Pompeu de Sousa Brasil
juiz Federal titular da 3° Vara da Seção Judiciária da Bahia
1.DIFICULDADES ATUAIS
Desde a instalação dos Cursos Jurídicos em São Paulo e Olinda (março e maio de 1828), afora alguns momentos pontuais de reformas e aprimoramento dos currículos de Direito, não se registra tamanha ebulição no tema como nos dias que correm. É que, refletindo os anseios por mudanças, despertados, decerto, pela emblemática virada de milênio, muito se tem falado sobre os problemas das instituições de ensino superior na área jurídica, impulsionado o debate por algumas premissas a saber: (a)deficiência da formação acadêmica, entornando profissionais não perfeitamente qualificados no caldeirão do mercado de trabalho, ora condenando-os à pura e simples exclusão, ora submetendo os eventuais usuários dos serviços a riscos desnecessários, ora comprometendo a administração pública – já que esta absorve naco importante dos integrantes das carreiras jurídicas -, dentre outras mazelas; (b)gradual sucateamento das instituições públicas(as Federais), relegadas a plano menor dentre as prioridades nacionais, donde inevitável a desmotivação dos professores – pessimamente remunerados -, a degradação física de instalações e equipamentos, e os reflexos disso tudo no corpo administrativo, abrindo espaço para desvios imanentes às vicissitudes do serviço público, permitindo vicejar irregularidades administrativas, que por sua vez geram desperdícios, nepotismo, impunidade, etc; (c)prodigalidade no surgimento de novos cursos, proliferando instituições particulares de norte a sul, nem sempre com a qualidade que deveriam envergar para o exercício delegado de munus tão essencial para a sociedade.
Pois bem, virou moda apregoar os problemas ao norte, como se do repisar constante do assunto pudessem brotar espontaneamente as soluções. Assim não vejo, e assim não quero alinhar-me, até porque todas as cores desse drama já foram muito mais e melhor perscrutadas, em todos os níveis, no ambiente acadêmico e fora dele, no espaço das instituições governamentais que absorvem mão-de-obra jurídica, no Governo, no Congresso Nacional, enfim, nos mais representativos foros da comunidade brasileira.
Então, já que é redundante gizar o espectro desanimador do quadro que aparentemente prenuncia a decadência definitiva do ensino e da pesquisa jurídica no País, permito-me investigar o que pode existir de bom e alvissareiro, já que, ancorado no maniqueismo que desde tempos medievos orienta o homem, acredito que o mal geralmente se aloja na ótica negativa lançada sobre o objeto, e não neste, que sempre haverá de ter algo de bom, embora oculto, bastando porém lustrar um pouco para se lhe arrancar o musgo e contemplar algum brilho.
2.DAS CAUSAS
É certo que as transformações pelas quais têm passado o País e o mundo contribuem para ampliar a defasagem de uma ciência que, em termos de metodologia e diretrizes epistemológicas, pouco tem evoluído do Século passado para cá. Bem de ver, o Direito continua fincando sua razão de ser e sua dinâmica na concepção positivista dos ideais do Estado liberal, conformando-se em traduzir para a norma os valores que o ente estatal resolve, por sua classe dominante, eleger como adequados e justos.
Ora, o conhecimento jurídico não se resume na dogmática cega, desprovida de qualquer elemento teleológico voltado ao bem comum. Embora isso, o que se vê hoje em dia é a acomodação das escolas que apenas assumem o compromisso conteudista, relegando outros aspectos que cada vez mais se fazem imprescindíveis na formação do profissional da área jurídica. Onde a formação humanista? Que é feito das disciplinas que poderiam trabalhar outras searas fundamentais(ligadas à ética v.g.)? Por que confinada a abordagem em sala de aula em exercícios meramente explanativos, usando do arcaico modelo da aula-conferência, por sua vez exaurida e defasada numa sociedade que interage na velocidade da internet?!
