Desconsiderar personalidade jurídica prejudica a sociedade

por Daniel Schmidt Pitta

Com sistematização apontada pela maioria da doutrina brasileira no trabalho do jurista alemão Rolf Serick intitulado, na tradução ao castelhano, como “Aparencia y Realidad em las Sociedades Mercantiles — El Abuso de Derecho por Medio de la Persona Jurídica”, em que realiza arguciosa análise da jurisprudência norte-americana sobre o assunto, a Desconsideração da Personalidade Jurídica é uma elaboração doutrinária relativamente recente, sendo sua origem identificada por muitos nas lições do jurista norte-americano Maurice Wormser que, em 1912, a definia da seguinte forma: “quando o conceito de pessoa jurídica se emprega para defraudar os credores, para subtrair-se a uma obrigação existente, para desviar a aplicação de uma lei, para constituir ou conservar um monopólio ou para proteger velhacos ou delinqüentes, os tribunais poderão prescindir da personalidade jurídica e considerar que a sociedade é um conjunto de homens que participam ativamente de tais atos e farão justiça entre pessoas reais.”

Atribui-se a Rubens Requião, em conferência proferida na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, a introdução da teoria no Brasil, afirmando que “todos esses conceitos e preconceitos levaram o pensamento jurídico a conceber, sobretudo em nosso país, a personalidade jurídica como um ‘véu’ impenetrável. Passou a ser vista, via de regra, como uma categoria de direito absoluto. Ora, a doutrina da desconsideração nega precisamente o absolutismo do direito da personalidade. Desestima a doutrina esse absolutismo, perscruta através do véu que a encobre, penetra em seu âmago, para indagar de certos atos dos sócios ou do destino de certos bens. Apresenta-se, por conseguinte, a concessão da personalidade jurídica com um significado ou um efeito relativo, e não absoluto, permitindo a legítima penetração inquiridora em seu âmago.”

Fábio Ulhoa Coelho, em seu Curso de Direito Comercial, V. 2, afirma que “se deve deixar bem claro que a teoria da desconsideração da personalidade jurídica não é uma teoria contra a separação subjetiva entre a sociedade empresária e seus sócios. Muito ao contrário visar esta teoria à preservação do instituto, em seus contornos fundamentais, diante da possibilidade de seu desvirtuamento vir a comprometê-lo. Isto é, a inexistência de um critério de orientação, a partir do qual os julgadores pudessem reprimir fraudes e abusos perpetrados através da autonomia patrimonial poderia eventualmente redundar no questionamento do próprio instituto, e não do seu uso indevido”.

Fabio Ulhoa Coelho divide ainda a Teoria da Desconsideração em duas sub-teorias: a Teoria Maior e a Teoria Menor da Desconsideração da Personalidade Jurídica. Segundo o autor, “a primeira é a teoria mais elaborada, de maior consistência e abstração, que condiciona o afastamento episódico da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas à caracterização da manipulação fraudulenta ou abusiva do instituto”, distinguindo-a de institutos jurídicos distintos, que apesar de também implicarem a afetação de patrimônio de sócio por obrigação da sociedade, com ela não se confundem. Exemplo destes institutos são a responsabilização por ato de má gestão, a extensão da responsabilidade tributária ao administrador, etc.

A segunda, de outro lado, se refere à desconsideração em toda e qualquer hipótese de execução do patrimônio de sócio por obrigação social, cuja tendência é condicionar o afastamento do princípio da autonomia à simples insatisfação de crédito perante a sociedade. É a Teoria Menor, que se contenta com a demonstração pelo credor da inexistência de bens sociais e da solvência de qualquer sócio para atribuir a este a obrigação da pessoa jurídica.

Infelizmente, é essa a teoria que, em muitos casos, vem sendo aplicada no direito pátrio e é contra a sua aplicação que me coloco no presente artigo. Por vezes, veremos que alguns juízes brasileiros, especialmente os juízes do trabalho, confundem-se entre os institutos da desconsideração da personalidade jurídica e o da responsabilização dos sócios por atos ilícitos praticados na administração da sociedade e demonstram desconhecer até o próprio princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica.

Recentemente a Associação dos Advogados de São Paulo publicou uma pesquisa monotemática de jurisprudência sobre a desconsideração da personalidade jurídica na justiça do trabalho, que me causou assombro não tanto pela forma e freqüência com que o instituto é aplicado, já conhecida de todos, mas pelos argumentos utilizados para a justificação desta aplicação.

