A responsabilidade do Estado pela prisão ilegal

por Arnaldo Quirino de Almeida

Introdução

A liberdade pessoal antes mesmo de ser reconhecida como um direito institucional, já era tido como um direito natural do Homem, sempre habituado a viver livre e com plena autonomia de suas faculdades para satisfazer da forma como melhor lhe aprouver as necessidades do espírito. Todavia, a vida em sociedade nos impõe determinadas regras de convívio, muitas vezes limitando nossa liberdade, sempre tendo como preocupação maior a manutenção do equilíbrio do corpo social e o respeito ao direito de nosso semelhante, dado que infelizmente o ser humano é dotado de momentos de insensatez e, em conseqüência, pode tornar-se um desagregador dos interesses e da paz social por meio de atitudes funestas, que não podem passar desapercebidas, merecendo a repulsa da comunidade que deve valer-se dos mais diversos meios para que seja mantida a ordem e não corramos o risco de que seja instalado entre nós o caos, a desordem ou a anarquia.

Assim, após reconhecido ser a liberdade pessoal antes de tudo um direito natural e intangível do indivíduo, ao longo do desenvolvimento da humanidade e da ciência jurídica essa noção foi se fortalecendo e hoje esse direito sagrado da pessoa humana ganhou total proteção do Estado.

Quando exerce o seu poder de restrição da liberdade pessoal, na verdade o Estado está atuando em nome da própria sociedade, que, por meio seus representantes, edificam a ordem institucional vigente. Entretanto, para que exerça o seu poder quando chamado a fazê-lo, o Estado somente pode atuar restringindo a liberdade pessoal se o fizer em estrita obediência aos princípios e ao regramento legal vigente, legitimando sua ação. Havendo abusos, irregularidades, arbitrariedades ou caso a restrição da liberdade pessoal venha a se configurar desnecessária, o Estado deve ser responsabilizado para que os danos causados ao indivíduo sejam integralmente reparados. Por tais motivos o trabalho é composto pelos seguintes tópicos: liberdade pessoal (noções); a possibilidade de restrição da liberdade pessoal pelo Estado; a prisão como instrumento de restrição da liberdade pessoal (evolução); prisão (noções e espécies); a responsabilidade do Estado pela prisão indevida; a indenização da prisão indevida; o dano indenizável, o dano patrimonial e o dano moral.

Liberdade pessoal: noções

A liberdade pessoal (ou individual) sempre foi um dos atributos mais importantes do Homem. Toda a formação da Ciência do Direito sempre teve como uma de suas bases a proteção da liberdade pessoal. É da natureza do homem nascer livre. Todavia, essa liberdade parece não ser absoluta, já que como membro de uma sociedade civilizada é natural que a mesma seja restringida em determinadas situações, previamente firmadas pelo corpo social; essa restrição a liberdade pessoal é um mau necessário para que haja equilíbrio e respeito aos direitos de cada componente da sociedade considerada, e assim, impossibilitando que fiquemos a mercê de arbitrariedades ou escravos do mais forte1.

Atendendo a tradição do Direito moderno, também a Constituição Federal brasileira de 1988 (e outras anteriores) proclama o direito à liberdade (artigo 5º., inciso II), bem como protege a liberdade pessoal, assegurando a livre locomoção do indivíduo (artigo 5º., inciso XV), protegendo-o de prisões ilegais e arbitrárias (incisos LXI e LXVIII).

A liberdade pessoal implica naturalmente no reconhecimento de elementos que a exteriorizem: direito de ir e vir, ficar ou permanecer. Por isso devemos entender a liberdade física e sua proteção2 como verdadeiro corolário da liberdade pessoal; como nos ensina Pontes de Miranda (1916, p. 31): “Essa exteriorização da liberdade pessoal implica pois, na livre locomoção do indivíduo, assegurando-se-lhe o direito de movimentar-se e de transitar livremente pelos locais que a sua vontade determinar”. Portanto, está implícita na liberdade pessoal a característica da manifestação exterior, dotando o indivíduo de autonomia e independência para locomover-se; enfim, liberdade de movimentação e ação para que possa atender aos seus anseios, escolhendo as melhores alternativas para realização pessoal e engrandecimento do espírito, promovendo assim sua auto satisfação3.

A possibilidade de restrição da liberdade pessoal pelo estado

Assim como o Homem, a própria Ciência do Direito evoluiu; reconheceu o direito à liberdade pessoal como um bem inalienável, tão importante como o direito à vida, gozando portanto da proteção do Estado.

