Autor: *Aramis Nassif
…liberdade, liberdade abre as asas sobre nós e que a voz da igualdade seja sempre a nossa voz… (Jurandir,João César)
A liberdade, tal como procurada conceituar por filósofos e juristas, aqueles há mais tempo preocupados com o tema, foi adotada como direito fundamental da pessoa na Declaração Universal de Direitos Humanos da ONU (Art. 3º).
A norma internacional abriga definição aceita consensualmente pelos estudiosos, entre eles John Locke que afirmava este status como um poder humano, afeito ao jusnaturalismo em tal porte que assomou as feições de condição da existência do homem e sua obediência ao contrato social, sem desconsiderar as relações intersubjetivas, levando-o a afirmar que tais direitos são imperativos da razão e, em tais bases, criando o Estado, então ente agregador e com poder de manter a lei natural.
Os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas”. (Bobbio).
Apesar de tão somente neste século ter sido erigida em direito fundamental, e o foi pelo agrupamento de nações livres e conseqüente a duas guerras mundiais, quando foi tão desconsiderada, não deixou de compor o pensamento lúcido ao longo da história da humanidade, eis que as informações que nos chegam dos tempos, e pelos meios comuns, dão conta que sua perda ou restrição correspondia, como até hoje ocorre, a uma sanção pelo quebramento da ordem ou da harmonia social.
A liberdade provisória, tal como é denominada na legislação processual positiva, inclusive na Carta Constitucional, tem similar história na Grécia e Roma antigas; conforme depreende-se das anotações de Demócrito (grego) e Tito Lívio (romano) não sofreu maior alteração teleológica ao longo do percurso histórico de sua aplicação, nem nas observações dos juristas, nem do pensamento filosófico. Interessa ao presente estudo a posição da doutrina nacional na tentativa de conceituar o instituto. Os doutos tomam-na ora como “imposição penal prévia” , ora como mera “medida de cessação da prisão legal”, ora como “simples situação” do acusado ante o processo, admitindo nos exemplos destacados, que se confundem com a lição de tantos outros tratadistas, a existência apriorística de responsabilidade criminal pela prática de ato tipificado na legislação penal.
Nas decisões judiciais não se constata maior diferença daqueles conceitos, sendo comum o tratamento de benefício ou privilégio concedidos magnânima e generosamente ao até então custodiado.
Chama especial atenção quando o ato que autorizou a prisão é cometido com violência contra a pessoa. Ao senso comum e conservador repugna a liberdade de seu autor, independentemente de avaliação probatória das circunstâncias criminógenas e das que cercaram, mais imediatamente, o fato dito, desde, delituoso.
Esta reação primária do corpo social repercute na vontade do legislador, impregnando o texto pertinente, a que se submete o julgador na sua aplicação concreta. Não é raro, pois, na medida em que a sociedade apreende a idéia dos riscos de grave e irremediável injustiça para com um dos membros comunitários envolvido, muitas vezes sem exercer ato volitivo próprio, em atos de tal gravidade e que serão objeto de apreciação judicial, com respeito ao princípio do contraditório, inexistente na prisão em flagrante ou preventiva e, consequentemente, na concessão da liberdade provisória, evolua no sentido de mitigar os efeitos legais, criando novo texto legislativo, provocando, algumas vezes, antinomia entre o antigo e o mais recente dispositivo.
Ao tratar da liberdade como proteção dos direitos fundamentais, Norberto Bobbio, em lição associada a Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino, defendeu “… que o liberalismo clássico, de Locke a Spencer, bem como seus seguidores, sustentava que o Estado tem o direito temo direito de limitar a liberdade de alguém unicamente quando for necessário proteger os direitos fundamentais de outro (muitas vezes considerados como sendo os próprios direitos naturais). Consequentemente, ‘nenhuma sociedade onde estas Liberdades não são, no seu conjunto, respeitadas pode ser considerada livre’. (J. S. Mill). Ao contrário, uma sociedade pode ser considerada livre somente na medida em que se fundamenta nos princípios do ‘laissez faire’. Uma pessoa, pois, que possua estes direitos legalmente determinados e esteja sujeita aos deveres a eles correpondentes é livre, embora possa ser não-livre sob outros aspectos e em relação a agentes que não sejam do Governo, por exemplo, por causa da exploração econômica ou da pressão social. Por este motivo a Corte Suprema dos Estados Unidos achou certas leis, que fixaram mínimos salariais e máximos de horas de trabalho, como violadoras do princípio constitucional da Liberdade, visto tais regras não serem necessárias para a proteção dos direitos fundamentais, e sim constituírem limitações ‘arbitrárias’ da ‘Liberdade Contratual’ entre empresários e assalariados”.
Encaminhamento neste sentido é determinado pela descoberta, lenta e árdua, de que a liberdade provisória não deixa de ser liberdade e, portanto, direito fundamental do indivíduo. Inspira o legislador moderno a necessidade de afastar o caráter de provisoriedade do instituto e, assim, arredar a verdadeira espada de Dâmocles pendente sobre a cabeça do liberto, enquanto não prolatada a sentença penal condenatória definitiva, respeitando, assim, o princípio de que “todo homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que sua cumplicidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa” (ONU, Carta, Art. XI, 1).