Em julgamento proferido em 20 de maio de 2004, o Juiz Valtércio de Oliveira, relatando Recurso Ordinário 00011-2003-010-05-00-0 em acórdão de 11.928/04, proferiu análise assustadora pelo conteúdo e pela livre interpretação de lição de Orlando Gomes, que ministra, citado pelo Juiz: “Dúvida não pode haver de que o agrupamento dos seres humanos para a realização de fim comum, reunindo esforços e capitais, é imperativo da própria organização social, como o é o contrato para a disciplina de certos interesses.

Conseqüentemente, esse fato, que a sociedade gera, não é uma abstração, mas, sim, evidente realidade. O direito apercebe-se de sua existência, e, por processo técnico, possibilita a atividade social dos que se agrupam para exercê-la. Esse processo técnico é a personificação. Consiste, precisamente, em atribuir personalidade ao grupo, para que possa exercer a atividade jurídica como uma unidade, tal como se fosse uma pessoa natural. A explicação é aceitável, resultando, como resulta, da observação da realidade social (In Introdução ao Direito Civil, p. 195, 1ª ed. Universitária, Ed. Forense)” (grifos meus).

Desta lição de Orlando Gomes o Juiz retira o seguinte: “A pretensão recursal é incluir na lide, como responsáveis subsidiários, os sócios da empresa reclamada. A irresignação procede. Para o sócio figurar no pólo passivo da relação processual não é necessário que a empresa se encontre em situação de insolvência. Isso porque à pessoa jurídica atribui-se personalidade decorrente do grupo (sócios) que a compõe.” Como se não bastasse, ementa o seu acórdão da seguinte maneira: “RESPONSABILIDADE DOS SÓCIOS Impõe-se, mesmo quando solvente a sociedade, pois o grupo de pessoas naturais integrante da pessoa jurídica com esta se confunde, constituindo-se o seu mentor e tornando tangível a essência dessa ficção do direito, conseqüentemente devendo arcar com os ônus trabalhistas resultantes de sua expressão volitiva.”

Ou seja, neste infeliz acórdão, o citado Juiz não aplica sequer a teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica, mas desconsidera simplesmente a existência da pessoa jurídica da sociedade, afirmando, repito, que “o grupo de pessoas naturais integrante da pessoa jurídica com esta se confunde”.

A meu ver, esta decisão não é apenas ilegal, mas inconstitucional, pois a Constituição Brasileira, em muitos de seus dispositivos, assevera a existência da pessoa jurídica no direito pátrio.

Em diversas das decisões analisadas verifica-se a aplicação da Teoria Menor da Desconsideração da Personalidade Jurídica, visto argumentarem os juízes que “a teoria da desconsideração da personalidade jurídica tem aplicação no Direito do Trabalho sempre que não houver patrimônio da sociedade, quando ocorrer dissolução ou extinção irregular ou quando os bens não forem localizados, respondendo os sócios de forma pessoal e ilimitada, a fim de que não se frustre a aplicação da lei e os efeitos do comando judicial executório” ou que “como o sócio não indicou bens livres e desembaraçados da pessoa jurídica, pode-se dizer que é o caso de aplicação da teoria da desconsideração nos presentes autos”, ou ainda, “não possuindo bens a executada de forma a garantir a execução (…) é de se manter a constrição sobre os bens particulares dos agravantes, únicos sócios e ambos gerentes da sociedade ré, porquanto não clama a lei qualquer ato formal para a despersonalização e tampouco a autoriza apenas no desvio ou na fraude, autorizando, ao contrário e igualmente, a desconsideração da personalidade também na contingência do insucesso próprio do mercado, visto não restritiva a legislação de regência.” (Respectivamente, TST 5ª Turma; AIRR nº 22.289/2002-900-09-00.2; TRT da 2ª Região – 1º Turma.; Ag. De Petição em ET nº 01552200305202004 – SP; TRT da 15ª Região; Ag. De Petição em ET nº 00121-2003-004-15-00-GAP) (Grifos meus).

Alguns juízes brasileiros, em especial os trabalhistas, parecem ignorar o fato de que, se for estabelecida no Brasil, como regra, a Teoria Menor da Desconsideração da Personalidade Jurídica, se está, na verdade, tornando ilimitada a responsabilidade dos sócios ou acionistas das sociedades para com as dívidas destas, já que a simples ausência de patrimônio da sociedade poderá gerar o alcance do patrimônio dos sócios. E como não poderia deixar de ser, tornar a responsabilidade dos sócios ilimitada, principalmente em sociedades para cujos sócios a lei expressamente atribui limitação ao montante investido, acarretará um custo social imensamente maior do que o prejuízo causado aos credores da sociedade, ainda que trabalhistas, que não tiverem seus créditos honrados quando do insucesso desta.

