Aguinaldo Allemar
Professor na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, Mestre em Direito (PUC-SP) e doutorando em Análise e Planejamento Ambiental (UFU-MG)
Em 2003, manifestei minha preocupação com a proliferação desmedida dos cursos de Direito no Brasil (Darwin, Smith e o Direito, Correio Braziliense, de 23/05/2003 – http://www.allemar.prof.ufu.br/Darwinsmith2.htm). Coincidência ou não, em fevereiro de 2004, o MEC anunciou a suspensão das homologações de novos cursos de Direito. O objetivo final do Ministério era criar condições para que fossem elaboradas novas regras para a autorização de abertura de novos cursos. Uma comissão de notáveis foi instituída para decidir sobre essas “novas regras”. O trabalho dessa Comissão ainda não terminou.
Mas o que nos traz aqui é a pós-graduação no curso de Direito. A CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) acaba de divulgar a avaliação 2004 dos cursos de pós-graduação no Brasil. Esta avaliação corresponde ao triênio 2001-2003.
O tema é oportuno porque em 2005 completa-se 40 anos que, pela primeira vez no Brasil, no âmbito do Ministério da Educação, definiu-se o que é pós-graduação (lato e strictu sensu) e o que se deve entender por mestrado e doutorado.
Ao contrário dos cursos de graduação, os cursos de pós-graduação em Direito no Brasil (reconhecidos pela CAPES), são poucos, mas da mesma forma que aqueles, muito mal distribuídos. Isto porque, dos 46 cursos avaliados, 35 estão nas regiões sudeste (SP com 11, RJ com 7, MG com 3, ES com 1) e sul (PR com 6, SC com 2 e RS com 5). A região norte possui apenas dois cursos (ambos no PA), a centro-oeste possui três (GO com 1 e DF com 2) e a região nordeste possui seis (BA, PB, PE e RN com 1 curso cada e o CE com 2 cursos).
Dos cursos que oferecem mestrado e doutorado, nenhum obteve a nota máxima (sete), mas quatro obtiveram nota 6, que indica “nível de excelência, desempenho equivalente ao dos mais importantes centros internacionais de ensino e pesquisa, alto nível de inserção internacional, grande capacidade de nucleação de novos grupos de pesquisa e ensino e cujo corpo docente desempenhe papel de liderança e representatividade na respectiva comunidade”.
Dos cursos que oferecem apenas mestrado, nenhum obteve a nota máxima (cinco), mas dez obtiveram nota 4, que indica “bom desempenho”.
Quatro cursos (1 em GO, 1 no RJ e 2 em SP), todos apenas de mestrado, obtiveram nota 2, que indica “desempenho fraco, abaixo do padrão mínimo de qualidade requerido. Os programas com esse nível de desempenho não obtêm a renovação do reconhecimento de seus cursos”.
Nossa maior preocupação é com o que fazem do título, os titulados. E neste estudo, toda vez que nos referirmos à pós-graduação, estaremos nos referindo somente ao mestrado acadêmico e ao doutorado.
O grande objetivo da pós-graduação é, no nosso sentir, tirar da universidade o caráter apenas ensinante e formador de profissionais, para incentivar as atividades de pesquisa científica. Nesse rumo, a universidade se vê destinada, conforme expresso no Parecer nº 977/65, da CESu, “não somente à transmissão do saber já constituído, mas voltada para a elaboração de novos conhecimentos mediante a atividade de pesquisa criadora”.
Já na década de sessenta, o Ministério da Educação sinalizava, como justificadores para um programa sério de pós-graduação, dentre outros: 1) formar professorado competente que possa atender à expansão quantitativa do nosso ensino superior garantindo, ao mesmo tempo, a elevação dos atuais níveis de qualidade e 2) estimular o desenvolvimento da pesquisa científica por meio da preparação adequada de pesquisadores.
É fato que muitos se contentam com a graduação. Isto pode se dar em função de já terem um emprego e o curso superior servir apenas para sua progressão interna na empresa, para alguns ou, para outros, porque têm plena consciência de não possuírem o perfil de cientista ou pesquisador, desejável na pós-graduação, mas gostam da lide forense, igualmente necessária.
Entretanto, aqueles que optam pela pós-graduação, sobretudo aquela financiada pelo poder público (seja com a concessão de bolsas ou com o estudo em universidades públicas) não devem fazê-lo apenas para aumentar o seu salário. Porém, muitos o fazem. E isso significa dinheiro público jogado fora duas vezes: 1º) no financiamento ou no oferecimento do curso de pós-graduação e 2º) no aumento da folha de pagamento das universidades públicas.
Para que a pós-graduação em Direito alcance os objetivos que dela se espera, é preciso que métodos seletivos para os ingressantes sejam capazes de identificar, além da capacidade intelectual, a vocação para a pesquisa e para a produção de novos conhecimentos. Por definição, a obtenção do título de mestre ou doutor implica na capacidade de produção e difusão de novos saberes e novas competências, o que nos leva à conclusão de que aquele mestre ou doutor que não escreve, não publica e não socializa novos conhecimentos, não honra o título que ostenta. Apenas lustra com sua vaidade um quadro na parede e agrega mais dinheiro em seu contra-cheque.
Uma idéia que nos parece viável é a de se usar, como critério para seleção de candidatos ao doutorado, a produção científica do interessado, inclusive – e principalmente – a sua dissertação de mestrado.