O Constituinte de 1988 tratou com cuidado do tema. Assim que, no artigo 4º, fez registrar que o Brasil “rege-se nas suas relações internacionais” entre outros, pelo princípio da prevalência dos direitos humanos (inciso II).
Fiel a tal orientação asserta que ninguém será considerado culpado até trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. (Art. 5º, LXVII).
Mais, ao incluir referência à liberdade provisória no texto constitucional, o fez integrando o Título II, onde estão elencados os direitos e garantias fundamentais, assegurando que ninguém será levado à prisão ou nela mantido quando a lei admiti-la (Art. 5º, LXVI).
Obediente ao princípio da reserva legal (Art. 5º, XXXIX), a Carta afastou, como já era observado na legislação ordinária, a possibilidade de apenamento sem prévia cominação legal, isto é, dependendo de trânsito em julgado da sentença condenatória e anterior previsão de sanctio legis, é fácil concluir: não há pena provisória!
Contrario sensu seria ofensivo ao mais elementar direito do homem e verdadeira involução da ciência jurídica.
A conclusão é inafastável: Não havendo apenamento provisório, a liberdade com este caráter restritivo, assim institucionalizada no direito positivo brasileiro, está derrogada, não existe!
Nem mesmo sua referência expressa no texto da Lei Maior (Art. 5º, LXVI), pode contrariar esta ilação: percebe-se nitidamente a confusão do legislador, sem falar na sua timidez, no enfrentamento da questão, ao incluir a “liberdade provisória” no elenco dos direitos e garantias fundamentais. Em assim sendo, ela, a liberdade, é irrestrita, eis seu caráter de direito natural, portanto supraconstitucional. Não se perca de vista a Declaração Universal dos Direitos do Homem perante a Organização das Nações Unidas (ONU), com a vinculação do Brasil ao seu texto (co-signatário e com aplicação nacional do preceito, ex vi Art. 4º, II, da Constituição Federal).
O positivista notará o aparente impasse. Todavia, superar-se-á ao mesmo aplicando os princípios da epiquéia, consagrada no pensamento aristotélico, inafastada no pensamento moderno que, ao contrário, cada vez mais a tem como seu norte, na busca da melhor aplicação do direito ante o terrível emaranhado legal, especialmente o brasileiro, dado que a justiça superior, especialmente a que realiza o homem como titular de direito natural, sobrepõe-se ao preceito jurídico positivado legalmente. É a qualidade da eqüidade, tão superior que afirma a licitude do homem decidir contra norma jurídica obrigatória (contra legem), por causa de seu rigor exagerado e/ou injusto, como justificou Johannes Schuster (6).
Não fora tal aspecto, ainda assim haveria evidente antinomia entre o Art. 5º LXVI, da Constituição com os demais dispositivos, também constitucionais, referidos acima (Art. 5º, LVII e XXXIX; Art. 4º, II).
A interpretação da norma merece ser feita com o expurgo da restrição substanciada na palavra “provisória”, para que se possa aceitar a integralidade do objetivado nas demais, assegurando, assim, conclusão favorável ao indivíduo, depurada da violação do direito fundamental contido na própria norma defeituosa e contraditória. O direito é mantido, todavia, pela sua própria natureza, sendo possível afirmar que dispensa declaração na Carta Magna.
O direito à liberdade é tratado como inviolável pela Constituição (Art. 5º, caput), não se desprendendo da orientação internacional quanto aos direitos do homem, o que, por si só, afeta a faculdade concedida ao juiz em outorgar o livramento provisório, para torná-la investida de caráter, não mais facultativo, mas obrigatório e compulsório. Este status da norma dispensa a própria existência do artigo 310, do Código de Processo Penal.
Tratando do tema, teve o legislador tamanho cuidado, mesmo presente o equívoco de tratar de “provisório” um direito fundamental, que criou base para uma nova infração penal, lamentavelmente não consagrada, sua tipificação, na legislação complementar, tornando preceito constitucional que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais” (Art. 5º, XLI).
As obrigações do réu perante o processo não alteram a natureza de seu direito basilar. Impõe-se ao mesmo observar as regras de comparecimento ao processo, com exceção do compromisso legal da veracidade de suas declarações, podendo, inclusive, permanecer em silêncio (Art. 186, CPP). Pode ser declarado revel, com os ônus gravíssimos daí decorrentes, certo que a ele a verdade real, em tese, beneficiará, mormente de suas declarações forem cotejadas com o demais da prova. Todavia, diferentemente do processo cível, não haverá presunção de verdade dos fatos alegados na inicial (processo penal: denúncia).
Portanto, sua presença ao processo não pode ser tomada como restrição à sua liberdade. O risco de perdê-la, todavia, é maior se não compadecer. E sua participação deve ser tomada como dever na sua condição de ente social, mais exigível de cumprimento na medida em que é o maior interessado no julgamento. Trata-se do meio mais idôneo que dispõe para o exercício de sua defesa.