Só que essa liberdade não pode ser irrestrita, havendo limites naturais para o seu exercício, como é normal numa sociedade que preza pelos valores da justiça e igualdade de seus cidadãos.

O limite ao exercício da liberdade é demarcado pelas leis do Estado, que visam, por seu turno, à proteção dessa mesma liberdade conferida aos outros membros do corpo social.

A restrição imposta à liberdade pessoal deve ser o necessário e suficiente para que seja atingido o equilíbrio entre os indivíduos no convívio social. Esse limite imposto pela lei somente será legítima quando concebida pelos autênticos representantes da sociedade.

Ao legislador é delegada a tarefa de criar normas destinadas a limitar o direito à liberdade pessoal ou de locomoção, legitimando e possibilitando a ação do Estado nesse campo, já que o referido direito tem seu exercício condicionado às exigências da sociedade pelos interesses do bem comum.

Essas normas limitadoras são verdadeiras exceções à liberdade pessoal e devem por isso mesmo atender aos princípios gerais formados durante a construção da Ciência do Direito, notadamente aqueles que dizem respeito ao tema; alguns desses princípios encontramos inseridos nas Constituições dos Estados4.

A prisão como instrumento de restrição da liberdade pessoal: evolução

O Estado tem na pena de prisão (ou pena privativa de liberdade), o seu instrumento maior de restrição da liberdade individual, impondo ao mau cidadão a perda do seu “status libertatis”. Todavia, além de prevenção geral a bens e interesses da sociedade, a doutrina moderna tem considerado que a prisão deve ter por finalidade maior a ressocialização do indivíduo, tornando-o novamente um bom cidadão cumpridor das regras sociais (prevenção geral especial).

Nunca é demais lembrar que no Brasil a pena restritiva da liberdade física pode ser de prisão simples (reservada para as contravenções) e de reclusão e detenção (destinada aos crimes). Lembramos também que a Constituição Federal de 1988 reconhece a prisão civil, porém somente nos casos do depositário infiel e do inadimplente voluntário e inescusável de obrigação alimentar (artigo 5º., inciso LXVII). Porém, ao nosso ver, e como demonstramos mais à frente, outras hipóteses de cabimento de prisão civil, que não sejam aquelas taxativamente previstas pela Lei Maior, são absurdas e inconstitucionais. Além desta última espécie de prisão, o ordenamento jurídico também prevê a existência das prisões administrativa e disciplinar.

Atualmente, tendo em vista a preocupação com a ressocialização do indivíduo, busca-se formas alternativas à pena de prisão, evitando-se sempre que possível a “carcerização” do indivíduo, sendo esta a tendência do direito penal moderno conforme nos indica a doutrina recente que trata do tema. A ressocialização está baseada principalmente na idéia de se oferecer auxílio terapêutico ao indivíduo, buscando-se com isso a sua reintegração e readaptação ao convívio social, pois a prisão não pode ser um fim em si mesma, um castigo somente; o cumprimento da pena de prisão deve também ter um caráter utilitário-social5.

A adoção de sanções alternativas6, voltadas principalmente para pequena e média criminalidade, deu enfoque novo para a tese da ressocialização, que dentre outros aspectos preocupa-se também com a reparação dos danos causados pela infração e por via de conseqüência são tutelados os interesses da vítima. Por meio desses mecanismos alternativos, a pena de prisão que é a forma mais extremada de sanção jurídica aplicada ao mau cidadão descumpridor das normas de conduta (notadamente as de caráter penal), ficou agora reservada para os delitos graves.

Prisão: noções; espécies: prisão-pena; prisão processual; prisão extrapenal

Noções

A prisão tal como a conhecemos é a restrição da liberdade individual como forma de punição estatal, conseqüência, no mais das vezes, da prática de um delito. A prisão, por ser medida extrema contra o estado de liberdade do indivíduo, direito universalmente garantido, somente se admite quando determinada pôr ordem legal e emanada de autoridade competente e respeitado o devido processo legal.

Num autêntico estado de direito no qual as liberdades individuais devem ser respeitadas, a prisão de qualquer indivíduo antes que seja proferido julgamento definitivo (trânsito em julgado), somente se justifica por razões de necessidade em manter-se a ordem e segurança da sociedade em detrimento da liberdade individual, e deve ter por finalidade a efetividade do processo penal.

A Constituição Federal protege o cidadão contra práticas arbitrárias, no que concerne a sua prisão, que caso ocorra, deverá ser efetivada em obediência ao artigo 5º., incisos III, XI, XLIX, LIII, LIV, LV, LVII, LXI, LXII, LXIII, LXIV, LXV, LXVI, dentre outros que visem a proteção contra a prisão ilegal, injusta, violenta e arbitrária.

