A dimensão humana do Estado: o povo

Débora da Silva Roland
professora da graduação em Direito na Universidade Santa Úrsula, professora dos cursos de MBA da Fundação Getúlio Vargas, mestranda em Direito Público e Evolução Social pela Universidade Estácio de Sá (RJ)

1. INTRODUÇÃO

A linguagem utilizada pelo Direito sempre foi objeto de estudos e da busca de um significado único, garantindo-lhe então, pensavam os juristas, um caráter científico. Assim, com o tempo, a hermenêutica utilizada pelos romanos redundou num abuso, mormente na doutrina escolástica, que introduziu um quadro de distinções e classificações que amesquinharam a exegese, apelando exageradamente para o argumento da autoridade, para os pareceres dos doutores e glosadores, em vez de se dedicar ao estudo da lei e dos textos. Daí a idéia de que não seria preciso interpretar o Direito quando o vocabulário utilizado fosse claro o suficiente – in claris cessat interpretatio (1) – o que, certamente foi resultante desta restrição ao processo hermenêutico.

Com o passar do tempo e com o desenvolvimento da lingüística e da semiótica, os grandes juristas perceberam que seria impossível conferir uma univocidade ao Direito. Ronald Dworkin, ao lançar o seu célebre “ataque geral contra o positivismo” (2) escolhendo a versão de H. L. A. Hart para tal, observa que este autor reconhece que as regras jurídicas possuem limites imprecisos, uma vez que têm “uma textura aberta”, significando dizer que as normas em geral comportam significados diversos, que irão variar conforme a sua utilização, desafiando um constante processo hermenêutico por parte dos intérpretes.

Larenz também contribuiu neste sentido, uma vez que estabelece uma fronteira para a interpretação, quando percebe que a linguagem tem uma capacidade expressiva, qual seja, o “sentido literal possível” (3), entendido como aquilo que do ponto de vista lingüístico é determinante para a apuração do sentido das regras jurídicas. Assim, no esforço de interpretação o operador do direito usa recursos como dados históricos, a lingüística, valores de natureza política, ética, cultural, entre outros.

Este fenômeno ocorre também na ciência política e na teoria geral do Estado. Os vocábulos e expressões utilizadas comportam uma multiplicidade de significados para cada significante, o que exige do pesquisador uma reflexão constante para uma melhor compreensão e apuração do sentido empregado por estes pesquisadores. Termos como Estado, nação, soberania, poder, regime representativo, povo, entre outros, podem ter significados distintos conforme a época e o autor, exigindo um esforço hermenêutico do pesquisador. Não se pode tomar a teoria do Estado como uma ciência normativa pura, nem tampouco como uma ciência de fatos, o que significa que devemos olhar os fenômenos afeitos ao Estado do ponto de vista de vários métodos e teorias. Neste sentido, o entendimento de Zippelius (4):

In summa: uma teoria do estado não cabe no molde de “unidade e pureza de métodos”. Não obstante isso, sempre que se abordam temas relacionados com o Estado, devem-se separar teoricamente as questões segundo as situações reais e segundo as situações desejadas.

Dessa forma, o presente trabalho pretende justamente investigar o significado deste elemento constitutivo do Estado, mais precisamente a dimensão humana do Estado, ou seja, o povo, levando em consideração diversos aspectos do seu conteúdo. O exame da palavra povo pode abarcar várias concepções. Neste sentido a obra de Friedrich Müller – “Quem é o povo?” – onde o autor, depois de ser questionado por estudantes de Direito no Ceará, numa palestra proferida neste Estado, realiza uma reflexão sobre o tema, investigando as diversas concepções e significados que o povo pode sugerir, resultando numa obra original e ímpar.

Hans Kelsen, o genial autor da Teoria Pura do Direito, ao analisar o Estado também teceu algumas considerações a respeito do povo, considerado por ele como elemento constitutivo do Estado. No entanto, estava preocupado com a proteção do cidadão na ordem internacional, de forma que seu estudo se dirige para esta finalidade.

Jellinek, Duguit e Zippelius foram autores que se dedicaram à investigação do sentido de povo, o que será apreciado no trabalho em tela. Entre os autores brasileiros podemos citar Paulo Bonavides, Dalmo Dallari, Lenio Streck como alguns estudiosos do tema, e que também serão considerados oportunamente.