É sabido que até a bem pouco tempo os estudantes de Direito não se interessavam muito pela pós-graduação, mas o aumento desenfreado de cursos de graduação fez com que se minimizasse o título de bacharel e, ao mesmo tempo, se vislumbrasse na pós-graduação o diferencial necessário para se sobressair na carreira. Sobretudo para quem pretendesse o magistério superior. Dessarte, a procura por mestrado e doutorado haveria de, logicamente, aumentar.
O Direito não basta a si mesmo. Entendemos que o estudo desta ciência (no mais exato significado do termo), precisa ser revigorado. O enfoque do jurista precisa ser ampliado de modo a não se tornar mero reprodutor dos conhecimentos tidos como assentes. E neste sentido voltamos à questão: o que fazem do título, os titulados? Se a pessoa se torna mestre ou doutor, mas suas aulas continuam as mesmas (mero regurgitar de conhecimentos) e sua produção bibliográfica não vai além de sua dissertação ou tese, acredito que não tenha valido a pena (pelo menos para a sociedade).
Enquanto o Direito contar em suas fileiras com mestres e doutores que não produzem conhecimento, que não percebem que a multidisciplinaridade (ou a inter, ou ainda, a transdisciplinaridade) é essencial para que o nosso curso saia do claustro oitocentista no qual se aninhou; enquanto houver titulados preocupados só com a norma e não com o contexto sócio-econômico no qual ela se insere e do qual, inexoravelmente, ela deriva e se destina, permaneceremos sempre atrás dos acontecimentos, dando azo à velha (e triste) máxima que o Direito (isto é, a norma) só surge depois que o fato social fez o estrago.
Se tivéssemos mais cientistas do Direito “antenados” com a vida que nos circunda, com a realidade do ambiente, com os avanços tecnológicos das outras ciências, não teríamos que, literalmente (e sempre) correr atrás para, às pressas, criar normas capengas, provisórias, e por isso falhas, para atenuar o problema até que os estudos jurídicos se aprofundem e se possa elaborar uma regulamentação adequada. Veja-se o exemplo dos transgênicos – os organismos geneticamente modificados (OGM): há pelo menos trinta anos os cientistas de outras áreas sabiam o que iria acontecer. E fomos pegos sem uma legislação para o fato (já consumado) de toneladas de produto geneticamente modificado. O mesmo vale para os estudos sobre o genoma humano, as células tronco e os demais avanços tecnológicos que estão se desenvolvendo no Brasil e no mundo neste exato instante.
Repito: o Direito não se basta. Enquanto permanecer a visão caolha de que ao Direito cabe apenas o estudo das normas (nas suas mais variadas modalidades), deixando para o legislativo e a jurisprudência a função de “criar” o ordenamento jurídico, teremos de nos conformar com o atual “estado de coisas”.
Uma pós-graduação com enfoque multidisciplinar, sobretudo em áreas como o Direito Ambiental, a propriedade intelectual, o Direito Internacional, a Bioética e tantas outras, é elemento essencial para a verdadeira reforma educacional que precisamos. Aliás, em relação ao meio ambiente, a Política Nacional de Educação Ambiental tem como um dos seus princípios básicos “o pluralismo de idéias e concepções pedagógicas, na perspectiva da inter, multi e transdiciplinaridade”.
Não se trata aqui de “inventar a roda”, pois a pesquisa já é estimulada (e levada a cabo) em alguns centros de excelência no Brasil, mas cuida-se de disseminá-la. Sobretudo, mas não somente, a produção intelectual institucionalizada, definida como sendo a “realização sistemática da investigação científica, tecnológica ou humanística, por um certo número de professores, predominantemente doutores, ao longo de um determinado período, e divulgada, principalmente, em veículos reconhecidos pela comunidade da área específica”.(Resolução CES n.º 2, de 7 de abril de 1998).
Prevejo uma Academia onde os juristas-cientistas se anteciparão à consumação de fatos sociais novos, pois estarão longe do enclave escolástico da mera reprodução doutrinária e saberão da íntima relação que o Direito tem (mesmo a contragosto de alguns) com outros ramos do conhecimento, como a economia, a geografia, a psicologia, e tantos outros. E nesse caminhar, perceberemos que a atividade do jurista-cientista não é – somente – interpretar leis, mas também participar de sua “criação”, conhecer seus princípios, instrumentalizar os órgãos legislativos com pesquisas de nível acadêmico sobre a realidade (presente e futura), e principalmente, servir de estímulo a jovens universitários que não querem apenas o bacharelado ou os demais ofícios privativos de bacharéis em Direito.
É importante frisar, e em letras garrafais, que a valorização da pós-graduação tem a ver apenas para aqueles que possuem a vocação científica. Isto porque é bom, aliás, é essencial que nem todos (mesmo que seja a maioria) não possuam esta vocação, porque igualmente importante é a valorização daqueles que têm vocação para as lides forenses, para o embate diário em nossos tribunais, cujos conhecimentos são testados diuturnamente e cujas baterias precisam ser realimentadas de forma contínua. E nessa realimentação, voltamos à importância dos juristas-cientistas.
Nota: Leitura de cabeceira, a nosso ver, para os dias que correm: A obra “Os cursos jurídicos e as elites políticas brasileiras”, coletânea de textos coordenada pelo prof. Aurélio Wander Bastos e publicada pela Câmara dos Deputados em 1978; e “A crise do Direito numa sociedade em mudança”, outra coletânea de textos, sendo esta organizada pelo prof. José Eduardo Faria, e publicada pela UNB em 1988.