Não optando pela revelia, atende a dúplice interesse: social na busca da verdade real e individual da defesa.
Expostos os argumentos tendentes a justificar a impossibilidade jurídica da provisoriedade da liberdade, é inevitável tratar das hipóteses de prisão antes de prolatada sentença penal condenatória, para que se evite a ilação de que, não havendo restrição ao direito fundamental da liberdade, não se poderia perpetrar a custódia preventiva, de flagrante, de pronúncia ou temporária.
Torna-se inafastável criticar o artigo 312, do Código de Processo Penal, permissivo de prisão preventiva para garantia da ordem pública, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal quando houver prova da existência de crime e indício suficiente de sua autoria.
Ora, ao usar o termo crime e não, verbi gratia, fato típico, o seu autor é conseqüentemente tratado como criminoso. Trata-se de denominação inadequada e incompatível com os princípios referidos ao longo deste texto, eis que aprioristicamente o acusado é tratado como culpado.
O recolhimento do imputado por “conveniência da instrução criminal” é medida absurda e violenta. Não é considerada nesta hipótese a presumida inocência do cidadão.
Mais grave, todavia, é declarar a custódia para assegurar a “aplicação da lei penal”. Ora, a lei processual não depende da prisão do réu para sua realização e a de caráter substancial dependerá de sentença. Assim, a prisão com tal autorização leva a concluir que cumprirá pena até provar inocência. A inversão jurídica e moral é repugnante.
Mas o regular desenvolvimento do processo, e tal se repete no plano cível, é de ordem pública, que não deve ser confundido com interesse público. Este já mostrou-se muitas vezes ser fonte de injustiças perpretadas contra o indivíduo, mormente quando a mídia assume posição não raro sensacionalista e emotiva.
Quando a sentença condenatória é prolatada esgotaram-se todas as possibilidades de afastar o caráter criminoso do fato julgando. O juiz assumiu a convicção inabalável da culpabilidade do acusado e realizou, à luz do contexto probatório instituído com o devido processo legal, observados os princípios da ampla defesa e contraditório, a vontade presumidamente justa do Estado no caso concreto. A condenação, agora sim, atende ao interesse social de alcançar a verdade real, passando a confundir-se com a garantia da ordem pública restabelecida.
Fica fácil concluir, pois, que a prisão preventiva ou manutenção da em flagrante, deve pressupor, inarredavelmente, também convicção inabalável do juiz quanto a fatos certos e determinados pela ação do acusado, de que a ordem pública está abalada, expurgados o preconceito, a discriminação e o arbítrio. Assim é, exemplificativamente, a violência contra testemunhas, seja ela física, moral ou financeira. Portanto, trata-se de garantir a “ordem pública”, manifestada na regularidade do processo que deve ser, excepcionalmente, decretada a prisão provisória.
Não pode mais vingar o sucinto exame das condições formais do auto de prisão em flagrante e a remessa ad futuram das condições legais para concessão da liberdade provisória, como se isto fosse um favor ao cidadão e não direito fundamental seu. Sua imediata libertação só não ocorrerá para garantia da ordem pública, conforme acima exposto.
Deontologicamente, inobscurece do juiz reconhecer o direito à liberdade do indivíduo nas circunstâncias em que não for autorizada sua restrição, que é extrema excepcionalidade. A prisão temporária, doentia criação do legislador ordinário, é a mais violenta inconstitucionalidade praticada dentro do direito positivo brasileiro, não se compadecendo nem com os ditames do interesse social e muito menos para garantia da ordem pública, razão por que dispenso maiores considerações a respeito.
Não é de afastar argumento que pode ser tomado como apelativo para levar o poder judiciário a preocupar-se com a segregação provisória, e que se manifesta pela realidade de nosso sistema penitenciário. Esta é a mais amarga das realidades a contribuir para o respeito à liberdade. Remeter alguém inocente, ainda que temporariamente, para dentro do inferno prisional, repugna a mais elementar condição da consciência humana.
Desimportar-se com a restrição à liberdade seria postura amoral, desconhecendo um valor ético impostergável, ao ponto de tornar este valor impossível.
São tais idéias, tanto recalcadas como raciocínio que não transcrevê-las provoca-me especial perturbação, pois não é só no plano ético que se esgotam. Nem e muito menos no jurídico. Basta ver o apelo bíblico: “O senhor é que julga os povos. Julga-me, Senhor, segundo minha justiça,segundo a inocência que há em mim”.
Artigo publicado no:
– Livro de Estudos Jurídicos, Coordenadores: James Tubenchlak e Ricardo Bustamante, Instituto de Estudos Jurídicos, Rio de Janeiro, 1994, vol. 09, p. 322
– Revista da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul – AJURIS, Araken de Assis, Coordenador, Porto Alegre, julho de 1994, ano XXI, rev. n. 61, p. 297.
*Aramis Nassif é Juiz de Direito do Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul e autor de diversos trabalhos