O presente trabalho não tem a pretensão de examinar todos os sentidos possíveis e admissíveis deste elemento constitutivo do Estado, mas, apenas traçar alguns limites e noções importantes para a Teoria da constituição, valendo-se de autores supra citados, que representam diversas correntes de pensamento, em diversas épocas. Desse modo, a contribuição pretendida é apenas construir um despretensioso painel dos múltiplos significados de povo, vocábulo tão utilizado por políticos e governantes, que, em nome dele, praticam absurdos e atrocidades.

2. A ESTRUTURA DAS COMUNIDADES

O estudo dos agrupamentos humanos envolveu uma série de considerações que se deixaram impregnar por correntes filosóficas, políticas e sociológicas de suas épocas, o que não é uma grande novidade. Assim, o individualismo do Iluminismo concebeu a comunidade humana tendo por fundamento a existência de relações contratuais entre os homens e, que só a partir de então, se poderia vislumbrar a comunidade estatal.

Contrapondo-se a este entendimento, os autores do romantismo, tentaram explicar a comunidade de homens como um todo vivo, que formariam uma unidade. Assim entendeu Fichte (5), quando apresentou o cidadão como uma parte que se integra no todo Estado, tornando-o simultaneamente dependente e conservador do todo, pois teria a missão de manter o todo e ser mantido por ele. De outra forma, cada indivíduo só será conservado enquanto se conserva o Estado como um todo.

Outros autores se dispuseram a enfrentar o tema tendo como modelo o organismo natural, humano. Este foi o caso de Herbert Spencer, autor citado por Zippelius, que desenvolveu a idéia de que organismos naturais e sociedades apresentam certas semelhanças em suas estruturas: “em ambos os casos há repartição de trabalho e, assim, uma especialização funcional das diversas partes, uma dependência recíproca entre as partes e uma susceptibilidade do todo a influências internas e externas”. (6)

Já os adeptos da sociologia relacional, procuravam explicar as comunidades decompondo-as em indivíduos que permanentemente se relacionavam. Dessa forma, um mero agrupamento de indivíduos só seria considerado uma sociedade quando passavam a interagir, procurando influenciar o destino uns dos outros. Assim, as bases da idéia de comunidade seriam estas relações intersubjetivas, e somente por meio dessas ações conjuntas é que se formava uma sociedade. Para Max Weber, o Estado, assim como qualquer outra estrutura social, somente poderia ser concebido como processos e relações de ações de pessoas singulares, por serem, somente elas, portadoras de ações inteligíveis. Assim, o agir do Estado é determinado pelo agir social, uma vez que a ação humana é motivada e orientada no seu desenvolvimento por certas finalidades. É possível suscitar a partir desta consideração de Weber, a questão do sistema de representação nas democracias, o que será feito oportunamente.

Hans Kelsen, a partir da sua Teoria Pura do Direito, buscou “purificar o direito”, retirando do direito qualquer elemento metafísico, explicando-o como ciência. Para o autor a sociedade é constituída através de uma ordem normativa, que objetiva regular as atividades e condutas dos indivíduos. “Os indivíduos formam uma comunidade jurídica na medida em que estão submetidos a uma e à mesma ordem jurídica, isto é, na medida em que a sua conduta recíproca é regulada através de uma e a mesma ordem jurídica” (7), ensina Zippelius a respeito do pensamento de Kelsen. O que se depreende deste entendimento é que a comunidade estatal é formada a partir da ordem normativa, ordem jurídica do Estado.

Como se pode perceber cada autor procura explicar a estrutura da comunidade de um ponto de vista distinto. Ora se preocupa em situar a comunidade como um todo e como um organismo vivo, que necessita ser cuidado pelas suas partes, que a mantém e que por sua vez é mantida por ela, ora é entendida como expressão de relações intersubjetivas, assim como também pelo entendimento kelsiniano é reduzida à norma jurídica, na medida que a comunidade é instituída por ela.

Com o advento do Estado Moderno, foi preciso visualizar o Estado por meio de elementos que o constituiriam: povo, território e poder (ou soberania; ou, para alguns governo). Tais elementos não conseguem explicar este organismo complexo, necessitando de uma reflexão e estudo maiores na atualidade. De qualquer forma, a grande parte da doutrina ainda utiliza esta concepção.

