“Não é livro que ensina a governar!”. A pérola, conhecida de todos aqueles que, ao contrário de seu autor, possuem não apenas o hábito, mas o vício da leitura, pode lá ter sua carga de verdade, se apreciada tão somente do ponto de vista literal. Realmente, jamais ouvi falar de qualquer manual de auto-ajuda do tipo “governando seu país sem improvisos”, ou ainda, “governando com estilo: metáforas e álcool não combinam”. Agora, sob qualquer outro ponto de vista, a frase bem reflete a importância que seu autor dá ao saber e à cultura, principalmente levando em conta que tais palavras foram pronunciadas no nordeste brasileiro, por ninguém menos que o presidente da República, numa região com os menores índices de escolaridade de um Brasil que lê pouco e estuda menos ainda.
Em outra ocasião, ao discursar para o público presente na última Bienal do livro, o presidente Lula traçou um paralelo entre “a preguiça desgramada” de andar numa esteira e o hábito da leitura. Justiça seja feita. O tão criticado discurso tinha destinatário certo e a boa intenção de servir de incentivo para as classes mais pobres. Algo que poderia ser usado por um pai que tenta estimular seu filho “preguiçoso desgramadamente” a trocar a bola por um livro. Não é difícil imaginar o provável diálogo: “Filho, lembra do que disse o presidente sobre o hábito da leitura?”. – “E quem se importa?”, responde o filho, -“Ronaldinho não estudou e tem contrato vitalício com a Nike. O presidente não estudou, não gosta de ler, joga bola com ministros na Granja do Torto e tem pensão de perseguido político (?), salário de presidente da República e mesada de presidente de honra do PT”.
É preciso, portanto, para corrigir esse grave distúrbio sócio-cultural, que o presidente da República dê o exemplo, antes de ditar a conduta. Escolha um bom livro, leia e descubra, finalmente, qual a real importância da prática da leitura. E não me refiro a algo do tipo “Harry Potter e a eleição da presidência da Câmara”. É necessário um livro que faça o presidente compreender que sua chegada ao poder não é apenas obra do gênio de Duda Mendonça e de alguns empresários descontentes com a segunda metade do mandato de reeleição do Presidente FHC. Sugeriria a Sua Excelência a obra “O populismo na política brasileira”, do cientista social Francisco Weffort, cortejado ideólogo do partido do próprio presidente, publicado em 1980 pela editora Paz e Terra.
Tomasse conhecimento de minha modesta sugestão e a aceitasse, Sua Excelência aprenderia, por exemplo, que o fenômeno político vulgarizado sob o nome de “populismo” surgiu numa conjuntura em que a estrutura de poder oligárquica entrou em crise, lá pelos anos 30, em razão de as classes dominantes não se sentirem mais capazes de se manter no poder por meio dos procedimentos eleitorais tradicionais. Também aprenderia que tal fenômeno representou uma forma de militância política que envolveu e mobilizou grandes massas, em especial urbanas, do setor operário e da pequena burguesia.
Espantar-se-ia, Sua Excelência, com o conhecimento de que, em tais condições, as camadas mais despojadas da população, juntamente com aquela pequena parcela em ascensão, sentem-se atraídas por líderes populistas que acenam com promessas de abundância distributivista ou de moralidade administrativa, apresentando-se com um perfil paternalista e carismático.
Preocupar-se-ia ao descobrir que o populismo, enquanto ideologia, “revela claramente a ausência total de perspectivas para o conjunto da sociedade”, bem como que “a liderança populista não pode ser totalmente infiel a seus adeptos, sob pena de dissolver-se e desaparecer”.
Pensaria duas ou mais vezes antes de “desafiar” o governo FHC para “debate”, mesmo acreditando que as dificuldades sofridas em 2003 por sua administração teriam sido conseqüência do fato de terem “pegado a Casa depois de um vendaval como aquele que deu na Ásia” (não, o erro não é de digitação, mas, sim, de abstinência da leitura de jornais. Não se confunde, com facilidade, ‘tsunami’ ou maremoto com vendaval).
Conscientizar-se-ia, de fato, que a retirada forçada (a meu ver estratégica) do time de FHC, bem como sua ascensão após três derrotas eleitorais consecutivas, não se deve à sua [presidente Lula] competência administrativa, saber e cultura (?) ou a qualquer antipatia da sociedade brasileira ao intelectualismo do presidente FHC. Deve-se, sim, ao fenômeno do populismo, que se desenvolve numa fórmula bem simples e se submete a condições fáceis de serem identificadas no final do segundo mandato do Presidente FHC e na campanha eleitoral do Presidente Lula. São eles, dentre outros, segundo Weffort:
a) perda da representatividade da classe dirigente e, em conseqüência, de sua exemplaridade;
b) presença de um líder dotado de carisma de massas;
c) encontrar-se o país numa situação em que nenhum dos grupos de poder detém com exclusividade o poder político, necessitando o Estado buscar legitimidade para sua atuação em um novo personagem: as massas populares urbanas;
Outros elementos extraídos da obra de Weffort, já experimentados pela ex-prefeita de São Paulo, Marta Suplicy (ou como preferem os paulistanos, a prefeita “de parar o trânsito”), saltariam aos olhos do presidente Lula e de seus correligionários (da ala governista). São eles:
a) o líder populista ser sempre alguém que se encontra numa função pública ou em evidência, isto é, alguém que por sua posição no sistema institucional de poder tem “a possibilidade de doar, seja uma lei favorável às massas, seja um aumento de salário ou, mesmo, uma esperança de dias melhores”;
b) pressão popular sobre o Estado, marcada pela insatisfação, inclusive de setores relativamente integrados ao processo de desenvolvimento econômico;
c) tal insatisfação ser manipulada por um líder populista;
d) a manipulação das massas pelo Estado encontrar limites nas posições de classe, ou seja, encontrar-se o Estado ou o líder impossibilitado de oferecer “algum grau de satisfação às aspirações sociais concretas derivadas destas posições de classe”, situação em que sua imagem popular começa a se diluir perante a massa.
