COMPETÊNCIA NO ESTATUTO DO IDOSO

Flávio Luiz Yarshell

A Lei n. 10.741, de 1.º de outubro de 2003, dispõe sobre o chamado “Estatuto do Idoso” e, dentre suas disposições, está a regra do art. 80, inserido no Título V (“Do Acesso à Justiça”), Capítulo III (“Da Proteção Judicial dos Interesses Difusos, Coletivos e Individuais Indisponíveis ou Homogêneos”), segundo o qual: “As ações previstas neste Capítulo serão propostas no foro do domicílio do idoso, cujo juízo terá competência absoluta para processar a causa, ressalvadas as competências da Justiça Federal e a competência originária dos Tribunais Superiores”.

Salvo melhor juízo, o dispositivo, com a declarada intenção de facilitar o acesso do idoso à Justiça, pode, pelas dúvidas que venha a gerar, produzir o efeito inverso ao esperado, especialmente por ter qualificado dita competência, embora determinada por critério territorial (domicílio do idoso), como absoluta e, dessa forma, improrrogável. Como se sabe, discussão em matéria de competência é uma das mais – se não a mais – perversas para o jurisdicionado, onerado por debate que possa tornar ainda mais penoso seu caminho em busca de justiça; o que é ainda mais certo para quem, presumivelmente, não tem tempo para esperar…

A primeira das observações a se fazer é que, nada obstante as boas intenções do legislador, a qualificação da competência como absoluta, sem qualquer distinção ou ressalva (que não as constantes da lei), é, para se dizer o menos, inconveniente. Isso não é dito porque a lei tomou, como já mencionado, um critério territorial para determinar uma competência qualificada como absoluta. Como sabido, no entanto, a competência absoluta é aquela cujas regras são instituídas em atenção a um interesse de ordem pública e, nessa medida, indisponível; ao passo que as regras sobre competência relativa são instituídas considerando a conveniência das partes.

Ora, nessa medida, parece correto dizer que: a) nem sempre o domicílio do idoso será o valor mais relevante sob a ótica da ordem pública e b) nem sempre a imposição do foro do domicílio do idoso será a mais benéfica para ele próprio.

Quanto ao primeiro aspecto, há outros critérios igualmente relevantes para a ordem jurídica e que, determinantes de competência absoluta, podem prevalecer sobre o critério eleito pelo legislador. Por exemplo, em demandas individuais ou mesmo coletivas, o local do dano pode ser mais relevante pela questão da colheita da prova e, portanto, das funções a serem desempenhadas pelo juiz em relação a determinado território (ver art. 2.º da Lei n. 7.347/85). Mesmo se tomado o critério territorial como determinante de competência relativa, vale observar que, nas ações de alimentos, por exemplo, o domicílio do credor de alimentos é critério que parece prevalecer mesmo sobre a condição de idoso do respectivo devedor (réu) – ainda que, tratando-se de ação revisional de alimentos, o idoso seja o autor da demanda. De forma análoga, em ações de separação judicial, o domicílio ou residência da mulher é igualmente critério que parece prevalecer sobre a idade (relativamente) avançada do marido, seja ele réu ou autor.

Com relação ao segundo aspecto, embora seja de se presumir que o aforamento da demanda seja mais benéfico ao idoso se for feito no foro de seu domicílio, isso não pode ser tido como uma verdade absoluta. É perfeitamente possível imaginar que um idoso prefira aforar a demanda no foro do domicílio do réu ou no local do fato (sendo este um dos critérios empregados pelo art. 100, par. ún., do CPC), por ser, dessa forma, mais fácil a colheita da prova (por exemplo, oitiva de testemunhas) e, portanto, mais célere o processo (evitando-se, por exemplo, citação por precatória). É possível também imaginar uma situação de litisconsórcio ativo, em que seja mais conveniente para os autores – dentre os quais um idoso – promoverem a demanda em outro foro que não o do domicílio do idoso.

De outro lado, a qualificação dessa competência como absoluta – para além do confronto com outras regras que também estabeleçam competência absoluta para a mesma situação (não ressalvadas pela lei) – poderá criar problemas sérios. Parece lícito perguntar: se a competência é absoluta, será inválida qualquer disposição contratual que estabeleça foro de eleição envolvendo o idoso? Nessa linha de raciocínio, se a competência é absoluta, em tese, não pode haver modificação por conexão ou continência – o que impedirá, por vezes, a muito útil reunião de processos nos termos do art. 105 do CPC, impondo, como alternativa a suspensão (!!!) do processo por prejudicialidade, nos termos do art. 265, IV, “a”, do CPC. Além disso, se a competência é absoluta, parece lícito supor que não deveria prevalecer a regra de perpetuação, de tal sorte que, se, após o aforamento, a parte completar a idade limite, o fato superveniente seria relevante, e os autos deveriam ser remetidos para outro órgão, absolutamente competente, tendo o outro se tornado absolutamente incompetente – o que, adiante-se, nos parece um completo despropósito.

Naturalmente, a solução de todos esses problemas depende, em certa medida, do campo de aplicação da regra, isto é, impende determinar que “ações” – para usar a expressão da lei – estariam sujeitas à regra sob comento. E, nada obstante o escopo da lei ser obviamente o de prestigiar o idoso e dar efetividade às posições jurídicas de vantagem ali estabelecidas, a primeira conclusão a que se deve chegar é a de que nem todos os processos que envolverem o idoso, como parte (em qualquer dos pólos) ou interveniente, estarão sujeitos à regra do art. 80.

A interpretação que há de se ter do dispositivo legal, portanto, deve buscar a harmonia entre a) a preservação dos interesses do idoso, facilitando-lhe o acesso (e não o contrário!); b) o equilíbrio entre as partes no processo, não se podendo extrair da regra um tratamento discriminatório incompatível com a condição do idoso e c) a preservação de outros interesses relevantes para a ordem pública, que também sejam critérios determinantes da competência.

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