O Código de Processo Penal, por sua vez, trata da prisão nos seus artigos 282 e seguintes, onde encontramos os casos em que a custódia pode realizar-se e as formalidades que devem ser obedecidas.

Espécies

As espécies de prisões existentes no direito brasileiro são: prisão-pena; prisão processual; prisão extrapenal.

Prisão-pena

É aquela decretada como decorrência natural da sentença condenatória; é a prisão sanção-definitiva (também chamada de prisão penal), que pode ser de reclusão, detenção e prisão simples. Atualmente predomina na doutrina a tese de que a prisão como pena tem uma finalidade retributiva e utilitária, já que ao mesmo tempo a aplicação da reprimenda castiga o delito e serve também para preveni-lo (é a chamada teoria da união – eclética ou mista); assim, segundo os adeptos dessa teoria, como forma de prevenção geral, a pena tem por finalidade intimidar e promover a integração do ordenamento jurídico e como forma de prevenção especial, promover a ressocialização do indivíduo7.

A prisão-pena é, portanto, a restrição da liberdade individual em razão da aplicação de uma pena ou sanção definitiva ao infrator da lei penal, decorrente do legítimo exercício do direito punitivo do Estado e que tem como premissa maior a proteção da sociedade, livrando-a dos maus cidadãos transgressores da norma penal, e num segundo plano, sempre que possível, tentar a reintegração desses cidadãos à vida social.

Prisão processual

É aquela que não possui conotação de sanção penal (também denominada por alguns de prisão sem pena), sendo sempre prisão provisória e sua natureza é de prisão acautelatória e instrumental. A prisão processual decorre da necessidade de ser preservada a efetividade do processo penal e o fim por este colimado, que é o pleno exercício do direito de punir do Estado, notadamente quando tratar-se da prática de infração penal em flagrante delito8.

Mesmo sabendo-se que é uma constante preocupação da sociedade moderna adotar meios mais eficazes e rigorosos para reprimir delitos de maior gravidade e que causam repugnação a todos, não é menos correto afirmarmos que num autêntico Estado de Direito, a despeito de ter praticado um delito, o indivíduo possui direitos e garantias consagrados pela Constituição Federal, que o Direito contemporâneo não admite sejam restringidos desnecessariamente. Nessa perspectiva, para evitar abusos e arbitrariedades, a mais autorizada doutrina reconhece princípios informadores concernentes as medidas de cautela adotadas no processo penal, que devem ser observados pelos operadores do Direito, principalmente para aferir a necessidade de restrição da liberdade de locomoção por meio da prisão provisória.

Esses princípios são: princípio da legalidade, princípio da adequação e proporcionalidade, princípio da precariedade e princípio da subsidiariedade.

Princípio da legalidade: o princípio da legalidade determina que as medidas de cautela impostas ao indivíduo somente podem ser aquelas previstas expressamente pela lei e devem possuir pressupostos de cabimento próprios, não podendo a liberdade pessoal do indivíduo ser restringida ou limitada por outro meio.

Princípio da adequação e proporcionalidade: segundo esse princípio, as medidas de cautela adotadas para garantir a efetividade do processo penal devem ser adequadas ao caso concreto e proporcionais a gravidade do crime e a pena que possivelmente possa ser aplicada ao mesmo. Para atender a esse princípio o legislador deve colocar à disposição do magistrado tantas medidas de cautela quanto sejam possíveis, para que, em razão da gravidade do crime e a situação de fato possa haver um elenco maior de medidas, aplicando-se aquela que melhor seja adequada ao caso concreto, ao mesmo tempo em que seja uma garantia da efetividade do processo penal, restrinja o menos possível a liberdade pessoal do indivíduo, procurando manter o equilíbrio entre o exercício regular e legítimo do poder de um lado e a manutenção e preservação dos direitos e garantias individuais de outro9. Adotando sistemática que já é consagrada na moderna legislação processual penal de nações como Itália, França, Alemanha, Espanha e Portugal, dentre outras, e que buscam a eficiência e o garantismo10, foi elaborada por juristas, doutrinadores e operadores do Direito de renome nacional, proposta de modificação do atual Código de Processo Penal11, que, na parte referente as medidas de cautela, inova o sistema atual e fornece um número maior de alternativas ao magistrado, obedecendo uma certa graduação quanto as limitações impostas a liberdade pessoal, pois fixa medidas de cautela mais graves ou menos graves de acordo com o crime e as circunstâncias em que foi praticado, em perfeita consonância com o princípio da adequação e proporcionalidade12.