O prof. ÁLVARO MELO FILHO, em livro cuja primeira edição circulou ainda nas águas de 1977(disponho da 3, de 1984, donde pinçado o trecho), já assinalava que a necessidade de se dinamizar e reformular o ensino jurídico decorre, por exemplo, da concretização da função humanizadora imposta ao Direito a cada dia, apesar de persistir no mundo moderno uma tendência filosófica que tem suas raízes na concepção de Descartes, com a sua noção das idéias claras e distintas e de uma ciência construída geometricamente(1). Essa tendência – o próprio autor citado explica mais adiante – não é benéfica ao Direito, pois que este arrasta elementos afetivos e volitivos, ou seja, o raciocínio jurídico é sempre contaminado de palpitações da vida e pelas ondulações afetivas, daí porque a simples dedução e a lógica demonstrativa das matemáticas se tornam inadequadas à solução dos problemas jurídicos.
E não se pense que a advertência acima é nova(vinte anos atrás podem ser considerados recentes dependendo do referencial). Em obra atualíssima, que já se propunha a analisar o novo currículo dos cursos de Direito estabelecido a partir da Portaria 1.886/94 do MEC, HORÁCIO WANDERLEI RODRIGUES citou o discurso proferido na aula inaugural da Faculdade Nacional de Direito(Rio de Janeiro), em 1955, por SAN TIAGO DANTAS que, por aquela época, diagnosticava o problema da educação jurídica sob dois enfoques: como uma projeção do problema geral geral do ensino superior e de todo o sistema educacional, e, como um aspecto da própria cultura jurídica. Daí cunhou para a posteridade: O ponto de onde, a meu ver, devemos partir, nesse exame do ensino que hoje praticamos, é a definição do próprio objetivo da educação jurídica. Quem percorre os programas de ensino de nossas escolas, e sobretudo quem houve as aulas que nelas se proferem, sob a forma elegante e indiferente da velha aula-douta coimbrã, vê que o objetivo atual do ensino jurídico é proporcionar aos estudantes o conhecimento descritivo e sistemático das instituições e normas jurídicas. Poderíamos dizer que o curso jurídico é, sem exagero, um curso de institutos jurídicos, apresentados sob a forma expositiva de tratado teórico-prático(2).
Impressiona tanto a atualidade da avaliação realizada cinquenta anos atrás, como a inquietante falta de resultados posteriores ao pronunciamento do velho ministro. Aliás, de lá até então, além de esporádicas reformas curriculares quase nada inovou-se em resposta àquela já denunciada crise na educação jurídica. Continuaram as aulas-conferência e o ensino estreitamente legalista, apesar de, reconheça-se, uma nova visão crítica pedagógica ter passado a exigir o aprimoramento do raciocínio jurídico, bandeira mais agitada do que propriamente posta em prática.
Vários outras causas, além da crise na educação jurídica, poderiam ser ainda perfiladas nesse breve estudo. Ainda tomando como marco o evento acima, repare-se que outra tônica do período foi a proliferação de cursos particulares, notadamente nos últimos trinta anos. Tratou-se, todavia, de uma expansão necessária, a menos que a intenção seja manter a formação jurídica como privilégio de uma elite, qual ainda estivéssemos no tempo dos cursos de São Paulo e Recife(que logo sucedeu o curso originariamente instalado em Olinda). Costuma-se citar, ainda, a questão das falsas expectativas dos que procuram os cursos de Direito: advogados que pensam encontrar autonomia profissional e quase sempre tornam-se empregados; busca de um ideal de justiça, cedo fadada à desilusão ante a clara vocação da legislação vigente, flagrantemente orientada pelos interesses da classe dominante; estabilidade e segurança financeiras, atributos cada vez mais dissociados da realidade dos que, por exemplo, logram obter aprovação em rigorosos concursos para carreiras como a magistratura e ministério público(nessa questão específica, que dizer dos juizes federais, na iminência de uma paralisação por absoluta e dramática falta de condições de manutenção de um padrão de vida há muito solapado, aviltado, definido por um orçamento doméstico que não mais permite cortes e supressões?).
Restrinjo-me, porém, às razões acima para tentar explicar os infortúnios cuja profilaxia e solução não resisto em de logo focalizar.