Passemos a analisar as diversas concepções de povo segundo a doutrina.

3. O CONCEITO DE POVO

Inicialmente, é necessário fazer uma distinção importante acerca de três vocábulos que, usualmente, podem ser confundidos: povo, população e nação. População é um conceito demográfico- matemático, afeito à geopolítica, que significa o conjunto de pessoas habitam certo território numa certa época.

Nação é um vocábulo que invoca certos sentimentos, identidades culturais, sociais e políticas. Nas palavras de Lenio Streck (8) é um conceito “psicossocioantropológico”. Jorge Miranda (9) afirma que “o específico da nação encontra-se no domínio do espírito, da cultura, da subjectividade … Uma nação não é qualquer grupo cultural, é uma comunidade cultural com vocação ou aspiração a comunidade política”. (10) Dessa forma podemos entender como nação uma comunidade que encontra denominadores comuns, tais como, identidade cultural, étnica, lingüística, modos de ver o mundo, entre outros, comunidade disposta a cumprir um único desígnio, um único destino.

A palavra povo é plurívoca, conforme já assinalamos. Assim, os autores que se dedicaram ao estudo do Estado, buscaram definir seu sentido a partir de um ponto de vista próprio. Jorge Miranda (11) acentua esta multiplicidade de noções:

Há noções de povo que se pretendem só jurídicas: as que remontam às Revoluções americana e francesa e prevalecem nos Estados de Direito de tipo ocidental. Há noções económico-sociais de povo: as que se encontram no marxismo e também, antes deste e com finalidade oposta, as que sustentam o sufrágio censitário. Há noções rácicas de povo: em especial, a da Alemanha nacional-socialista. Há noções ético-históricas ou históricos-orgânicas de povo: as do facismo italiano e do nacionalismo autoritário. E há noções religiosas: as do fundamentalismo islâmico.

Como se percebe da lição do Mestre, é possível depreender várias concepções para a palavra povo. Para H. Kelsen (12) povo “é constituído pela unidade da ordem jurídica válida para os indivíduos cuja conduta é regulamentada pela ordem jurídica nacional, ou seja, é a esfera pessoal de validade dessa ordem”. O autor entende que o povo constitui uma unidade jurídica e não natural, pois assim como o Estado tem apenas um território cuja unidade é jurídica, tem apenas um povo. O indivíduo só será considerado pertencente ao povo quando estiver na esfera pessoal de validade de sua ordem jurídica.

R. Zippelius (13) sufraga o entendimento de que povo é o que vive no território estatal, uma vez que estamos diante de um Estado territorial. “Este conceito de povo do Estado que está sujeito ao poder estatal e o condiciona através da sua obediência não coincide com o conceito de povo, em sentido sociológico, unido por um sentimento de afinidade étnica”.

Paulo Bonavides (14) ensina que a palavra povo comporta um significado político, jurídico e sociológico. O conceito político de Povo se refere ao “quadro humano sufragante, que se politizou, ou seja, o corpo eleitoral”. Este conceito é resultado de uma concepção recente, uma vez que o absolutismo não conhecia este aspecto, já que só identificava a comunidade estatal como um conjunto de súditos. O conceito jurídico de povo, que para ele é o único a explicar plenamente o conceito de povo, aponta para aqueles “que se acham no território como fora deste, no estrangeiro, mas presos a um determinado sistema de poder ou ordenamento normativo, pelo vínculo de cidadania”. Assim, é a cidadania que mostra o vínculo entre o indivíduo e o Estado. No sentido sociológico, povo “é compreendido como toda a continuidade do elemento humano, projetado historicamente no decurso de várias gerações e dotado de valores e aspirações comuns”. Este ponto de vista se confunde com o conceito de nação, já apresentado.

Dalmo Dallari (15) também apresenta o conceito de povo do ponto de vista jurídico, compreendendo “o conjunto dos indivíduos que, através de um momento jurídico, se unem para constituir o Estado, estabelecendo com este um vínculo jurídico de caráter permanente, participando da formação da vontade do Estado e do exercício do poder soberano”.

