam para a modernização do seu atuar, corre o risco de ser um simples fazedor de sentença sem mensagem útil p ara o homem, sem seguir um critério para atingir o fim a que ela se desti na, que é a paz, enfim, um simples mostrador de como não fazer ci& ecirc;ncia e de não se ter ideal.”

15- A face de controlador social qu e avulta do mister do juiz impeliu a jurisprudência a oferecer uma interpr etação – digamos – evitadora da remessa dos acusados de descaminho ao cárcere. Assim, tiveram os julgadores bastante parcimônia na ti pificação dos pretendidos crimes. Destarte, ainda que ocupando esp aço pretoriano controvertido, não foram poucas as decisões no sentido de que inexiste dolo, se pessoa iletrada passa a vender mercadoria es trangeira em plena feira (TFR, DJU 14.12.85, p. 1208), configurando, pois, erro de proibição. Ou que o transporte de mercadoria descaminhada n&ati lde;o é crime assemelhado, sendo atípica a conduta (TRF 4ª Regi&at ilde;o, DJU 20.12.89, p. 17039). Ou ainda que a pequena quantidade de mercadoria exclui a configuração do descaminho (TFR, DJU 23.2.84, p. 2.108) e que a falta de destinação comercial da mercadoria atesta a falta de culpabilidade do agente (TFR, DJU 17.2.83, p. 1.138).

16- Ainda na linha d a moderação pretoriana, tem-se que, uma vez demonstrado, “pela qua ntidade e natureza das mercadorias apreendidas, destinarem-se as mesmas ao uso p róprio do apelado e de seus familiares, e dando-se tal apreensão e m ônibus de turismo, já liberado pela fiscalização ad uaneira de fronteira, não há de falar, no caso, em descaminho” (TR F/5ªR, ACrim 521/92-RN, j. em 01.9.92, Rel. Juiz Petrucio Ferreira). També ;m patente a descaracterização do descaminho em se tratando de “ga rrafas de uísque adquiridas em loja de aeroporto internacional e distribu ídas entre alguns clientes da empresa dirigida pelo acusado” (TRF/5ªR, Ac rim 0039/89, j. em 16.09.89, Rel. Juiz Lázaro Guimarães). Na mesma linha, outro aresto do TRF/5ªR: “PENAL. DESCAMINHO. MERCADORIA ADQUIRIDA EM PUE RTO STROESSENER. ULTRAPASSAGEM DA QUOTA EM QUANTIDADE MINIMA. ABSOLVICAO. 1- O d elito de descaminho só se caracteriza quando fica suficientemente demonst rado que o agente atuou dolosamente para iludir o fisco não pagando o imp osto devido. 2- O dolo, embora elemento anímico, invisível, n&atil de;o apreensível pelos sentidos, só pode ser inferido após análise das circunstâncias que envolvem o fato. 3- Há de ser relevada a culpabilidade criminal, em configuração de descaminho, quando é de pequeno valor e mínima a quantidade de mercadoria que ultrapassou a quota legal para comprar em Puerto Stroessner. 4- Absolviç ;ão que se mantém.”(ACrim nº 253/89-SE, j. em 14.3.90, Rel. Juiz J osé Delgado).

17- Na doutrina, o assunto foi enfrentado por WALTER NUNE S DA SILVA JUNIOR, em ensaio intitulado “A descaracterização do cr ime de descaminho embasado apenas na inexistência da comprovaç&atil de;o do recolhimento do imposto de importação”(RT, vol. 706, p&aac ute;gs. 438 a 441), atestando que a preocupação com a voragem do E stado sobre a liberdade deambulatória do homem atinge outros segmentos do s operadores jurídicos, e não somente a magistratura. Após acurada análise, conclui o estudioso: “O só fato de inexistir docu mento dando conta de que o imposto de importação foi recolhido, o condão não possui de ter-se por tipificada a conduta ilícit a desenhada pelo legislador no caput, ou na alínea “c”, do § 1º., do art. 334, do Estatuto Criminal.” E diz mais: “O agente que traz em sua bagagem, colo cada no lugar próprio do ônibus, sem desviar-se de barreira alfande gária, produto importado, facilmente encontrável mediante singela fiscalização, ainda que não efetue o recolhimento do imposto de importação, não pratica, para fins penais, a ação de iludir o Fisco, nem muito menos a de introduzir clandestinamente no País, ou importar fraudulentamente, mercadoria de procedência estrangeira, daí por que a conduta é atípica, não merecendo, assim, sanção de ordem penal, mas, apenas, de âmbito fiscal.”

18- E para que não se diga que são vãs as críticas aqui tecidas, arrisco uma sugestão: que tal o Estado-Fiscal instituir uma espécie de “banco de informações” acerca das pessoas flagradas em conduta de desvio do pagamento das exações geradas pela importação? Assim, existiria o controle dos habitués nessa prática, que seriam, por conseqüência, impedidos de celebrar contratos com pessoas jurídicas de direito público ou entidades paraestatais (lato sensu).

19- Outra punição administrativa, que tocaria fortemente em um aspecto essencial da vida moderna, seria a vedação do recalcitrante de operar em bancos (oficiais ou particulares), até mesmo para a abertura de uma singela conta-corrente. Nos dias de hoje, não ter um talão de cheques é um capitis diminutio que pune mais severamente o infrator, do que mesmo a aplicação de uma curta pena deambulatória.

20- Por fim, aos que entendem que a credibilidade da Administração Pública seria mais facilmente vulnerada com o sancionamento apenas extrapenal do “descaminho”, rememoro que outras irregularidades, bem mais sérias, são praticadas no gerenciamento da coisa pública, sem que desafiem, obrigatoriamente, sanção penal. E nem por isso se fala em desmoronamento do Estado…

*Ivan Lira de Carvalho é Juiz Federal no Rio Grande do Norte e Professor do Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

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