3.DOS SINAIS ANIMADORES
De prima assevero, e ninguém irá negar, que jamais a carreira jurídica despertou tanto interesse nos jovens, incorporando-se temas pertinentes no dia-a-dia dos cidadãos, induvidosamente mais bem conscientizados de suas garantias constitucionais – o que ocasiona efeito semelhante em relação às obrigações geradas pela convivência em sociedade. É a carreira do momento, descortinando leque de opções dificilmente igualado por qualquer outro setor profissional. Aliás, há muito isso não é novidade. Novo, mesmo, é o grau de politização e conscientização das massas, que, bem ou mal dirigidas, possuem noções mínimas a respeito de seu posicionamento nos conflitos interpessoais ou mesmo de direito público, quer protagonizem, quer apenas assistam a tais conflitos. Isso constitui, inequivocamente, um dado positivo.
Todo esse interesse tem obrigado aos Órgãos Governamentais que também elaborem uma agenda de atuação em derredor do assunto, haja vista as recentes investidas no campo da avaliação de cursos jurídicos, atribuição de conceitos, fiscalização de novos cursos e de outros não tão novos, tradicionais até, porém descuidados no zelo por seu trabalho contemporâneo. Na esteira dessa cobrança foi que o MEC, em março de 1993, nomeou uma Comissão de Especialistas cuja finalidade era apresentar propostas concretas de solução para a crise que o ensino jurídico atravessa.
Os frutos vieram e, em dezembro daquele mesmo ano, realizou-se o Seminário Nacional dos Cursos Jurídicos, em Brasília, que aglutinou a presença de delegados oriundos das mais diversas regiões e instituições do País, além de propostas compiladas após a realização de encontros regionais anteriores. Dos quinze tópicos elaborados como diretrizes a serem perseguidas, antolha-se-me oportuna a transcrição de um deles, o Terceiro – dada a similitude com as reflexões aqui anotadas -, que preconiza: É necessário proporcionar ao acadêmico embasamento humanístico, com ênfase em disciplinas como Filosofia Geral, Filosofia do Direito, Sociologia Jurídica e outras matérias fundamentais e interdisciplinares, a exemplo de Sociologia Geral, Teoria Geral do Direito, Hermenêutica, Economia, Metodologia Científica, História do Direito, Português e Linguagem Jurídica, fundamentos da Ética Geral e Profissional(3). Além dessa preocupação básica, a interdisciplinaridade, carga horária mínima de 3.300 horas, necessidade de apresentação de monografia ao final da graduação, ênfase às disciplinas práticas e profissionalizantes, interação com a comunidade, especializações temáticas, dentre outros aspectos de inolvidável importância, todos puderam ser retrabalhados e inseridos na Portaria 1.886/94 do MEC que instituiu o Novo Currículo Mínimo dos Cursos Jurídicos.
O certo é que não lembro instante na história recente em que tanto se questionou sobre os problemas e soluções do ensino jurídico, vindo a reboque a indagação sobre o grau de excelência desta ou daquela escola, a titulação do corpo docente, o nível de proficiência de seus alunos, e por aí vai. O que antes era restrito ao hermético mundo das cúpulas acadêmicas hoje é tema de debate de jovens que ainda vão prestar vestibular(sobre este último, registre-se, inovações hão de vir proximamente, quiçá fazendo-o desaparecer, em troca de avaliações curriculares que abranjam a história letiva do aspirante à universidade). A busca de um critério de acesso mais racional também não deixa de ser uma manifestação decorrente da mesma perplexidade que orienta este artigo, e que, de resto, acrescenta uma esperança de melhoria.