Princípio da precariedade: segundo o preceito deste princípio, as medidas de cautela são sempre precárias (notadamente quanto a prisão provisória), em razão do princípio da presunção de inocência que não admite a antecipação do cumprimento de pena privativa de liberdade antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória, pois tal antecipação representaria uma inversão de valores (por pressupor a presunção de culpa do indivíduo).

Princípio da subsidiariedade: o enunciado desse princípio – mais determinante quanto a prisão processual -, informa que essa espécie de custódia deve ser de caráter subsidiário, somente aplicando-se em casos nos quais outras medidas de cautela sejam inadequadas e ineficientes em face da presença de algumas condições, a saber: a gravidade do crime praticado; a pena a este cominada; os obstáculos causados pelo agente do fato delituoso para a efetividade do processo penal; o perigo de grave perturbação da ordem pública ou continuação da atividade criminosa. Decorre naturalmente deste princípio também o princípio da necessidade, segundo o qual as prisões processuais somente se efetivam se o caso concreto determinar a sua real necessidade13.

A prisão processual, de natureza e conteúdo acautelatório, deve obedecer o que dispõe o artigo 5º., inciso LXI da Constituição Federal, sob pena de ser imediatamente relaxada pela autoridade judiciária competente (artigo 5º., inciso LXV, da Constituição Federal), ou ter sua decretação revogada, além da garantia do remédio constitucional do “habeas corpus”, nos casos em que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção por ilegalidade ou abuso de poder (artigo 5º., inciso LXVIII, da Constituição Federal). A própria Carta Magna ao determinar expressamente que a prisão somente se efetivará nos casos de flagrante delito (prisão processual) ou mediante decisão judicial devidamente fundamentada, prevê a possibilidade da decretação de prisão provisória (atendidos os pressupostos de seu cabimento).

Sobretudo devido a previsão constitucional, e desde que observado o princípio da necessidade, não merece razão aqueles que entendem que a prisão processual contraria o princípio da presunção de inocência, e, como afirma Jardim, a prisão cautelar tem como finalidade “tutelar os fins e os meios do processo penal” 14 e somente deve ser decretada (ou ratificada, tratando-se de flagrante delito) caso o magistrado se convença da probabilidade de condenação ao final (juízo de probabilidade) e haja risco de dano irreparável à efetivação do processo ou à ordem pública (periculum in mora)15.

Em face de prevalecer a presunção de inocência do acusado (e não de culpa), até pelo menos o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, o Estado-Juiz ou seus agentes deverão aferir a real necessidade de qualquer medida cautelar restritiva do direito à liberdade de locomoção (princípio da necessidade da prisão provisória), quando da prática de delito. Se houverem outros meios de se alcançar a efetividade do processo penal e for constatado que a liberdade do acusado não causará prejuízo ao “jus puniendi” estatal ou à sociedade, aquele sagrado direito do indivíduo deve ser preservado, independentemente de requerimento seu (ao contrário do que faz supor a legislação processual em vigor). Interpretação em sentido contrário é grave afronta ao texto da Constituição Federal (artigo 5º., inciso LXVI) que garante a manutenção do direito à liberdade sempre que a prisão cautelar se mostrar desnecessária, atendidos os demais pressupostos legais (artigo 321 e seguintes do CPP.).

Portanto, perfeitamente admissível a prisão processual penal no nosso ordenamento jurídico, desde que em caráter excepcional e motivada sempre por situações realmente necessárias e oportunas, e desde que decretada pela autoridade judiciária competente em decisão devidamente fundamentada, podendo, por seu turno, ser classificada em: prisão em flagrante (artigos 301 a 310 do CPP.); prisão preventiva (artigos 311 a 316 do CPP.); prisão temporária (Lei nº. 7.960/89); estas de natureza eminentemente cautelar; prisão decorrente de sentença de pronúncia (artigos 282 e 408, § 1º., do CPP.); e prisão decorrente de sentença condenatória (artigo 393, inciso I, do CPP.) 16.

