Felipe Dutra Asensi
Bacharel em Direito pela Universidade Federal Fluminense e Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, trabalha com pesquisas no âmbito do Direito Constitucional, Teoria Política e Instituições Democráticas,na área de Direito Penal, estuda como a democracia representativa se relaciona com as diversas instituições criminais
Resumo
Em sua teoria do Estado, Friedrich Nietzsche demonstra-se como fundamentalmente contrário à democracia moderna, destacando que esta representa a supervalorização da igualdade e, neste sentido, impede o crescimento de grandes homens que promovam o progresso da cultura e da humanidade. Através da categoria de novos filósofos, Nietzsche propõe uma forma de superar o movimento democrático de modo que a cultura será reconstruída sob uma nova roupagem que não está centrada nos valores dos escravos (povo), mas nos valores dos homens excepcionais. Conclui-se, assim, que, em Nietzsche, são os governantes que devem se proteger dos governados, e não o inverso tal qual preconizava Karl Marx.
Palavras-chave: Democracia, Modernidade, Igualdade, Cultura
Abstract
In his theory of the State, Friedrich Nietzsche has demonstrated as basically contrary to the modern democracy, detaching that it represents the supervaluation of the equality and, in this direction, it hinders the growth of the great men who promote the progress of the culture and of the humanity. Through the category of new philosophers, Nietzsche proposes a form to surpass the democratic movement so as to the culture be reconstructed by a new way that is not centered in the values of the slaves (crowd), but in the values of the exceptional men. It concludes, thus, that, in Nietzsche, are the governing that must be protected from the governed, and not the inverse such as defended Karl Marx.
Keywords: Democracy, Modernity, Equality, Culture
Introdução
Friedrich Nietzsche, ao realizar uma reflexão acerca da democracia e de seus elementos essenciais, toma uma posição claramente contrária a ela, ao constatar que em todas as ideologias democráticas há algo que detesta: a supervalorização da igualdade. Em O Estado entre os Gregos, Nietzsche repudia esta valorização da igualdade retomando os gregos que, a seu ver, eram políticos por natureza. Parte-se do pressuposto de que, na era moderna, não são os poetas e os grandes homens que produzem as representações do mundo e da vida, mas sim os escravos rudes e grosseiros, malfadados à sua eterna condição. Ou seja, a doutrina da igualdade é uma doutrina que vem de baixo, é algo do povo inferior, e não dos aristocratas no sentido aristotélico e nobre do termo.
Neste artigo, de cunho descritivo através de uma abordagem qualitativa, será realizada uma reflexão acerca das críticas do filósofo Nietzsche a respeito da democracia, partindo-se da premissa de que esta leva ao empobrecimento da cultura e à indistinção entre governantes e governados.
Democracia e progresso da cultura
Segundo Nietzsche, todas as ideologias democráticas (inclusive socialistas, liberais, etc) têm um ponto em comum: a sua base é fundada no cristianismo, na medida em que, sendo humanistas, pregam a igualdade dos homens. Enquanto o cristianismo ressalta que todos são iguais perante Deus, os modernos somente substituem Deus pelo Estado. Permanece, então, o sentimento de igualdade que se originou no cristianismo e se irradiou por todas as doutrinas democráticas.
Em verdade, a modernidade traz consigo a condição de escravo a todos os homens. A ênfase na dignidade do trabalho, deste modo, é uma forma do escravo dignificar a sua própria condição pois, já que o indivíduo não pode deixar de ser escravo, ele dignifica e confere um valor a tudo que faz enquanto tal. Assim, o sentimento do escravo com relação ao senhor é o da inveja, e esta inveja enseja a vingança e revolução.
Para os gregos, por exemplo, trabalhar era sinônimo de vergonha; para os modernos, é sinônimo de dignidade. Entretanto, para o surgimento dos grandes homens, é necessário que uns trabalhem e outros não; uns tenham tempo para pensar e outros não; uns tenham ócio e outros não. Somente assim, segundo o filósofo alemão, será possível o progresso da humanidade. Deve-se ter em mente que a escravidão é a essência da civilização; logo, sempre houve senhor e escravo, em contraposição ao que prega o ideal de igualdade democrática. Na verdade – e Nietzsche frisa muito bem isso – as relações de poder são constitutivas e indissociadas da vida humana.
Neste sentido, Nietzsche afirma que a cultura moderna é vulgar, superficial e pobre, pois as representações, como vimos, advêm dos escravos. A era moderna equaliza senhor e escravo sob a idéia de todos são iguais perante a lei e, em virtude desta equalização, não há pessoas com tempo para pensar em coisas maiores e amplas sobre e para a humanidade.
