O Tribunal do Júri e o (des)respeito aos Princípios Constitucionais

O Tribunal do Júri e o (des)respeito aos Princípios Constitucionais

Percebemos que a separação entre o sistema acusatório e o sistema inquisitório ocorreu no período da Revolução Francesa e seus novos “pensamentos”. Infelizmente, essa separação não foi completa, pois deixou-se nas mãos dos inquisidores a produção do conjunto probatório, permitindo-se que na escuridão dos porões se produzissem as provas, ressaltando-se assim, a ilusão da fase acusatória onde o cidadão teria o direito de se defender com todos os seus “direitos e garantias”. É claro que não se permitiu o direito a ampla defesa na fase inquisitorial, já que, era lá que se produziria a prova que posteriormente, serviria como subsídio para condenar o réu.

No Processo Penal devemos ter claro, que o Ministério Público não é fiscal da lei, atuando no processo como parte formal e imparcial, ou seja, a pretensão da sua atuação é a justiça e a legalidade, mas na prática percebemos o contrário, atuando como órgão acusador e perseguidor. Segundo Aury Lópes Jr., na esfera subjetiva, o Promotor de Justiça deverá esquecer-se de sua personalidade para atuar no processo penal com exatidão e a real intenção de proceder justa e legalmente.

Outrossim, no entendimento de José Guarnieri, o Ministério Público, apesar de possuir o corpo de parte no processo, “oferece a alma de juiz”. Apesar de toda argumentação teórica a respeito da imparcialidade dos Promotores de Justiça, conclui-se que não passa de um órgão acusador, ou seja, parcial, inclinado a encontrar provas contrárias ao imputado. Segundo Francesco Carnelutti, acusar implica uma pretensão penal razoável, e a exigência do castigo de uma pessoa se agrega às razões pelas quais está sustentada a acusação. Antoine Garapon, especialista no campo do ritual, destaca que os membros do parquet atuam no judiciário representando anonimamente a sociedade, e, dispondo de força pública, submetem o acusado ao processo, acusando-o e “clamando por vingança”. É importante destacar os dizeres de Carnelutti, ao afirmar que ao membro do Ministério Público incumbe zelar os interesses da sociedade/Estado no processo penal e, por isso a representa.

O juiz, por sua vez, de acordo com Ana Messuti interpõe-se no processo numa dimensão temporal além da espacial, situando-se entre o crime ocorrido (passado) e a pena (futuro), incumbindo-lhe o rompimento com o binômio ação-reação.

Conforme Amilton Bueno de Carvalho, “entregar ao Leviatã o direito de punir representa evolução às sociedades modernas, porém impõe limites processuais que visam impedir a transformação do poder constituído uma catástrofe tirânica de forças incontroláveis”.

Ainda hoje, ao olharmos nosso Código de Processo Penal percebemos que há contaminação entre a fase inquisitória e a fase acusatória, já que se permite que o juiz vá atrás das provas, autorize escutas e depois as julgue, requisite oitiva de testemunhas de ofício, etc. Seria o chamado juiz inquisidor, que desrespeita a Constituição Federal, que é expressa ao dizer que o mesmo deve ser imparcial. Quando o juiz passa de espectador para atuar no processo, perdemos a imparcialidade.

Lídia Prado na obra “O Juiz e a Emoção”, analisa o arquétipo do juiz e sua importância no ato de julgar, ressaltando a bipolaridade arquétipica dos julgadores. Observa-se que para o ego é difícil suportar a dupla polaridade, ocorrendo muitas vezes a ruptura dos pólos, onde um permanecerá consciente e o outro reprimidamente inconsciente sendo projetado às partes do processo. “Dessa maneira, a possível repressão do pólo do arquétipo pode levar o magistrado a acreditar que o ato antijurídico nada tem em comum consigo: que o mal só existe no réu, fraca criatura, que vive num mundo totalmente diverso do seu.”

Cabe ressaltar que o juiz situa-se entre as partes, ficando acima de qualquer confusão, procurando o equilíbrio entre o acusado e a sociedade. Segundo os ensinamentos de François Ost, o juiz é considerado o “guardião das promessas”, pois aplica aos fatos históricos uma norma previamente estabelecida e “exprime o direito no respeito pela segurança jurídica”. Assim, o juiz deve situar-se numa posição de alheamento (terzietà) no processo penal, ficando totalmente distante dos interesses das partes, respeitando o princípio supremo do processo, qual seja, a imparcialidade.

No Estado Democrático de Direito, o juiz assume uma posição nova “e a legitimidade de sua atuação não é política, mas constitucional, e seu fundamento é unicamente a intangibilidade dos direitos fundamentais”. A principal função do juiz no processo penal é atuar como garantidor “da eficácia dos direitos e garantias fundamentais do acusado”.