4.DESMITIFICANDO DOGMAS – AS IES FEDERAIS
Desmontando aquelas premissas tão usualmente agitadas hoje em dia, começo por reconhecer que as IES públicas estão, de fato, desprestigiadas; os professores, em sua maioria, não ganham o que merecem e não recebem estímulo à pesquisa, à produção científica. As destinações orçamentárias não bastam sequer à manutenção do aparato físico, que se dirá do investimento indispensável ao avanço sobre o que é novo ao conhecimento humano. Padecem, sim, as IES, de problemas inerentes ao âmbito administrativo. Oportuno mencionar LE GOFF, que em conversações com MARC HEURGON, reclama a atenção para o peso administrativo da universidade impedindo o exercício das atividades de criação e de pesquisa, destacando, por outro lado, o sentido de ensinar aos alunos as pesquisas em curso e não apenas organizar disciplinas para um ensino desvinculado do fazer(4).
Afora isso, impõe-se, lamentavelmente, registrar certa acomodação dos docentes – quiçá tangidos pela política remuneratória da classe – à qual aderem incautos estudantes, celebrando o que costuma-se chamar hodiernamente de pacto da mediocridade, conjugando interesses absolutamente dissociados do que de fato deveria orientar uma e outra banda do processo. Para infortúnio da comunidade acadêmica, embora a necessidade de concurso público seja determinante para a manutenção de um nível elevado de profissionais, existem falhas no sistema(falo em tese, insisto em enfatizar), marcados por dirigismo em alguns certames, excesso de contratações temporárias – que em alguns casos deixam de ser exceção e passam a constituir a regra no quadro de professores de uma instituição, desestímulo à titulação, etc.
Todavia, na contrapartida deste cenário(que não é imutável, bastando mudança de orientação político-administrativo-principiológico no trato respectivo), gozam tais instituições de tradição inalienável, que a ninguém é dado expungir ou conspurcar. Alinham os grandes nomes da cultura jurídica entre os seus egressos; portam, nas Congregações, ícones do Direito pátrio, testemunhos de um passado pejo de personalidades que, não raro, amalgamaram a própria história republicana. Quem poderá lhes tirar o gáudio da formação dessas pessoas? Quem lhes arredará o galardão de ter acontecido, sob suas arcadas, a evolução do pensamento social e humanístico nesta parelha de Séculos? Qual sortilégio, enfim, fará desaparecer o peso de uma reputação de muitos anos, palmilhada a custa de recrutamento extremamente seletivo(tanto docente como discente)?!
Ocorre-me, agora, fato recente nas hostes baianas, quando próceres do Ministério da Educação(ou pelo menos a tradução dada por segmentos da imprensa local) anunciaram os riscos de fechamento da UFBA, conquanto não fora satisfatório o resultado das avaliações processadas pelas comissões constituídas pela Pasta Ministerial, em cotejo com o resultado pífio de parte do alunado no vulgo provão. Não explicaram, contudo, que um boicote dos formandos ensejou a entrega de provas em branco, e que tal fato, certamente, contribuiu para a seqüência de conceitos Então ardorosamente acenados pelos detratores de uma das mais tradicionais escolas de direito do País; não esclareceram, ainda, que ladeando tais conceitos negativos sobrepunham-se tantos outros conceitos A alusivos aos níveis de titulação e proficiência docente. Indaga-se: a quem servem ditas interpretações tão precipitadas quanto lançadas em erronia no debate noticioso sempre ávido por crises e ruir de impérios?!
Não, que não se deixe a opinião pública conduzir-se por ótica tendenciosa, obediente a interesses escusos. Milita em favor das IES Federais, como dito antes, a reputação avalizada pelo passar de muitas décadas de bons frutos. Têm seus problemas, é claro, mas que não interferem nem anulam suas virtudes. O maior deles – e aqui ouso manifestar opinião estimulada por algo que nunca compreendi satisfatoriamente – é o paradoxo de estar reservado o acesso das instituições públicas, portanto subvencionadas pelo Erário, às classes mais abonadas, que puderam custear colégios de elite e cursinhos invariavelmente inalcançáveis por alguém oriundo da escola pública de nível médio. Identifico neste fato a grande contradição que atualmente envolve as universidades públicas, e que, de qualquer forma, surge como consequência de um fator exógeno, ligado à questão macro da Educação no Brasil.
5.E AS PARTICULARES, QUE TÊM A OFERECER?
