Roberto de Almeida Salles
Com a edição da Lei nº 9.099/95, que dispôs sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, grande evolução sofreu o Direito Penal Brasileiro.
Primeiramente, viabilizou-se a aplicação da transação penal nos crimes de menor potencial ofensivo, já prevista desde 1.988 no artigo 98, inciso I da Constituição Federal e que aguardava sua regulamentação através de lei infraconstitucional.
Além disso, criou-se a possibilidade da transação civil como meio de extinguir a punibilidade do agente sem apreciação do mérito da causa, dando maior ênfase à satisfação dos prejuízos materiais do ofendido. Isso sem contar os novos casos em que a legislação pátria passou a exigir a representação da vítima ou de seu representante legal para a propositura da ação penal.
Todas essas modificações, acompanhadas de um procedimento novo, mais célere e informal, significam, para aqueles que trabalham com o Direito Penal Brasileiro, novas ferramentas para tornar a Justiça Criminal do país mais eficiente, rápida e verdadeiramente voltada à pessoa do ofendido.
A par de todos esses novos institutos, surgiu também a figura da suspensão condicional do processo (art. 89).
Figura bem assemelhada à da suspensão condicional da pena ou sursis, a suspensão condicional do processo talvez seja o instituto recém-criado que mais dúvidas e polêmicas suscite.
Trata-se de figura jurídica que possibilita a paralisação do processo penal, por um determinado prazo estabelecido em lei, desde que o autor do fato, já acusado de uma infração penal, preencha certos requisitos e cumpra, durante o período de prova, algumas condições preestabelecidas pelo juiz.
Não há, como alguns podem pensar, em caso de aceitação da suspensão do processo, aceitação de culpa ou imposição de pena. As restrições aceitas pelo acusado constituem um preço que este paga para não discutir sua culpa no processo onde lhe é imputada a prática de uma infração penal.
Neste particular, é de se ressaltar que essa infração penal não é necessariamente a de menor potencial ofensivo, definida no artigo 61 da supra citada lei. A aplicação da suspensão do processo ocorre também naquelas infrações não definidas como tal nesta legislação, bastando que a pena mínima seja igual ou inferior a um ano (art. 89).
Pois bem. Feitas essas rápidas considerações preliminares, é de se analisar a natureza jurídica da suspensão condicional do processo.
Nessa oportunidade, aproveito para divulgar aos leitores interessados uma outra noção acerca do tema, diferente do que vem sendo exposto por alguns autores em suas respeitadas obras.
Ao contrário do que sustentam esses autores, no sentido de ter o instituto natureza mista (processual e material), entendo que a suspensão condicional do processo tem natureza jurídica puramente processual.
Primeiramente, porque a figura visa atingir, sobrestar, um processo. Como visto, não há aceitação de culpa ou imposição de pena. O alvo da suspensão é um processo e não uma pena como ocorre no sursis.
Portanto, verifica-se que a sua essência é exclusivamente processual. E natureza, na acepção pura do termo, é essência (vide “Dicionário Escolar da Língua Portuguesa do Ministério da Educação”, p. 765).
Logo, não me parece correto afirmar que a natureza jurídica da suspensão condicional do processo é mista pelo fato de produzir uma conseqüência no direito material, que seria a extinção da punibilidade quando, ao final do período de prova, verifica o juiz que o acusado cumpriu todas as condições objeto da proposta inicial. Ao apreciar a natureza jurídica de um instituto devemos ficar atentos à sua essência e não à sua conseqüência. Esta não tem o poder de interferir naquela.
É o caso, apenas para ilustrar, da sentença criminal condenatória transitada em julgado. Inegável que sua natureza, sua essência é penal. Porém, essa sentença produz conseqüências civis, já que é, por lei, título executivo judicial, possibilitando a reparação do dano, obrigação do campo civil. Nem por isso, ou seja, por essa conseqüência, fala-se que a sentença criminal condenatória transitada em julgado é de natureza mista.
Por fim, entendendo que a natureza jurídica da suspensão do processo é mista, chegaremos, a meu ver, à conclusão de que o instituto é inconstitucional.
Raciocinando pela natureza mista da suspensão do processo, verificaremos que na sua proposição estaria a lei infraconstitucional (lei 9.099/95) permitindo discussão quanto à pena, mais precisamente sobre uma forma de se extinguir a punibilidade do agente, em casos não autorizados pela Constituição Federal, afrontando-a, portanto.
É que o artigo 98, I da Constituição Brasileira somente permite a transação penal nos casos de infração de menor potencial ofensivo. Como vimos acima, a suspensão condicional do processo é aplicável, também, às infrações não definidas como tal. Admitindo-se a natureza mista da figura ora estudada, estaríamos admitindo discussão sobre pena fora dos casos previstos e admitidos pela Constituição Federal, havendo flagrante inconstitucionalidade.
Nossa posição, aponta para a constitucionalidade da suspensão do processo, justamente por ser esta de natureza puramente processual. Assim, a discussão existente quando de sua proposta não envolve pena, nem mesmo culpa. A transação versa somente sobre o prosseguimento ou não do processo. É a chamada transação processual, que não se confunde com a transação penal, referida na Constituição.
Para finalizar, dentro desse raciocínio aqui desenvolvido, chegamos à conclusão que, por ser de natureza processual o artigo 89 da Lei 9.099/95 não retroage. Primeiro, pelo que dispõe o artigo 2º do Código de Processo Penal, quanto às normas de natureza processual. Depois, pelo que disciplinou o artigo 90 da legislação ora estudada que, certamente se referindo às suas normas de caráter processual, preceitua que tais disposições não se aplicam aos processos em que a instrução já tenha se iniciado, não permitindo sua retroatividade.
É, portanto, segundo esse entendimento, irretroativo o artigo 89 da Lei nº 9.099/95, que disciplina a suspensão condicional do processo.
Essas são as considerações que deveriam ser feitas neste trabalho, que tem o intuito de divulgar outro posicionamento acerca do tema escolhido, diverso daquele que vem sendo colocado na maioria das obras em circulação atualmente no Brasil, mantendo acesa sempre a discussão sobre nossas leis.
Roberto de Almeida Salles é Promotor de Justiça e Professor de Direito Penal na Instituição Toledo de Ensino