O juiz que está seriamente comprometido com os direitos do cidadão, que julga com a razão e com base no direito, determinando que no Tribunal do Júri, as partes – defesa e acusação – tenham as mesmas condições de atuar, é visto pelo órgão do Ministério Público com restrição, com indignação, já que o douto Promotor de Justiça considera-se superior aos advogados, superior até mesmo ao Judiciário, pois julga-se o guardião das leis, como se isso fosse razoavelmente possível.

O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro entrou com medida cautelar no Superior Tribunal de Justiça, exigindo a permanência do assento existente ao lado direito do juiz, que fora removido em um dos julgamentos ocorridos na Vara do Tribunal do Júri da cidade de Arraial do Cabo. O representante do Ministério Público entende que sua posição cênica no mesmo plano do Defensor violaria os princípios fundamentais da garantia de igualdade entre as partes e da imparcialidade do juiz. Ressalta-se o absurdo e a ousadia de tal posição, pois o representante do Ministério Público é parte neste processo e, por isso não teria motivos para clamar pela garantia de igualdade entre as partes, por uma simples disposição física dos atores deste ritual degradante e estigmatizante que chama-se Tribunal do Júri.

A Sétima Câmara do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro indeferiu Mandado de Segurança requerido pelo representante do Ministério Público, considerando que a alteração da disposição das partes na sala do Tribunal do Júri não importaria em violação da prerrogativa funcional do autor. O Promotor de Justiça entrou com novo pedido e o presidente em exercício do Superior Tribunal de Justiça, entendeu haver urgência no caso, haja vista as atividades forenses no Estado do Rio de Janeiro ocorrerem em data anterior ao reinício das atividades normais do STJ, justificando, assim, a manifestação do presidente em exercício sobre a questão. Pois, segundo o presidente, caso o pedido seja analisado a posteriori, o representante do Ministério Público, se verá suprimido de sua prerrogativa funcional de assento à direita do Magistrado no recomeço das atividades forenses. Por isso, foi concedida liminar ad referendum do Ministro Relator, para evitar que a imagem da instituição do Ministério Público, venha a ser publicamente afetada por não sentar à direita do juiz, nas sessões e audiências, do representante do Ministério Público naquele Estado.

Observa-se que ao ingressar com recurso o representante do Ministério Público deixa claro, que sua maior preocupação não é ter o direito de sentar ao lado do juiz, na intenção de acusar melhor por uma simples disposição cênica, mas sim, na veemência de acreditar na sua superioridade perante os atores do ritual judiciário.

A cada dia, nos deparamos com as injustiças praticadas pelo judiciário, que não assume publicamente a parcela de violência ligada a seu exercício.

Assim, ressalta-se que o Advogado Criminalista não quer cadeira e mesa em local de destaque, mas sim, exige que se respeitem os direitos e garantias do cidadão submetido ao processo penal, proporcionando ao acusado um processo com dignidade, sem submetê-lo a uma experiência angustiante e degradante.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CARNELUTTI, Francesco. Lecciones sobre el Proceso Penal. Chile, Bosch y Cia. Editores, v. 1, 1950, p. 191-255.
CARVALHO, Amilton Bueno de. Garantismo Penal Aplicado. Lumen Juris, 2003, 304 p.
GARAPON, Antoine. Bem Julgar: Ensaio sobre o Ritual Judiciário. Lisboa, Instituto Piaget, 1997, 345 p.
LÓPES JR, Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal (Fundamentos da Instrumentalidade Garantista), Rio de Janeiro, Editora Lumen Juris, 297 p.
_____. Juízes Inquisidores? E Paranóicos. Uma crítica à Prevenção a partir da Jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. IBCCRIM. Ano 11 – n. 127, junho de 2003. p. 10-11.
_____. Sistema de Investigação Preliminar no Processo Penal. Rio de Janeiro, Editora Lumen Juris, 2. ed., 2003, 374 p.
MESSUTI, Ana. O Tempo como Pena. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2003, 124 p.
OST, François. O Tempo do Direito. Portugal, Instituto Piaget, 1999, 442 p.
PRADO, Lídia Reis de Almeida. O Juiz e a Emoção: Aspectos da Lógica da Decisão Judicial. Millennium, 2.ed., 2003, 232 p.

Graciela Fernandes Thisen, advogada, especialista em Ciências Penais pela PUC/RS e Mestranda em Ciências Criminais – gracielathisen@terra.com.br.

Fabiano Justin Cerveira, advogado, especialista em Ciências Penais pela PUC/RS e Mestrando em Ciências Criminais – fabiano.justin@terra.com.br.

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Autor: Graciela Fernandes Thisen – Fabiano Justin Cerveira

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