Adotou-se o vezo, marcado por certo pedantismo ostentado por educadores ou mesmo alunos de faculdades públicas, de se emprestar injustificável sentido pejorativo à carga semântica do termo universidade particular. Não é correta, porém, tal perspectiva. E aqui empresto toda ênfase e repúdio ao preconceito odioso que se costuma praticar nesta quadra. Não se nega o fato, ensejado por descontrole administrativo ou ineficiência governamental(leia-se MEC e Conselho Federal de Educação), da multiplicação de instituições de ensino superior nas últimas três décadas, sendo os cursos de Direito, face à procura crescente, a menina dos olhos de quem se aventura na empleitada seriíssima que é criar uma nova IES. A irresponsabilidade oficial, portanto, é que permitiu vicejar toda sorte de empreendimentos, muitas vezes visando o puro resultado mercantilista do setor, outras embaladas por aspirações políticas(neste último caso, envolvendo até as instituições públicas, desmembradas de seus núcleos principais para alcançar pólos regionais nem sempre aparelhados, humana e materialmente, para receber um curso de terceiro grau), e outras por motivos mais inconfessáveis ainda, que me dispenso de relacionar.
Entretanto, a incapacidade das IES oficiais de absorver a demanda, a estagnação de suas possibilidades, enfim, os efeitos danosos daqueles fatores antes tangenciados, cederam espaço que necessitava ser preenchido, sob pena, como dito antes, de restringir a esperança do diploma à reduzidíssima elite que tinha condições de custear caríssimos cursos preparatórios para concursos vestibulares cada vez mais seletivos. A primeira conclusão positiva a respeito das instituições particulares é, então, que são absolutamente necessárias, complementando o ensino e formação que o Estado, ineficaz, não consegue assegurar em sua plenitude.
Por outro lado, rejeite-se, enfática e ostensivamente, que são todas irmanadas em orígem escusa ou propósitos menos nobres. Experiências no Brasil todo comprovam o nível que podem atingir, até superando, em muitos aspectos e em alguns casos, as insuspeitas Federais. Aqui abro um parêntese para prestar testemunho de experiências vencedoras, inspiradas em ideais de aprimoramento e devoção à educação, vocacionadas ao fomento da pesquisa e ao estudo, levadas a cabo em Fortaleza, Salvador e, especialmente Teresina. Em relação a estas duas últimas capitais contenho impulso à auto-proclamação de suspeição: naquela por ter recentemente sido convidado para engajamento em processo de credenciamento de novo curso de Direito(como professor, obviamente), e nesta última, cidade de minhas saudades mais ternas, por ter lecionado em instituição particular que tão bem se encaixa entre os exemplos positivos retro-elencados. Apresso-me a fechar o parêntese, senão começará a vazar do coração as lembranças e sentimentos hauridos em quase cinco anos vividos entre as águas escuras do Poti e a silhueta majestosa do Velho Monge, entre amigos verdadeiros(como aquele que oportunizou-me participar, com estas mal-traçadas linhas, de iniciativa pioneira da SJ/PI) e povo cordato e bom, essencialmente bom, com quem tanto aprendi e ainda, mesmo de longe, continuo a aprender.
Volvendo ao assunto das IES particulares, tenha-se em mente que nada é mais seletivo do que o próprio mercado – e não se pense que esta assertiva é destacada de um discurso neoliberal, termo muito em voga ultimamente, via de regra de emprego inadequado -, a fortiori quando o usuário tem pela frente inexorável silogismo: disputarei espaço num mercado saturado, envolvido em crise global de oportunidades e postos de trabalho; logo, necessito de formação profissional que me torne, ao menos, competitivo. Ora, pode o aspirante a uma vaga na faculdade de Direito olvidar essa lógica? E o próprio mercado de trabalho – que tende a se tornar cada vez mais impessoal, compreendendo apenas a linguagem da eficiência, e não do sobrenome ou dos metais -, vai desatrelar-se desse raciocínio para desconsiderar a formação acadêmica do iniciante na carreira? Penso que não.