Prisão extrapenal

A prisão extrapenal é assim denominada por não possuir natureza de pena imposta em conseqüência de prática de ilícito penal, dividindo-se em:

a) prisão administrativa, atualmente prevista no artigo 329, incisos I e II, do Código de Processo Penal e leis especiais, como a Lei nº. 6.815/80 (artigos 61, 69 e 81), que, com o advento da Constituição Federal de 1988, somente é permitida quando determinada por autoridade judiciária competente;

b) prisão civil, nos casos previstos expressamente pela lei civil e que atualmente são restritos ao alimentante inadimplente injustificado e ao depositário infiel (artigo 5º., inciso LXVII, da Constituição Federal);

c) prisão disciplinar, aplicável excepcionalmente aos casos de transgressões militares, cujo permissivo legal está no artigo 5º., inciso LXI e 142, § 2º., da Constituição Federal e artigo 18 da Lei nº. 1.002/69.

Em relação a prisão administrativa alguns discutem a legitimidade dessa modalidade de custódia em face da atual Constituição Federal, entendendo que após o seu advento somente pode haver a restrição da liberdade em decorrência da prática de infração penal, transgressão ou crime militar, e, tratando-se do descumprimento de obrigações civis, somente nos casos de devedor voluntário e inescusável de alimentos e do depositário infiel (artigo 5º., incisos LXI e LXVII, da C.F.).

A Constituição Federal de 1988 parece não ter recepcionado a prisão administrativa. Senão vejamos. Primeiro temos que tal prisão seria um “meio coativo para compelir alguém ao cumprimento de certa obrigação” (Noronha 1989, p. 177), havendo até quem entenda que ela guarda certa similitude com a prisão cautelar (o que não nos parece correto afirmar). Segundo, os incisos LIV e LV do artigo 5º. da Constituição Federal, determinam que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” e que a todos é assegurado o “princípio do contraditório e da ampla defesa”. Terceiro, o próprio inciso LXI faz ressalva específica quanto a tolerância de certa flexibilidade para proceder-se à prisão somente nos casos de transgressões ou crimes militares, o que demonstra a intenção do Constituinte em abolir a prisão administrativa ou qualquer outra forma de prisão odiosa, arbitrária ou que não obedeça aos princípios constitucionais antes mencionados.

Quanto a prisão civil, a análise a ser feita está bem próxima do que foi afirmado acerca da prisão administrativa no que diz respeito a sua recepção pela Constituição Federal17, todavia com algumas outras considerações.

Disciplinando a prisão civil temos o artigo 5º., inciso LXVII da Constituição Federal e devem ser lembrados também o Decreto nº. 678 de 06 de novembro de 1992, que promulgou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22.11.69 e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, promulgado desde Julho de 1992 pelo governo brasileiro, ambos incorporados ao nosso sistema jurídico e perfeitamente conforme o artigo 5º., § 2º., da Constituição Federal.

O item nº. 7 do artigo 7º., da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, está assim redigido: “7. Ninguém deve ser detido por dívida. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar”.

O artigo 5º, inciso LXVII da Constituição Federal está assim redigido: “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”. Esse mandamento constitucional, inadvertidamente, vai além da tendência que se verifica no moderno direito comparado, principalmente em relação aos acordos e pactos internacionais, que em matéria de prisão civil por dívida somente a tem admitido quando tratar-se do devedor inescusável de prestação alimentícia. A regra constitucional que autoriza a prisão do depositário infiel deve ser vista com certa reserva, já que as legislações mais avançadas estão excluindo esta modalidade de prisão de seus sistemas jurídicos, em atenção ao princípio da proporcionalidade da pena, segundo o qual a perda da liberdade individual pela prisão somente entende-se razoável se tiver por finalidade proteger direitos ou um bem jurídico equivalente à liberdade, como por exemplo o direito à vida, à integridade física, a liberdade de locomoção, etc., daí porque deve a prisão civil por dívida ser restringida aos casos de inadimplemento de obrigação alimentar.

A responsabilidade do estado pela prisão ilegal

Se por um lado ao Estado é conferido o poder de restringir a liberdade pessoal, não é menos verdade que esse poder não é absoluto, ficando adstrito as regras fixadas pelo legislador. Essa regras limitadoras da atuação do Estado, caso não respeitadas, seja por erro ou omissão, acarretam-lhe a obrigação de indenizar o particular.

Entre nós já não há mais a existência do Estado absoluto, que tudo podia fazer sem que ao menos houvesse imputação de responsabilidades por atos que causassem aos seus súditos e modernamente o Direito admite a responsabilidade do Estado, colocando-o como ente público apto a responder pelo danos causados ao particular. Esse avanço fez surgir entre nós o “princípio da repartição dos ônus e dos encargos públicos” 18, distribuindo-se de forma igualitária entre os componentes da sociedade os prejuízos acarretados pela ação danosa do Estado aos interesses do particular, compensando ou recompondo os danos experimentados por este último19.

Revista Consultor Jurídico

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