por Nehemias Gueiros Jr
Mal foi concluída a fusão entre duas multinacionais do mercado fonográfico mundial em 2004, e a empresa resultante, Sony BMG Music Entertainment, está vivendo seu primeiro momento de saia justa. Para encerrar uma detalhada investigação sobre “jabá” — conhecido como payola nos EUA, palavra derivada de payment=pagamento e victrola=o venerável aparelho toca-discos de vinil — que vinha sendo conduzida pelo procurador-geral do estado de Nova York, Eliot Spitzer, a atual maior companhia musical do planeta concordou em pagar uma multa equivalente a 10 milhões de dólares.
A Sony é uma das quatro majors da música notificadas pelo procurador americano no final de 2004, como parte de uma extensa investigação sobre os métodos empregados pelo cartel da indústria musical mundial para “fugir” da acusação da prática do “jabá”, ao contratarem terceiros intermediários para influenciar quais músicas são executadas publicamente nas emissoras de rádio (e televisão também). As demais empresas são a Universal Music, Warner Music e EMI Music Group.
O “jabá”, apelido derivado de “jabaculê”, gíria brasileira que significa gorjeta, dinheiro, propina, é a nefanda prática das empresas fonográficas de fabricar artificialmente sucessos musicais nas ondas hertzianas que povoam a atmosfera, através de pagamentos em dinheiro, bens e até prostitutas e drogas a diretores, programadores e DJs das emissoras de rádio.
Em nosso livro intitulado “O Direito Autoral no Show Business – Tudo o Que Você Precisa Saber – Vol. 1 – A Música”, 1ª edição, Gryphus, Rio, 1999, já discorríamos sobre esta prática absurda e imoral, que nivela por baixo o talento e a qualidade dos artistas musicais, fechando as portas ao verdadeiro dom criativo. Desde a década de 60 que o payola é combatido nos Estados Unidos, tendo tornado-se atividade criminosa há quase 40 anos, com multas superiores a 10 mil dólares e até pena de privação de liberdade.
Um dos mais famosos disk-jockeys do planeta, Alan Freed, de Cleveland, Ohio, que cunhou a expressão rock and roll em cima do sucesso de Bill Haley & The Comets “Rock Around the Clock”, terminou sua vida no ostracismo e com dificuldades financeiras, depois de ser condenado pela prática do “jabá”.
Após a criminalização da prática com a promulgação da Payola Law (a Lei do Jabá), as gravadoras, para fugir ao cerco das autoridades, criaram uma espécie de bypass, contratando profissionais divulgadores externos, independentes, que se incumbiam da tarefa de levar e “negociar” os produtos musicais nas emissoras de rádio em troca de benefícios financeiros e materiais. A prática persiste até hoje e dificilmente será totalmente erradicada, mas esta investigação americana chega em boa hora, no sentido de conferir um pouco mais de moral a um mercado já substancialmente abalado pelo advento do download via internet e da pirataria de CDs em escala mundial.
Caso a Sony/BMG efetivamente logre êxito em fechar o acordo de 10 milhões de dólares com a Procuradoria-Geral de Nova Iorque, será o primeiro acordo do gênero no mundo e na história da indústria fonográfica, provavelmente abrindo caminho para ajustes semelhantes com as outras três majors do mercado.
Segundo fontes internas da gravadora ouvidas pelo jornal New York Times, a Sony/BMG, que tem em seu cast artistas do porte de Aerosmith e Britney Spears, se prontificou a modificar sua política chamada de spin programs, que consiste em alavancar músicas através de pagamentos a emissoras de rádio para balizar sua subida nas paradas de sucesso do país (airplay chart buoying). Para fundamentar a aplicação da multa a ser paga, a Procuradoria-Geral americana pretende levar em consideração a posição de mercado (market share) de cada gravadora no mercado nacional.
A investigação levada a cabo nos Estados Unidos começou em setembro de 2004 e notificou judicialmente executivos e diretores das quatro grandes gravadoras, Sony/BMG, Universal Music Group, Warner Music Group e EMI Group, requisitando cópias de contratos, e-mails, notas de pagamentos e correspondência em geral relativos ao relacionamento das empresas com promotores independentes de música, incumbidos de sugerir novas músicas às emissoras de rádio.
Há bastante tempo suspeitava-se que esses promotores independentes repassavam pagamentos em dinheiro e/ou bens de luxo a DJs e funcionários das rádios em troca de veiculação maciça de determinadas músicas. Tais pagamentos violam o estatuto federal americano conhecido como o Payola Law, que proíbe emissoras de rádio e televisão de receberem pagamentos ou valores em troca de execução pública, a não ser que disso publicamente informem os seus ouvintes. Os valores pagos excediam de 100 mil dólares por ano às emissoras radiofônicas.
A execução pública de rádio continua sendo, mesmo na Era Digital do DVD, a mais poderosa ferramenta de divulgação musical para as gravadoras em todo o mundo, inclusive no Brasil.
Como resultado da investigação em curso, todas as quatro grandes (Big Four) distribuíram memorandos internos criando novos regulamentos para promoção de seus produtos musicais, depois que dois importantes executivos foram demitidos das empresas Infinity Broadcasting Corporation (a segunda maior dos Estados Unidos, pertencente à Viacom) e Entercom Communications Corp., por terem aceito benefícios financeiros das gravadoras. Outro desdobramento importante desse processo teve impacto direto na classe dos promotores independentes de música, que não estão tendo renovados os seus contratos com as empresas de rádio desde 2004. Os negócios desse mercado, que já atingiram a cifra de 60 milhões de dólares por ano, começam a enfrentar tempos difíceis, com uma queda estimada em 75% no movimento profissional.
Mas as gravadoras não se fizeram de rogadas e estão preparando sua defesa, lastreadas pela atividade da FCC (Federal Communications Commission), a poderosa agência reguladora americana das comunicações equivalente da nossa Anatel, que somente aplicou uma multa relativa a payola nos últimos dez anos, e mesmo assim, de valor irrisório: 8 mil dólares.
De concreto, fica o nosso aplauso ao procurador-geral do estado de Nova York, Sr. Eliot Spitzer, por trazer mais uma vez à tona — e desta vez de forma contundente — assunto tão delicado e prejudicial ao livre e escorreito desenvolvimento da trajetória econômica das criações musicais no grande mercado. O exemplo deveria ser adotado aqui no Brasil, onde a prática do “jabá” continua mais forte do que nunca, apodrecendo as relações que envolvem os artistas, as gravadoras, a mídia e, sobretudo, o público consumidor, induzido a erro e enganado, sendo levado a acreditar na idoneidade das paradas de sucesso que, na realidade, são literalmente “fabricadas”, para não dizer “compradas”.
Revista Consultor Jurídico