Então, que reste abolida de uma vez por todas aquela idéia pré-concebida sobre o que é bom ou ruim ancorada exclusivamente em tradição ou dificuldade de passar no vestibular. A ordem do dia confina-se no significado das expressões eficiência, qualidade de ensino, excelência educacional. Se uma escola de Direito reúne estes predicados, a procura por seus serviços será grande, o que tornará também difícil o seu acesso, pouco importando se pública ou particular. Suas vagas serão disputadas por quem vislumbra a realidade clara de um mercado de trabalho que já não se satisfaz com a qualificação meramente formal, simbolizada por um canudo. E, de escolas desse jaez, já são muitos os exemplos, como dito antes. Aos críticos contumazes das instituições particulares, portanto, a advertência: cuidem do padrão de ensino de suas próprias instituições; mantenham-nas dignas de um passado certamente valoroso, condicionado, porém, por um futuro temerário se se descuidar da qualidade e eficiência; notem o que aconteceu com a escola pública de ensino médio, e ponham as barbas de molho.
6.DAS CONCLUSÕES
O que foi apontado nessas linhas ligeiras, recorde-se, principiou com a enunciação de três graves constatações acerca do ensino jurídico atual. A primeira delas voltada ao aspecto epistemológico, do que reclamou-se a inadequação do exercício do mero debruçar positivista da Ciência do Direito, incomportável na complexidade das relações sociais, não mais passíveis de serem pautadas em simplória exegese do direito positivo em vigor. Nesse passo, assinalou FRANCO MONTORO, até há pouco entre nós: A formação jurídica não se confunde com o simples conhecimento de leis vigentes, para a sua aplicação mecânica aos casos concretos. Essa formação legalista pode convir à figura ridícula de um João das Regras, decorador de textos e autômato na sua aplicação. A formação jurídica, objetivo fundamental do ensino do Direito, é outra coisa(5).
Em par com a dita censura, a denúncia do modelo aula-conferência coimbrã, expressão pinçada da fala do inesquecível SAN TIAGO DANTAS, que já em meados do Século reclamava atenção para o problema, augurando a importância de não se manietar o raciocínio jurídico do alunado, aferrando-o a fórmulas pré-concebidas de aprendizado, deixando-o liberto para a pesquisa independente, o debate, a participação, enfim, para a criação, como forma de exercitar e nutrir o senso axiológico do Direito.
O advento da Portaria 1886/94 do MEC anuncia avanços nesse campo, ainda que a mudança principal deva acontecer na mentalidade do corpo acadêmico. Nota-se a presença, entre as chamadas disciplinas fundamentais, de títulos tendentes ao treino do raciocínio jurídico, à formação do profissional do Direito desapegada da linha de assimilação de códigos e artigos enfileirados, absorvidos sem qualquer exercício crítico ou dialético(tenha-se como exemplo a introdução da cadeira de Filosofia, sob angulação geral e jurídica, ética e profissional). Isso dentre outros aspectos positivos, como a obrigatoriedade de destinação de cinco a dez por cento da carga horária total do curso para atividades complementares, incluindo pesquisas, seminários, monitoria, extensão, etc(art.4), a concentração em áreas de especialização a partir do 4 ano(art.8), a obrigatoriedade, para conclusão do curso, da defesa de monografia final perante banca examinadora(art.9), estágio de prática jurídica com um mínimo de 300 horas de atividades práticas, etc.
Que se comece, pois, obdecendo à Portaria 1886/94, que enverga em si a legitimidade de ter sido precedida por amplo debate no seio das IES jurídicas dos diversos quadrantes do país.
Quanto ao sucateamento das Federais, repristino o que dito alhures sobre sua inalienável tradição, sua história, a riqueza do material humano que possui, que pode e deve lutar, escorado no reconhecimento público de seus predicados, por tratamento condigno do Estado. Lamentavelmente não bastam boa vontade e sacrifícios pessoais para sensibilizar o trato político da questão. Que se use, então, dos meios disponíveis, legítimos num país que se pretende democrático, buscando de congressistas e políticos a atenção para o debate que cerca um dos maiores patrimônios nacionais, consubstanciador da cultura e do intelecto dos grandes juristas que ornamentam as galerias das Faculdades de Direito das Universidades Federais. Mãos a obra, gente. Lembrem do ensino de HENRY SOBEL, rabino radicado em São Paulo: melhor acender uma vela do que maldizer a escuridão.