Concluindo, povo é o conjunto de homens e mulheres que se submetem ao mesmo Direito que por sua vez lhes confere a qualidade de cidadão e súdito. Assim, percebe-se que o conceito de povo é permeado por duas faces: uma face subjetiva, quando o que está em evidência é a qualidade de cidadão, e uma face objetiva, quando o que está em evidência é sua qualidade de súdito. Nas palavras de Jorge Miranda (16) “o povo vem a ser, simultaneamente, sujeito e objecto do poder, princípio activo e princípio passivo na dinâmica estatal”.

Não há povo sem organização política, assim como não há organização política sem povo, pois ambos tem a mesma origem. Assim, povo é a dimensão humana do Estado, e a dinâmica entre povo e Estado é tão íntima que é possível afirmar que o povo não subsiste sem a organização e o poder do Estado, de forma que inexistindo um ou outro, levaria ao desaparecimento do povo. Assim, o Estado nasce desta comunidade que irá se transformar em povo, convertendo-se em razão de ser do Estado; o poder político se define em relação ao povo e só então é possível se definir em relação a outros poderes; o poder emerge do povo e precisa ser legitimado por ele, pois o poder se exerce por referência ao povo. Assim, as palavras de Jorge Miranda: (17)

O povo só existe através do Estado, é sempre o povo do Estado em concreto, dependente da organização específica do Estado (e a ela também subjacente). O povo, que nasce com o Estado, não subsiste senão em face da organização e do poder do Estado, de tal sorte que a eliminação de uma ou de outro acarretaria automaticamente o desaparecimento do povo como tal.

Conforme o que se apurou acima, povo é aquele que se submete à vontade do Estado, mas também aquele que participa da vontade comum. Este aspecto dúplice foi observado por Rousseau, que confere dupla qualidade ao povo: a de ser cidadão, pois participa ativamente da formação da vontade comum, mas também a de ser sujeito, pois se submete a esta vontade. A seguir, iremos desenvolver estas noções.

4. A DUPLA QUALIDADE DO POVO: CIDADÃO E SUJEITO DE DIREITOS

Povo é um termo permeado de dúvidas e variações, conforme já assinalamos, mas está cindido, desde Rousseau por uma noção dúplice: ora se considera povo o conjunto de cidadãos que estão unidos ao Estado por um vínculo jurídico-político, ora se considera povo o indivíduo sujeito de direito público, objeto da atividade do Estado.

Diante desta dupla qualidade que se confere ao indivíduo, passemos a analisar estes dois aspectos.

1. O POVO COMO SUJEITO DE DIREITOS
Foi possível tal diferenciação a partir da teoria da soberania do povo desenvolvida por Rousseau. As doutrinas posteriores que superaram o Direito natural reconheceram o povo como elemento constitutivo do Estado. Mas, a qualidade subjetiva do povo ficou em segundo plano, tendo em vista que não podem ser reconhecidas senão num Estado organizado democraticamente. Este é um fator decisivo, pois uma simples comunidade que se submete ao poder de uma única pessoa ou de um grupo, não se atribui a condição de povo porque não se reconhece esta qualidade subjetiva, ou seja, que esta comunidade não seja detentora de direitos subjetivos. Neste sentido o exemplo de Jellinek: (18)

Por esto un Estado, formado por esclavos, a cuyo frente estuviera un gran dueño de plantaciones, solo tendría de Estado el nombre. Entre estos miles de esclavos faltaría un lazo jurídico que uniese los unos a los otros. Estos esclavos, en tal situación, no tendrían la menor conciencia de su existencia recíproca. Cuando la doctrina antigua del Estado limitaba los fenómenos del mismo a los hombres libres, expresaba con esto una de sus más profundas verdades. Solo entre hombres libres, dice Aristóteles, es posible un derecho en el sentido político, y sin este derecho no hay Estado.

Podemos concluir que, a qualidade subjetiva de uma certa comunidade, garante o sentido de povo, que por sua vez é a causa da unidade do Estado. Esta unidade, advinda dos laços que unem os indivíduos, permite que seja sujeito de direitos, ao passo que a subordinação lhes confere uma sujeição ao poder do Estado, sendo, portanto, sujeito de deveres. Assim, temos que o povo passa a ser sujeito de direitos porque membro do Estado e, sujeito de deveres enquanto objeto do poder do Estado.

