Arrependimento penal no Estatuto do Desarmamento

Por Edison Miguel da Silva Jr

No direito penal, o sujeito sofre pena pelo que fez ou deixou de fazer. Crime é a conduta humana típica e ilícita. Contudo, a importância da conduta não se esgota naquela definida como típica. O arrependimento, isto é: nova conduta depois daquela que é típica, também tem relevância penal. Dependendo da situação, o arrependimento poderá ser causa de diminuição da pena ou mesmo de exclusão da punibilidade.

Na Parte Geral, o Código Penal prevê expressamente duas hipóteses de arrependimento: a) – Desistência voluntária e arrependimento eficaz, art. 15: “O agente que, voluntariamente, desiste de prosseguir na execução ou impede que o resultado se produza, só responde pelos atos já praticados.”; b) – Arrependimento posterior, art. 16: “Nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, reparado o dano ou restituída a coisa, até o recebimento da denúncia ou da queixa, por ato voluntário do agente, a pena será reduzida de um a dois terços.” Mesmo que falte algum destes requisitos, ainda assim o arrependimento poderá atenuar a pena, como circunstância atenuante inonimada, nos termos do art. 66: “A pena poderá ser ainda atenuada em razão de circunstância relevante, anterior ou posterior ao crime, embora não prevista expressamente em lei.”

Na Parte Especial, o Código Penal também estimula o arrependimento do sujeito, por exemplo: a) – no peculato culposo, art. 312, §3º: “a reparação do dano, se precede à sentença irrecorrível, extingue a punibilidade; se lhe é posterior, reduz de metade a pena imposta”; b) – no crime contra a honra, art. 143: “O querelado que, antes da sentença, se retrata cabalmente da calúnia ou da difamação, fica isento de pena.”

A relevância penal do arrependimento é reconhecida inclusive pela jurisprudência, mesmo quando não existe disposição legal expressadas leis especiais, a figura penal do arrependimento também está previsto, como por exemplo, na Lei 10.684/03 que extingue-se a punibilidade dos crimes previdenciários e tributários quando o sujeito efetua o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais.

A relevância penal do arrependimento é reconhecida inclusive pela jurisprudência, mesmo quando não existe disposição legal expressa, como ocorre com a situação prevista na Súmula 554 do Supremo Tribunal Federal que exclui o delito ou extingue a punibilidade se houver o pagamento do cheque sem fundos após a consumação do delito, mas antes do recebimento da denúncia.

Enfim, o arrependimento penal está previsto em diversos dispositivos legais do direito penal brasileiro, sendo utilizado para aumentar a proteção penal ao bem jurídico tutelado, pois estimula conduta posterior que atenue ou evite o resultado ofensivo da conduta típica anterior. Sua característica essencial é a prática de conduta posterior ao crime que diminui a pena ou exclui a punibilidade.

Estatuto do Desarmamento – A Lei 10.826/03 estabeleceu no seu art. 30 que: “Os possuidores e proprietários de armas de fogo não registradas deverão, sob pena de responsabilidade penal, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias após a publicação desta Lei, solicitar o seu registro apresentando nota fiscal de compra ou a comprovação da origem lícita da posse, pelos meios de prova em direito admitidos.” Estabeleceu também no art. 32 que: “Os possuidores e proprietários de armas de fogo não registradas poderão, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias após a publicação desta Lei, entregá-las à Polícia Federal, mediante recibo e, presumindo-se a boa-fé, poderão ser indenizados, nos termos do regulamento desta Lei.”

Os poucos brasileiros que se armaram na ilusória busca de proteção pessoal estão se arrependendo e entregando as suas armasAs duas hipóteses legais tratam exclusivamente do delito de posse ilegal de arma de fogo que já era crime antes do Estatuto do Desarmamento e com ele teve a pena agravada. Assim, o sujeito que tinha a posse ilegal de arma de fogo já estava praticando uma conduta típica prevista na Lei 9.437/97. Com a nova Lei, continuou a prática delitiva, mas foi estimulado ao arrependimento penal, ou seja: se registrar a arma ou entregá-la, no prazo determinado, extingue-se a punibilidade. Na última hipótese, pode ainda receber uma indenização, presumindo-se a boa-fé.