Ora, qualquer governo que enfrentasse a crise econômica pela qual passou o Brasil no período do Presidente FHC, com a fuga sem precedentes do capital flutuante dos investidores estrangeiros, estaria impossibilitado de atender anseios sociais ou de manter sua representatividade. Curiosa é a postura do governo Lula que, mesmo sem enfrentar crise daquela natureza, ainda assim, não consegue sair do discurso do “tem que”.
Mais que isso, ainda que o presidente Lula e sua equipe não percebam, os setores “relativamente integrados ao processo de desenvolvimento econômico” não suportam mais o aumento na taxa de juros e, para piorar, a derrama tributária recentemente imposta por medida provisória, que já provocou sinais de aumento nas demissões e de repasse das perdas financeiras aos consumidores. Como medida previsível (já que exposta no item “d” acima), tenta o governo manipular o empresariado nacional com a ameaça velada de redução na alíquota de importação, como se o país pudesse suportar as conseqüências de tal ato.
Para resumir a história, já que falece competência a um simples professor universitário para dar aulas ao presidente da República, mormente quando tal presidente foi diplomado pela London School of Economics e por outras universidades federais Brasil a fora (em que pese o discurso populista no dia de sua diplomação pelo Tribunal Superior Eleitoral, no qual afirmou ser o diploma de presidente da República seu primeiro diploma, como se o referido diploma tivesse validade acadêmica ou como se Deputado Federal, mandato por ele já exercido, não fosse diplomado pela Justiça Eleitoral). É preciso ler mais.
Aliás, tal sugestão, aqui partida de um simples brasileiro que se orgulha de ter tido um intelectual no maior posto político do país, já foi apresentada recentemente pelo presidente FHC, ao afirmar que “Ele [presidente Lula] precisa ler mais sobre a história do Brasil. Devia ter mais prudência no que diz, porque podem cobrar incoerência da parte dele”.
Acatando a sugestão do presidente FHC e estudando a obra aqui mencionada, o presidente Lula poderá determinar a seus assessores que atentem, quando da elaboração de discursos e de políticas públicas, para as limitações decisivas do populismo, que são, a saber; a necessidade de habilidade pessoal e eficácia do líder populista para atuar como árbitro entre os grupos dominantes, equilibrando as forças sociais em conflito e a administração da pressão advinda das crescentes reivindicações das massas populares (classe média, classe operária e sindical, movimento dos sem-terra, dos sem-teto, dos sem-universidade, dos sem-comida, dos sem-tudo, etc…)
É certo que a transferência do homem do campo para as cidades é a verdadeira “revolução individual”, na medida em que abre a possibilidade da ampliação do consumo pela conquista de um emprego urbano e pela conquista de sua cidadania social e política. Atento a isso Vargas implementou a legislação trabalhista para o trabalhador urbano, garantindo a manipulação do grupo expressivo politicamente, sem, contudo, desagradar aos grandes proprietários de terras. A fórmula mágica de Vargas sequer ganhou atenção no governo populista do presidente Lula, em que pese a promessa de uma verdadeira reforma na legislação trabalhista.
Perdida em meio à própria incompetência, a administração federal petista, a exemplo do que se viu em suas administrações municipais, mais parece um caminhão de mudanças daqueles em que o seguro se faz obrigatório (peço vênia pela metáfora, mas se o presidente pode…). Apenas um pequeno inventário da bagunça: reforma tributária pró-fisco, reforma trabalhista com ministro sem expressão, reforma política sem consenso no próprio partido, reforma educacional pró-ignorância, expulsão de jornalista, expulsão de correligionários, reverências a ditadores, retrocesso na diplomacia e mais de uma dezena de gafes nacionais e internacionais.
Caso escolha o caminho da leitura e do estudo, o presidente Lula poderá descobrir, ao ler Weffort, que reformas de estrutura não são compatíveis com o regime populista, pois fazem com que o compromisso social que o suporta seja condenado por todas as forças que o compõe.
Restará, assim, condenado pela direita e pela classe média que se aterroriza ante a pressão popular crescente; pelos grandes proprietários assustados com o debate sobre a reforma agrária e com a mobilização das massas rurais, diante de um presidente que usa boné e chama invasor de “companheiro”; e pela burguesia industrial temerosa também da pressão popular e já vinculada aos interesses estrangeiros.
Sempre é bom refletir sobre as experiências do passado. Ignorar os fatos e a invenção da escrita só colabora com o retrocesso. Ainda bem que o PT mantém essa postura quase que como uma ideologia de seus expoentes. É o que garante a abertura no caminho da sucessão presidencial, tão aguardada por quem realmente conhece e aprecia o valor da leitura.
Advogado e professor universitário em Brasília/DF
Pós-graduado em Direito Processual Civil
Mestrando em Direito das Relações Econômicas Internacionais – PUC/SP
Autor do livro “Protagonismo político dos juízes: risco ou oportunidade?”
www.vfsdadvogados.com.br
erickvidigal@uol.com.br
Autor: Erick Vidigal