No entanto, para que esta subjetividade verdadeiramente se oponha ao Estado, este deve exteriorizar sinais de reconhecimento de que tal indivíduo é membro da comunidade, percebendo-o como pessoa dotada de uma esfera de direito público. Mas, tal reconhecimento se deu tardiamente, uma vez que primeiramente se reconheceu o homem como dotado apenas de uma esfera de direito privado. O conhecimento de um direito público subjetivo foi resultado de um longo processo histórico que teve início na Antiguidade e começou a se efetivar a partir da luta entre Estado e Igreja, já na idade média. Esta luta acabou por permitir o surgimento da doutrina do direito natural, e especialmente na Inglaterra, o direito originário da liberdade de consciência religiosa. Este fato contribuiu para a primeira tentativa de positivação de direitos públicos subjetivos na América do Norte, então colônias inglesas, que em 1628 editou a Petition of Right e, em 1689 o Bill of Rights. O primeiro documento não criou nenhum novo direito, reafirmando apenas o antigo, ou seja, as limitações legais da coroa britânica. O segundo reconhecia a liberdade de consciência estendendo a todos os homens que habitavam o território da colônia.

A Declaração de Direitos da Virgínia, que previa um elenco de direitos que os indivíduos poderiam exigir em face do Estado, inspirou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 26/8/1789, que acabou por ser reproduzida na Constituição Francesa de 1791 e em outras constituições européias posteriores. Dessa forma e por impulso do princípio constitucional nasce a doutrina do direito público subjetivo, que percebe o indivíduo como detentor de certa posição como pessoa perante o Estado. Mediante este reconhecimento, o indivíduo passa a ser visto como membro do povo, considerado em sua qualidade subjetiva.

Como membro da comunidade estatal o indivíduo está subordinado ao Estado até onde o direito determina, pois esta relação está fundada juridicamente. Por outro lado, o Estado deve implementar ações positivas que estarão a serviço de interesses individuais, com a finalidade de proteger a comunidade estatal. Estas ações podem ser consideradas como uma compensação que o Estado oferece ao indivíduo pelos sacrifícios impostos.

Concluindo, o reconhecimento expresso na constituição de que o homem é portador de um conjunto de direitos de liberdade, permitiu, por sua vez, o reconhecimento por parte do Estado de que o indivíduo é uma pessoa dotada de um direito público subjetivo. Nasce assim, a concepção de que sendo portador de direitos públicos subjetivos, o indivíduo se submete à vontade do Estado, que deve, entretanto, empreender ações que proteja e garanta a segurança do povo.

Mas, segundo Rousseau, o sentido da palavra “povo” pode também ser entendido do ponto de vista subjetivo, quando se percebe que o povo é constituído por um conjunto de cidadãos, que mantém uma relação jurídica com o Estado. É a noção que será desenvolvida a seguir.

2. O POVO COMO CIDADÃO
De tudo que foi exposto no item anterior podemos resumir deste modo: quando o Estado reconhece que os indivíduos têm um direito público subjetivo surgem exigências negativas, uma vez que a subordinação dos indivíduos ao Estado deve ser disciplinada pelo direito, como também surgem exigências positivas, obrigando o Estado a agir no sentido de proteger e favorecer os indivíduos.

O indivíduo visto como membro do povo vai participar da vontade do Estado, sendo esta resultante da vontade do povo. O Estado segundo a ordem jurídica consegue a colaboração dos indivíduos criando obrigações ou concedendo direitos. Estes direitos são concedidos para que o Estado possa realizar seus fins e são fundamento de uma posição mais ampla da personalidade, qual seja, o indivíduo passa a operar como um órgão que vai formular a vontade do Estado mediante o voto. Neste sentido, as palavras de Jellinek (19): “Estas exigencias no se proponen ni una omisión ni una prestación por parte del Estado, sino el reconocimiento por éste de que puede obrar en nombre de él”. Assim, a partir deste reconhecimento os indivíduos podem gozar de um direito de cidadania, porquanto agem como órgãos do Estado, devendo, portanto reconhecer a condição de cidadão ativo. Referindo-se a participação do povo na formação da vontade do Estado e do exercício do poder soberano, os ensinamentos de Dalmo Dallari (20) são elucidativos:

Essa participação e este exercício podem ser subordinados, por motivos de ordem prática, ao atendimento de certas condições objetivas, que assegurem a plena aptidão do indivíduo. Todos os que se integram no Estado, através da vinculação jurídica permanente, fixada no momento jurídico da unificação e da constituição do Estado, adquirem a condição de cidadãos, podendo-se, assim, conceituar o povo como o conjunto dos cidadãos do Estado. Dessa forma, o indivíduo, que no momento mesmo de seu nascimento atende aos requisitos fixados pelo Estado para considerar-se integrado nele, é, desde logo, cidadão, mas, como já foi assinalado, o Estado pode estabelecer determinadas condições objetivas, cujo atendimento é pressuposto para que o cidadão adquira o direito de participar da formação da vontade do Estado e do exercício da soberania. Só os que atendem àqueles requisitos e, conseqüentemente, adquirem estes direitos, é que obtêm a condição de cidadãos ativos.

Assim, fica mais clara a conexão entre o povo, no seu aspecto subjetivo, e o direito público, uma vez que o poder do Estado vai nascer do povo, ou melhor, o titular do poder do Estado é o povo, que atua como órgão do próprio daquele. É dessa forma que o poder estatal vai encontrar legitimação, constituindo-se como condição permanente na formação concreta do próprio Estado e uma das funções necessárias da comunidade popular como elemento constitutivo estatal.

“A nacionalidade é um estatuto jurídico ao qual o direito estatal associa direitos e deveres específicos reciprocamente relacionados e que exprimem uma vinculação ao destino político de um estão”. (21) Este é o pensamento de Zippelius acerca da nacionalidade, que permite a participação do indivíduo na vida do Estado mediante o direito do voto e do direito do exercício de cargos públicos, ou melhor, a cidadania ativa, o status activus. Os direitos do cidadão são conferidos aos nacionais, aqueles que ao nascer já se vinculam a um determinado Estado, e aos indivíduos que lhes forem equiparados, uma vez que a ordem jurídica estatal permite tal situação.

O item a seguir examinará de que forma o cidadão é representado nas democracias indiretas ocidentais.

5. O CIDADÃO E O SISTEMA REPRESENTATIVO

A idéia de que o povo é órgão do Estado e assim atua na formação da vontade estatal é uma teoria construída para explicar o sistema de representação no direito público moderno, tendo seus principais formuladores Gierke e Jellinek. É certo que o sistema representativo surgiu por razões de ordem prática, tendo em vista que o Estado moderno não é mais a Estado-cidade, a polis grega, tem larga base territorial, grande número de indivíduos e que atua conforme o princípio da supremacia.

A partir da Revolução francesa, passou-se a entender que a assembléia de parlamentares era um dos órgãos da nação, sendo responsáveis pela emissão da vontade desta nação, que se realiza por meio destes parlamentares. Para que este corpo de parlamentares possa ser considerado como um corpo representativo é preciso que exista, previamente, uma vontade nacional, da qual as decisões implementadas pela assembléia sejam apenas uma expressão desta vontade. Carre de Malberg (22) critica esta noção, afirmando que no sistema representativo não é possível esta representação de vontades.

Não existe, neste regime, representação de uma vontade por outra, senão que entra em jogo uma só vontade, a da nação, que se expressa, se realiza pelos deputados. Estes, não são, pois, os representantes de uma vontade nacional distinta da sua, senão que são um órgão por meio do qual a nação chega a ser capaz de querer.

Laband criticou duramente esta doutrina dos órgãos do povo. Para ele, a assembléia de parlamentares é escolhida pelo corpo de cidadãos, sendo tal fato insuficiente para transformá-la em órgão do povo. O povo, ao eleger seus parlamentares, somente realiza um ato de nomeação, tornando-se a assembléia eleita em órgão do Estado. Após esta crítica, segundo Carre de Malberg, Jellinek defende uma nova definição para o regime representativo, reconhecendo que o corpo de deputados é um órgão direto do Estado. (23)

Jellinek também critica o fato de que alguns doutrinadores procuravam transpor para o direito público, na tentativa de explicar a natureza da representação, a idéia de mandato. Para esses doutrinadores os parlamentares eram meros mandatários do povo, razão pela qual eram detentores de um mandato parlamentar. Tal hipótese ainda é comentada pela doutrina pátria, a saber, o comentário de Dallari (24):

Entendem alguns estudiosos que é impróprio falar-se em mandato político, o que, no seu entender, significa uma transposição inadequada de um instituto do direito privado par ao âmbito do direito público. Acham que só existe representação política, o que, em última análise, não resolve o problema, uma vez que também existe o instituto da representação no âmbito do direito privado. Assim, pois, como não foi ainda apontado um substituto nitidamente superior, é preferível que se continue a usar o termo mandato, que já tem a seu favor uma tradição de vários séculos.