Portanto, os arts. 30 e 32 da Lei 10.826/03 estabeleceram mais dois casos de arrependimento no direito penal brasileiro.

Regras práticas – Identificada a natureza jurídica dos mencionados arts. 30 e 32 como mais uma espécie de arrependimento penal, é possível formular 5 regras práticas: 1ª) – Todos os tipos penais previstos no Estatuto do Desarmamento estão em pleno vigor, pois sua vigência independe do prazo assinalado para o arrependimento previsto no caso de posse ilegal de arma de fogo; 2ª) – Para que ocorra a exclusão da punibilidade em decorrência deste arrependimento, é necessário que o sujeito voluntariamente regularize a posse da arma ou a entregue para a Polícia Federal, no prazo legal; 3ª) – É possível a prisão em flagrante por posse ilegal de arma de fogo durante a vigência do prazo para o arrependimento, porque esta figura penal exige uma conduta posterior voluntária para excluir a punibilidade; 4ª) – O benefício do arrependimento não retroage porque exige conduta nova que não pode ser praticada por aqueles que já foram flagrados possuindo ilegalmente arma de fogo; 5ª) – A finalidade do arrependimento (proteção ao bem jurídico) indica que poderá ser aplicado, por construção jurisprudencial, mesmo após escoado o prazo legal, desde que o sujeito se arrependa entregando voluntariamente a arma de fogo para destruição.

Política criminal – Por fim, vale ressaltar o acerto do arrependimento penal no Estatuto do Desarmamento. Segundo dados divulgados pela imprensa, já foram entregues para destruição aproximadamente 300 mil armas de fogo. Embora nem todas sejam provenientes de posse ilegal, não há dúvida de que aqueles que estavam incorrendo nesse delito estão atendendo o chamado legal em troca da exclusão da punibilidade. O cidadão honesto que possuía ilegalmente uma arma , na ilusão de se proteger, está se arrependendo, entregando-a à Polícia Federal para destruição. Com isso, diminui-se a possibilidade do bandido se armar, pois bandido não compra arma em loja.

Por outro lado, a eficácia do arrependimento como instrumento de política criminal tem repercussão no referendo previsto no §1º, art. 35, do Estatuto do Desarmamento. Segundo este dispositivo legal, é proibida a comercialização de arma de fogo e munição em todo o território nacional, desde de que aprovado mediante referendo popular, previsto para outubro de 2005.

Ora, a população brasileira não está armada. Os poucos brasileiros que se armaram na ilusória busca de proteção pessoal estão se arrependendo e entregando as suas armas. Qual a necessidade, então, da proibição de comercialização de arma de fogo e munição, no Brasil? Nenhuma. Ademais, a proibição do comércio de um produto não acaba com a sua demanda, apenas a transfere para a clandestinidade onde florescem as organizações criminosas e desaparece o controle do Estado. Se hoje, 80% das armas que foram apreendidas pela polícia no Rio de Janeiro são brasileiras, de origem legal e de calibre permitido; amanhã elas poderão ser de origem estrangeira e de calibre não permitido, simplesmente porque a proibição do comércio não acaba com a demanda.

Assim, concluindo, o arrependimento penal previsto nos arts. 30 e 32 do Estatuto do Desarmamento é medida de política criminal para a redução da violência por arma de fogo mais eficaz que a proibição do comércio legal de armas e munições. Logo, melhor que proibir o comércio, devemos continuar reduzindo a demanda com as campanhas de desarmamento e, no campo do direito penal, admitir o arrependimento mesmo após o prazo legal.

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