Luiz Flávio Gomes
SÃO PAULO – As recentes prisões “espetaculares” envolvendo gente famosa (Tranquesi, da Daslu, Schincariol, advogados, petistas, bispos etc.) colocaram na boca de todos os brasileiros (dos informados, claro) uma generalizada indagação: será que finalmente os “poderosos” irão mesmo para a cadeia?
Na ciência criminológica são identificáveis pelo menos quatro grupos retribucionistas ou punitivistas, que crêem (alguns cegamente) na eficácia do direito penal para tudo:
1º) O direito penal como instrumento de dominação ou opressão: há quem acredita que o direito penal seja o único meio capaz de proteger os interesses (das classes) dominantes ou de opressão. O programa novayorquino denominado Tolerância Zero (que nada mais retrata que a criminalização da pobreza) é uma das últimas versões desse movimento, atrelado a uma ideologia de “direita”, conservadora, de origem claramente “burguesa”, que orienta seu discurso para a bandeira do movimento da law and order, que é difundido (desde a década de 70 do século passado) a partir dos Estados Unidos para o mundo todo. A fórmula californiana do three strikes and you are out (pena de prisão perpétua para quem comete três crimes contra a propriedade) bem simboliza a que ponto a irracionalidade (e desproporcionalidade) pode chegar. Produto dessa política repressiva exagerada é o encarceramento de grande parcela da população
2º) O direito penal como instrumento de contrapoder: há um segundo segmento retribucionista que enfoca o direito penal como instrumento de contrapoder (de revanche, de revolução, de transformação da sociedade), concebendo-o como válido para punir e controlar não só (a) as “classes poderosas”, senão também (b) os que detêm uma (qualquer) posição de poder (que lhes permite exercer opressão ou afetar interesses de outras pessoas). O primeiro sub-grupo espelha o movimento do uso alternativo do Direito, que surgiu na década de 70 (do século passado). O Direito penal é inadequado e injusto para os powerless (pobres, marginalizados), somente deve incidir contra os powerful (poderosos). Do segundo sub-grupo (que defende o uso do direito penal como instrumento de transformação da sociedade) fazem parte os novos “gestores da moral coletiva” (atypische Moralunternehmer). Os antigos gestores da moral coletiva eram identificados entre os burgueses-conservadores. Os novos são constituídos por associações de ecologistas, grupos feministas, de consumidores, de vizinhos, “pacifistas”, defensores da não discriminação contra as minorias, ONGs (organizações não governamentais) que defendem direitos humanos etc.. Todos apregoam mais aplicação do direito penal, para a proteção dos seus interesses.
3º) O direito penal como instrumento de estabilização da norma: existe também a corrente (sob a liderança de Jakobs) que encara o direito penal como meio adequado para estabilizar a força integradora da norma penal (a pena teria, então, função de prevenção geral positiva). Sustenta Jakobs que a pena é coação e resposta ao fato criminoso: “o fato, como fato de uma pessoa racional, significa algo, significa uma desautorização da norma, um ataque à sua vigência; e a pena também significa algo, significa que a afirmação do autor é irrelevante e que a norma segue vigente sem modificações, mantendo-se, portanto, a configuração da sociedade. Tanto o fato como a coação penal são meios de interação simbólica”. O direito penal sustentado por Jakobs é, em princípio, prevencionista. Transforma-se em retribucionista quando se converte no chamado, por ele mesmo, de direito penal do inimigo.
4º) O direito penal como instrumento de segurança contra os riscos da sociedade moderna (pós-industrial): uma outra linha retribucionista e expansionista com grande destaque, no momento, é a que supõe que o direito penal seja o único instrumento que possa oferecer segurança contra os riscos da sociedade moderna (pós-industrial ou “sociedade de riscos”, segundo Ulrich Beck). O crescimento econômico, na atualidade, tem sido muito rápido, os avanços tecnológicos são incontestáveis, a evolução técnica (na indústria, na biologia, na genética, na informática, na área nuclear, nas comunicações etc.) é impressionante. Tudo isso traz riscos para convivência humana. A decisão de uma pessoa pode colocar em risco toda uma comunidade ou uma região ou mesmo um país. O Estado não está em condições de controlar todos esses avanços, logo, deve se valer do direito penal para evitar a criação de riscos.
O ponto comum que une todas as correntes retribucionistas que acabam de ser resenhadas tem sua base ideológica no punitivismo, que idolatra o direito penal assim como sua concreta e intensa aplicação. A partir do momento em que, para alcançarem seus objetivos, passam a praticar um direito penal desproporcional e antigarantista, a propugnar por excessivas normas penais para serem aplicadas efetivamente, apregoar o endurecimento desnecessário das penas assim como do regime de sua execução, sustentar cortes de benefícios legais etc., a partir desse instante, convertem-se em defensores do direito penal do inimigo, que busca a criminalização de determinadas pessoas, “custe o que custar”. Abandonam as regras da normalidade, que valem para o “cidadão”, e passam a enfocar o criminoso como inimigo, flexibilizando-se, a partir daí, muitas das garantias penais e processuais.
Nos últimos anos a novidade que vem ganhando corpo a cada momento nessa onda punitivista e antigarantista é a aliança da esquerda com a direita no uso (e abuso) do direito penal. Até por volta da década de 80 do século passado a fórmula (então) vigente era: esquerda política _ demandas de descriminalização; direita política _ demandas de criminalização. A partir do momento em que a esquerda começou a assumir o poder, logo percebeu que político-eleitoralmente era conveniente o discurso punitivista, que conta com apoio não só de grande parcela da população, como também dos meios de comunicação. Descobriu-se que a aprovação massiva de novas leis penais faz parte da bandeira “progressista”. É enorme a rentabilidade do discurso da law and order, que antes era monopolizado somente pela direita. O uso intenso do direito penal deixou de ser tabu para todas as ideologias. A esquerda, que tanto criticava o uso e abuso do direito penal pela direita, transformou-se em esquerda punitiva, pouco se importando com as garantias. De inimigos do regime “de direita” transformaram-se em inimigos do direito penal garantista. É impressionante como o exercício do poder transforma perseguidos em perseguidores, excluídos em poderosos, pessoas com discursos éticos em corruptos etc.
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