Neste caso, dialoga-se diretamente com Rousseau. Segundo Nietzsche, quando Rousseau defende o bom selvagem, ele nega as grandes obras da civilização. Rousseau seria negligente pois, efetivamente, são os grandes homens que revolucionam e fazem a história, e não as massas. A escravidão, desta forma, é a destruição da possibilidade que os homens têm de construir os grandes homens. O líder, por exemplo, não pode ficar restrito ao trabalho material, pois só se pode saber e criar se tiver disponibilidade de tempo. Mais especificamente, sem a escravidão não há cultura, civilização ou homens grandes. O homem tem potencialidades, mas a modernidade frustra o seu desenvolvimento.
O Estado Moderno, por sua vez, é apoderado pelos interesses egoístas de uma aristocracia do dinheiro, que não tem qualquer interesse ou compromisso civilizatório. Ocorreu a desvalorização da política tal qual os gregos a viam – como uma atividade nobre – pois, em virtude da identificação entre governantes e governados, o candidato deve ser cada vez mais popular. Portanto, o Estado perde seu atributo de instrumento civilizatório para ser um instrumento popular.
A relação entre governantes e governados
A era moderna, em decorrência da ascensão irredutível dos movimentos democráticos, despolitizou as relações de poder e a própria política. O problema é que, historicamente, foi a partir de relações políticas que se construiu a civilização, enfatizando a separação entre governantes e governados. O movimento democrático confunde estes dois elementos separados historicamente.
O governo sempre foi superior ao povo, dando-lhes as direções a seguir. Se o governo se parece e corresponde aos anseios do povo, ele perde a sua capacidade de liderança e de guia do processo civilizatório. Mais precisamente, o governo não deve e não pode refletir a vontade do povo, sob pena de se tornar uma instância inferior e submetida a este. Esta idéia de Nietzsche é conflitiva com todos os teóricos democráticos, principalmente Rousseau e Marx. O governo que é governado pelos governados deixa de criar condições para o surgimento dos grandes homens, prejudicando a cultura pois, como vimos, a cultura da massa é medíocre e sufoca o aparecimento dos grandes homens.
Deste modo, a inversão entre Estado e povo é anti-histórica porque a política sempre foi um instrumento da cultura. Mais ainda: o auto-governo do povo acarretará a destruição do Estado, pois este torna-se algo supérfluo. A democracia, então, seria a forma histórica de decadência do Estado, constituindo-se como uma praga que se alastra e destrói os muros da cultura. O que destrói o Estado, então, é a dissolução da hierarquia e da desigualdade, liquidando a possibilidade de construção de uma nova cultura.
Em Nietzsche and Political Thought observa-se que
Cultura e Estado ¾ não nos devemos enganar a respeito disso ¾ são coisas antagônicas. (…) Todas as grandes épocas da cultura foram épocas de declínio político: o que é culturalmente grande foi sempre não-político e mesmo anti-político. (…) (WARREN, 1988, p. 69)
A democracia, para Nietzsche, se opõe ao sentido histórico pois adota a “religião da novidade”, negativizando o passado. Ela é partidária da barbárie e da revolução, esquecendo o peso dos valores construídos historicamente, de modo a torna-los meras abstrações facilmente revogáveis.
Uma tipologia da democracia
Como vimos, para Nietzsche, a democracia é um movimento irreversível dentro da Europa que se apresenta em diferentes versões. A noção de democracia abrange, deste modo, o aspecto sociológico, político, histórico e cultural.
Neste seio democrático, é impossível não lidar com as massas para efeitos de preenchimento de funções políticas. Os partidos políticos, assim, tentam cooptar e convencer as massas, no intuito de obter os seus votos. O preenchimento das funções políticas passa pela consulta às massas, e isso terá fortes conseqüências. Na medida em que precisam dos votos, os partidos devem aparentar capazes de trazer o bem-estar, cujo conteúdo é ditado pelo povo. Logo, os políticos, para serem eleitos, devem absorver o que a massa define sobre bem-estar, se identificando com os ideais do populacho. Em conseqüência disto, o ter de lidar com as massas vai confundindo cada vez mais governantes e os governados
O povo passa, então, a ser a fonte de legitimação do poder político porque, para ser adorado, o líder deve se identificar com o povo, realizando o que Nietzsche chama de pequena política. Mais propriamente, a cultura encontra-se em perigo pois os valores são ditados pela massa, que é essencialmente medíocre. Nietzsche vai mais além em sua crítica ao dizer que, se é preciso preservar os valores mais elevados da cultura, deve-se sair da política, já que esta se tornou uma coisa de medíocres. O próprio sufrágio universal não é um direito, mas sim uma concessão, porque não foi conquistado tal qual o movimento democrático narra.