Na verdade, os autores referem uma origem comum entre o mandato privado e o público, cuja origem mais remota, advém do direito romano, que trazia a figura da manus datio. Ocorre que no fim da idade média até a revolução francesa havia o mandato imperativo, de caráter contratual, que obrigava o mandatário a seguir as instruções escritas pelos eleitores. Estas instruções determinavam, detalhadamente, como os seus representantes deveriam se comportar no momento da votação das leis e em outras questões que seriam discutidas e decididas. Tal prática foi repudiada pela Constituição francesa de 1891, que expressamente proibia o mandato imperativo.

De qualquer forma, o mandato político na atualidade deve obedecer a princípios de natureza pública, como o fato de que o mandatário, não obstante ser eleito por parte do povo, o representa totalmente, tomando decisões em nome de todos. Embora seja eleito por uma parte do eleitorado, não fica vinculado a estes eleitores, agindo com absoluta autonomia e independência. O mandato confere poderes gerais, suficientes para a prática de quaisquer atos, sendo também irrevogável.

Assim, não obstante as diversas correntes a respeito da natureza da representação, a nossa Constituição de 1988 utiliza a expressão “mandato”, termo que já se tornou tradição no direito constitucional pátrio.

6. O POVO SEGUNDO FRIEDRICH MÜLLER

Instigado por um aluno cearense, que lhe fez a pergunta “Quem é o povo”, Müller resolve fazer uma reflexão acerca do tema, produzindo uma obra única, onde consegue examinar a noção “povo” sobre diversos ângulos, justamente por ser um conceito plurívoco. De forma sintética vamos expor suas diversas concepções de povo.

Seu ponto de partida é o “povo como povo ativo”, atribuindo um caráter político ao tema. Analisando a palavra “democracia”, em que demo significa povo e cracia significa dominação, afirma que o “o povo atua como sujeito de dominação nesse sentido por meio da eleição de uma assembléia constituinte e/ou da votação sobre o texto de uma nova constituição”. (25) O termo povo ativo significa a totalidade de eleitores, constituindo-se fonte da determinação do convício social por meio de prescrições jurídicas, sendo considerado então, os titulares de nacionalidade.

Müller também dá ao povo a concepção de “instância global de atribuição de legitimidade”. Nos Estados onde os funcionários públicos e juízes não são eleitos pelo povo, necessitam de uma instancia legitimidora de suas atividades. O Judiciário, que é um poder executante, vai aplicar as normas produzidas por um Legislativo eleito pelo povo, cujos destinatários são potencialmente o povo, enquanto população, formando um ciclo de atos de legitimação que não pode ser interrompido. Assim o povo desempenha seu papel de instância global da atribuição de legitimidade democrática.

Numa reflexão da legitimidade, o autor examina a utilização da palavra povo mesmo quando o Estado funciona sem obedecer aos ditames democráticos, como em eleições fraudadas, ou quando o texto constitucional invoca o poder constituinte, mas é posta em vigor sem um procedimento democrático, entre outras situações. Neste caso, afirma que a invocação do povo é apenas icônica, a saber (26):

O povo como ícone, erigido em sistema, induz a práticas extremadas. A iconização consiste em abandonar o povo a si mesmo; em ‘desrealziar’ [entrealisieren] a população, em mitificá-la (naturalmente já não se trata há muito tempo dessa população), em hipostasiá-la de forma pseudo-sacral e em instituí-la assim como padroeira tutelar abstrata, tornada inofensiva para o poder-violência – “notre bom peuple”.

Neste sentido, Müller fala na possibilidade de se “criar o povo”, quando a população real impedir a os planos de legitimação, como nos casos de colonização, expulsão, reassentamento, e até mesmo por meio da “limpeza étnica” denotando uma prática tão bárbara quanto antiga. Assim, o povo como ícone não se refere a ninguém, mas é utilizado como figura mítica num discurso de legitimação.