Isso porque, nos dizeres de Fábio Ulhoa Coelho, “o custo da atividade econômica compõe o preço a ser pago pelos consumidores ao adquirirem produtos e serviços no mercado. Se o direito não dispuser de instrumentos de garantia para os empreendedores, no sentido de preservá-los da possibilidade de perda total, eles tenderão a buscar maior remuneração para os investimentos nas empresas.” Nesse sentido, pode-se inferir também que os próprios empregados serão prejudicados pela ausência de limitação da responsabilidade dos sócios não só pelo evidente aumento na informalidade das contratações, mas pelo conseqüente aumento dos custos na aquisição de produtos necessários à sua sobrevivência.

Rubens Requião, na citada conferência em que introduziu o tema da desconsideração no direito pátrio, assevera ainda que “uma das mais decisivas conseqüências da concessão da personalidade jurídica, outorgada pela lei, todos o sabemos, é a sua autonomia patrimonial, tornando a responsabilidade dos sócios estranha à responsabilidade social, e mesmo quando se trate de sócio com responsabilidade ilimitada e solidária é sempre ela subsidiária.”

Apesar de consagrada na doutrina e na legislação brasileira, a autonomia patrimonial da pessoa jurídica em relação ao patrimônio dos seus sócios vem sendo diuturnamente vilipendiada pelos tribunais pátrios. Em recente e polêmica decisão, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), por maioria de votos no Recurso Especial 279.273/SP em 4 de dezembro de 2003, decidiu conferir interpretação autônoma ao parágrafo 5º, do artigo 28 do Código de Proteção e Defesa do Consumidor (CDC — Lei 8.078/90) em relação ao seu caput, fazendo com que os administradores, sócios e/ou acionistas respondam pelas obrigações da pessoa jurídica, independentemente da caracterização das situações arroladas pelo artigo 28, caput, quais sejam: abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, existência de ato ilícito, violação de estatutos ou contrato social, bem como falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade sempre em virtude de má administração. Em suma, aplicou-se a idéia contida na denominada “teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica”.

Essa decisão do STJ demonstra que ainda não está consolidada no país a teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica, que a meu ver deve prevalecer, e que exige o cumprimento de certos e rigorosos requisitos para que a personalidade jurídica possa ser afastada e alcançados os bens particulares dos sócios. Isso porque, conforme já dito, a aplicação da teoria menor gerará, de imediato, o aumento dos custos para o desenvolvimento da atividade econômica e, em médio prazo, ocasionará um desestímulo à atividade empresarial no país, afastando investidores nacionais e estrangeiros, que buscarão portos mais seguros para investir seu capital.

Com isso, fica prejudicada a atividade econômica no país e, certamente, ficam prejudicados os diversos agentes a ela relacionados que, pela aplicação da teoria menor com a justificativa de terem honrados os seus créditos em detrimento da limitação da responsabilidade de sócios e acionistas, estarão impossibilitados de exercer quaisquer atividades no país, visto restar prejudicada a própria atividade com a qual se relacionavam. Este raciocínio também se aplica aos empregos. Se a Justiça do Trabalho insiste em considerar suficiente para a responsabilização dos sócios a ausência de patrimônio das sociedades, com o aumento do custo da atividade econômica esta restará reduzida e, com ela, o número de postos de trabalho oferecidos pelo mercado.

Bibliografia

1. REQUIÃO, Rubens. “Abuso de Direito e Fraude Através da Personalidade Jurídica.” RT 410/12.

2. COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. 8ª ed., vol. II. São Paulo, Saraiva, 2005.

3. SALOMÃO FILHO, Calixto. O Novo Direito Societário. 2ª ed., reformulada. São Paulo, Malheiros Editores, 2002.

4. LUCENA, José Waldecy. Das Sociedades Limitadas. 5ª ed. São Paulo, Renovar, 2003.

5. CASILLO, João. “Desconsideração da Pessoa Jurídica”. Trabalho semestral apresentado no curso de pós-graduação (Mestrado) da PUC de São Paulo. RT 528/24.

Revista Consultor Jurídico

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