Por fim, fechando a tríade de problemas escalonados no início – e para que não se deixe nenhum sem resposta – vem a questão da proliferação de novos cursos de Direito.
É fato. Só no Estado de São Paulo contam-se cerca de duzentos cursos. Mas já se disse aqui que o mercado saberá impor sua seletividade, defenestrando as más instituições. Porém, não é o bastante, já que existem também os maus alunos, potenciais signatários daquele pacto de mediocridade antes mencionado. Algumas propostas, então, sem prejuízo do que já explanado em relação aos problemas anteriores(reorientação principiológica, mudança no modelo tradicional das aulas-conferência, ênfase ao desenvolvimento de senso crítico e lógica jurídica por parte do alunado e abandono da literalidade positivista), podem ser esboçadas.
Avulta, de logo, a necessidade de aprimoramento dos critérios de aprovação, ou credenciamento pelo MEC, afastando-se de qualquer ingerência política, e buscando, no âmbito da aferição pedagógica, voltada à área, a base para a formulação de requisitos sérios, inarredáveis. Há os que defendem, ante o excesso atualmente verificado, a simples interrupção dos credenciamentos. Assim não vejo, porque iniciativas sérias poderiam ser obliteradas injustamente, privando a comunidade sequiosa por bons cursos. Que se continue credenciando, mas aferindo cum grano salis os requisitos indispensáveis a uma escola de qualidade, restringindo o aumento do número de vagas e, paulatinamente fechando, sim, fechando, as instituições descompassadas com o perfil mínimo que é razoável de se exigir.
Devem os novos cursos e os já existentes submeterem-se a um programa constante de avaliação, não só em relação ao aproveitamento final do corpo discente, mas dos próprios professores, que devem envergar titulação mínima, oferecer resultados de extensão e pesquisa, enfim, demonstrar devoção e interesse para com o ensino, que não pode significar apenas um bico para profissionais doutra seara, mas, até para estes, ocupantes de cargos estranhos ao magistério, que enverguem com a mesma seriedade a missão de extrema responsabilidade que é lecionar disciplinas jurídicas.
Que se dissemine, por fim, a prática do concurso para professores, mesmo em instituições particulares, cabendo no caso destas, quando muito, dispensar de exame seletivo tradicional juristas renomados, reconhecidos no meio acadêmico-doutrinário, valendo a presunção de qualificação decorrente dos títulos efetivamente ostentados.
Quedo-me convicto de que a adoção dessas diretrizes – felizmente sinalizadas na normatização recente do MEC e compreendidas pelo meio acadêmico – contribuirá para que, em futuro não muito distante, já se tenha a percepção de resultados no concerto das atividades forenses ou de alguma forma ligadas à ciência jurídica.
Notas
1. MELO FILHO, ÁLVARO – Metodologia do Ensino Jurídico, 3° ed.,Editora Forense, 1984, p. 05.
2. RODRIGUES, HORÁCIO WANDERLEI – Novo Currículo Mínimo dos Cursos Jurídicos, Editora Revista dos Tribunais, 1995, p. 11.
3. RODRIGUES, HORÁCIO WANDERLEI – Novo Currículo Mínimo dos Cursos Jurídicos, Editora Revista dos Tribunais, 1995, p. 56.
4. LE GOFF, JACQUES – Uma Vida para a História (Conversações com Marc Heurgon), trad. de JOSÉ ALUYSIO REIS DE ANDRADE, 1 ed., Editora UNESP, 1998.
5. Apud MELO FILHO, ÁLVARO – Metodologia do Ensino Jurídico,3 ed.,Editora Forense, 1984, p. 17.