Por fim, Müller trata o povo como “destinatário de prestações civilizatórias do Estado”. Ao povo não são impostos somente ônus e obrigações, mas também direitos. E Friedrich Müller aqui quer dizer, que todo homem, não importando se nacional ou não, desde que em território de Estado democrático será destinatário de benefícios e proteção. Assim, a distinção entre direitos de cidadania e direitos humanos não é apenas diferencial, mas relevante. “Não somente as liberdades civis, mas também os direitos humanos enquanto realizados são imprescindíveis para uma democracia legítima”. (27)

CONCLUSÃO

Diante desta panorâmica em que buscamos as formas variadas com que os autores empregam a palavra povo, foi possível perceber o sentido plurívoco que evoca a partir da história e dos grandes mestres que se dispuseram a enfrentar o tema. É, portanto um termo dotado de historicidade, e que encontra sentido de natureza política, sociológica, étnica, religiosa, jurídica, entre outros. Tarefa árdua para qualquer estudioso no tema.

Assim, encontramos autores, como Kelsen, que se importou basicamente com seu sentido jurídico, porque reduziu o Estado e seus elementos ao estudo da norma jurídica. Zipellius se interessou sobre o tema, abordando-o tanto do ponto de vista político como do ponto de vista sociológico. Jellinek, que produziu uma obra dedicada ao estudo da teoria do Estado, desenvolveu e defendeu com ardor seu pensamento, sendo talvez o autor que mais profundamente estudou o tema Estado.

Os autores nacionais também têm obra volumosa e consistente sobre teoria do Estado. Mas só recentemente passamos a dar valor ao tema. O Direito constitucional passou a ocupar um lugar de destaque depois de ser ignorado por grande parte da doutrina, ocorrendo o fenômeno da constitucionalização do direito. o direito deixa de ter seu eixo central as relações privadas, para se dar destaque ao direito público e, mais precisamente, o direito constitucional.

Assim, o povo deve ser tema constante no direito constitucional quando se está diante de um Estado Democrático de Direito como professa a Constituição da República de 1988. Ficamos com as palavras de Friedrich Müller (28): “Constata-se logo que “povo” não é um conceito simples nem um conceito empírico; povo é um conceito artificial, composto, valorativo; mais ainda, é e sempre foi um conceito de combate”.

NOTAS

Carlos Maximiliano ensina que apesar do brocardo estar expresso em latim, não teve origem no Direito Romano, que ao contrário, nas palavras de Ulpiano entendia que “embora claríssimo o edito do pretor, contudo não se deve descurar da interpretação respectiva” (Quamvis sit manifestissimum edictum proetoris, attamen non est negligenda interpertatio ejus). Ver em MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2002, pp. 27 e 28.
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 35.
Cf. LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito, p. 454.
ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 2.
FICHTE, J. G. Grundlage des Naturrechts, 1796, apud ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 36.
Ob. cit., p. 38.
Ob. cit., p. 43.
STRECK, Lenio Luiz e MORAIS, José Luiz Bolzan de. Ciência política e Teoria Geral do Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 154.
MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 190.
Grifos do autor.
Ob. cit. p. 198.
Kelsen, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 334.
ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 93.
BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. São Paulo: Malheiros, 2001, pp. 74 a 78.
DALLARI, Dalmo. Elementos de teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 85.
MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 182.
Ob. cit. p. 183.
JELLINEK, Georg. Teoria General Del Estado. Cidade do México: FCE, 2002.
JELLINEK, Georg. Teoria General Del Estado. Cidade do México: FCE, 2002, p. 391.
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Ob. cit. p. 1021.
DALLARI, Dalmo. Elementos de teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva.
MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? São Paulo: Max Limonad, 2003, p. 55.
Ob. cit., p. 67.
Ob. cit., p. 76.
Ob. cit., p. 118.

REFERÊNCIAS

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JELLINEK, Georg. Teoria General Del Estado. Cidade do México: FCE, 2002.

KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.

MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2002.

MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? São Paulo: Max Limonad, 2003.

STRECK, Lenio Luiz e MORAIS, José Luiz Bolzan de. Ciência política e Teoria Geral do Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.

ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.

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