Mesmo assim, a própria democracia não acontece na prática. Ela perde o seu sentido próprio na medida em que a vontade do povo não é efetivamente expressa, seja porque a do líder influencia, seja porque o sufrágio não é unânime. Assim, a democracia, enquanto auto-governo do povo e para o povo, não existe.
Com relação ao cristianismo, podemos dizer que a democracia mantém uma relação íntima. A própria divisão das coisas entre bem e mal influenciou o movimento democrático, tornando-o um cristianismo laiscizado. Em Nietzsche and Political Thought, diz-se que
Com a queda da cultura moral cristã, contudo, o Estado foi deixado com as exigências de sentido, mas sem possuir, ainda que paroquialmente, o tipo de cultura que tinha uma vez organizado estas exigências e fornecido as experiências de sentido. A crise de legitimidade da visão-de-mundo moral cristã tem uma dimensão política, na medida em que o Estado perde os seus meios religiosos de legitimação. Na medida em que a perda da cultura moral cristã ocorre sem a formação de um eu soberano, cria-se a oportunidade para que o Estado forneça sua própria legitimação manipulando as auto-identidades. Dessa maneira, o Estado assume o papel deixado vago pela Igreja. Unicamente no período moderno, então, torna-se possível para o Estado explorar diretamente as necessidades reflexivas, provendo uma identidade substitutiva para o eu em relação à comunidade. (WARREN, 1988, p. 66)
Conclusões
Em virtude desta condição, é preciso que os homens que queiram se contrapor à democracia sejam muito fortes e desejosos pois, no mundo moderno, impulsionou-se a feminização e a fragilização dos indivíduos. Este mundo é uma doença que vai tomando o homem e fragilizando-o de modo a desprovê-lo de qualidades. Para evitar isso, os novos filósofos devem apoiar a sua moral na vida, e não na morte, de modo a transvalorar a dicotomia entre bem e mal.
Os novos filósofos, segundo Nietzsche, devem ter coragem e audácia pra ir contra o rebanho, representado pela mediocrização da cultura. O homem é um ser individual e pleno de capacidades e, quando ele se desenvolve no rebanho, este passa a aniquilar a potencialidade criadora da vida que o indivíduo tem. O futuro do homem deve sempre ser produto da sua vontade, e não da vontade do rebanho; assim, a coragem é um elemento essencial para enfrentar este rebanho, pois o que lhe é diferente é visto com maus olhos.
Na verdade, o homem moderno só reconhece a figura do espelho dele, que seja igual a ele e, em decorrência disto, o rebanho sempre joga pedras nos diferentes. O próprio grande homem, tendo em vista a força irreversível da democracia, pode ser engolido por este movimento democrático a qualquer momento. O rebanho é tirânico e, se a sua tirania for eficiente, a possibilidade da construção de grandes homens se reduz na mesma proporção da coragem de se contrapor ao mundo moderno. O homem especial, o excepcional, não só se vê perseguido como também é forçado a introjetar algum tipo de culpa, condenando a si mesmo por não ser medíocre, por não ter uma alma de rebanho.
Havendo uma linguagem do forte, há por sua vez uma do fraco, uma linguagem do rebanho. É dela que se deve precaver. Há nela um evidente discurso do ressentimento, que atribui todas as desgraças do mundo e da sua vida aos outros. Incapaz de assumir a sua responsabilidade pessoal (atributo apenas dos fortes), o medíocre transfere a causa dos seus inúmeros fracassos e decepções a tudo o que está além e acima dele. O sentimento do rebanho – expressão coletiva do medíocre e do baixo – volta-se então contra o que se destaca acusando-o de não ter fracassado e sucumbido na vida como os demais.
Neste sentido, Nietzsche inverte o primado marxista de que as idéias dominantes são as da classe dominante. Para Nietzsche, ao contrário, são os dominadores que têm que se precaver das perigosas e ameaçadoras idéias dos dominados, invejosas e pervertidas que foram exatamente por terem sido de alguma forma oprimidos.
Bibliografia
NIETZSCHE, Friedrich. O Estado entre os gregos. Disponível em:
WARREN, Mark. Nietzsche and political thought. Massachusetts: The MIT Press, 1988 [trad.: Noéli Correia de Melo Sobrinho]