Vinício C. Martinez
doutor em Educação pela USP, professor da Faculdade de Direito da Fundação de Ensino Eurípides Soares da Rocha em Marília (SP)
RESUMO: O texto procura abordar (indicando algumas pistas) a idéia de que, do século XVII em diante, a política passou definitivamente a ser a fonte primeira e primária do direito (jurisdicização). Ao que se seguiu, como desdobramento quase natural, a geração de direitos políticos e, com eles, a própria expectativa de que o poder político seria julgado, agora a partir do século XX (judicialização). Por fim, dada esta expansão da judicialização do poder político, agora o que temos em tela é a judicialização dos juízes, isto é, do Poder Judiciário.
PALAVRAS-CHAVE: jurisdicização; judicialização; política; Estado de Direito.
SUMÁRIO: 1. Jurisdicização da política; 2. Judicialização da Política; 3. Judicialização do Poder Judiciário; 4. Política e Direito; 5. Visibilidade do Tema; 6. Bibliografia.
1ª Fase: Jurisdicização da política
Nosso tema remonta aos séculos XVII e XVIII, mais precisamente à fase inicial do Estado de Direito – em que o próprio Direito Moderno é embrionário, primário e originário – e que, de certa forma, também corresponde ao Estado Constitucional: da constitucionalização da atividade política. O Estado Constitucional nasceu na Revolução Americana e na Revolução Francesa e se sedimentou nas suas Constituições (1). É uma fase privilegiada para a análise que propusemos porque se trata da geração de direitos provinda diretamente da interface política, ou seja, foi nesse período histórico que deslancharam os direitos políticos.
Por isso, essa fase também costuma ser designada como a primeira tentativa (com sucesso) de “racionalização da política”, de instauração de amplo e ilimitado Poder Constituinte Popular (um verdadeiro Estado de Direito Constituinte Revolucionário ou Originário), da primeira e séria tentativa de positivação constitucional da vontade política do povo (Negri, 2002).
Em outras palavras, nesta fase inicial de criação/afirmação dos direitos políticos, estamos tratando da conhecida jurisdicização da política e do poder. O que ainda remete para a idéia fixa e central de que há uma transformação da política em lei – sendo que a lei também é entendida como ato organizado (que deriva da vontade e da soberania popular) e racional (quando se torna ou passa a fazer parte de uma instituição representativa do poder político).
Especificamente no período revolucionário apontado, a racionalização e a institucionalização da política estiveram a cargo da Assembléia Nacional Constituinte legal e legítima (não só representativa, como hoje em dia – pois, muitos dos constituintes foram combatentes). A Assembléia foi consentida e produtora, ao mesmo tempo, de um novo consentimento, consenso, demonstrando ampla capacidade de normar, sem ser normada. Então, a lei (já como produto derivado da política) constitui-se em meio de contenção dos efeitos (violentos e de transformação) dessa mesma política que lhe deu vida, origem.
Assim, neste sentido, a lei equivale à vontade do povo constituinte em ver a relação política ser transformada em sentido expresso, descritivo, narrativo (e mesmo que conciso). Com isso, entramos na era da política publicada em texto e ao alcance de todos: (a lei é) a política reduzida a termo.
De modo similar, foi uma tentativa honrada e bem intencionada dos revolucionários (um Maquiavel a favor da soberania popular e não só estatal) em circunscrever suas ações políticas em legado escrito, objetivo, uma espécie de domesticação ou esterilização da violência política própria desse período revolucionário. Neste aspecto, o direito corresponde à busca do equilíbrio, entre a força política desperta pela revolução e a razão que leve à construção do novo Estado, da Federação e do Estado de Direito agora derivado, uma vez que já se materializou na própria Constituição: um contrato de paz ou trégua estabelecido pelo vencedor.
A lei, portanto, surge dessa fase histórica como transformação da política, do seu jogo e das regras inatas a esse tipo de “realismo do poder” (que vença o mais astuto e de maior virtú), na palavra escrita postada no novo contrato social (2). Até porque a palavra falada tem o calor da hora, do discurso e também se esvai com o vento e com o tempo – e a escrita é o documento em que se sintetiza um espírito, as intenções mais fortes, os ideais prevalecentes. Enfim, a Constituição documenta a nação, a cultura jurídica, o apego popular e democrático ou não. Em seguida, a lei (re)converte-se, ou melhor dizendo, gera os direitos políticos de primeira geração. De lá (séc. XVIII) para cá (séc. XXI), outras gerações ou dimensões de direitos políticos já estão à prova da realidade e da apreciação popular.
Como resumiu Teixeira (2001), os principais direitos políticos trazidos e assegurados pela nossa atual Constituição refletem certa segurança jurídica conferida especialmente ao chamado Princípio Democrático – como sinalizado nas cláusulas pétreas no art. 60, § 4º, I a IV, da CF. Vejamos como ele recorta a Constituição:
Direitos políticos (art. 14 a 16); direito a questionar a constitucionalidade das leis e dos atos dos governantes (art. 103) (…) direitos (…) como vítima de desigualdades regionais e sociais (…) direitos do cidadão face à administração pública, no que diz respeito a cargos, empregos e funções públicas, aos concorrentes a obras, serviços e compra e alienações da administração pública, aos serviços públicos, à responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito público e de direito privado prestadoras de serviços públicos; direito de responsabilizar o presidente da República por atos que atentem contra o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; direitos humanos e direito de responsabilizar o Estado pela sua violação; direitos dos anistiados e das pessoas punidas com perda dos direitos políticos; direitos dos servidores públicos, ativos, inativos e pensionistas (atualização dos benefícios) (pp. 169-170).
Aliás, neste sentido, faço apenas uma ressalva: é necessário ressaltar/contextualizar os direitos políticos em fases ou gerações. Vejamos resumidamente algumas dessas fases, dimensões ou gerações de direitos (3) (não estando totalizadas):
1. direito de resistência (no caso de o soberano atentar contra o povo);
2. direito de petição (para inquirir abuso de poder ou requerer novos direitos junto ao soberano);
3. direito de participação e de reunião (além das corporações de ofícios);
4. direito de voto (ainda censitário);
5. direito de associação (em partidos, sindicatos);
6. sufrágio universal (em que entre 80 e 90% da população têm condições de intervir nos rumos do Estado);
7. direito de voto e de assembléia (democracia plebiscitária: decisão política, com aceitação ou reprovação popular, sobre políticas públicas por meio de referendos e plebiscitos);
8. direitos da democracia radical (exercício vigoroso da soberania popular como controle do poder político);
9. direitos da democracia virtual (o uso da rede como interface entre cidadãos e governo) (4).
Em suma, trata-se tão somente do Princípio Democrático aplicado a toda Administração Pública, conforme nos ensina Canotilho (pp. 285-325), e não só ao direito de votar e de ser votado (como se pensa no dia-a-dia). O Princípio Democrático nem mesmo se resume aos direitos políticos de participação, como aos já referidos referendos ou plebiscitos. Como indica Canotilho, trata-se do princípio democrático como norma jurídica constitucionalmente positivada, para em seguida complementar: “é um princípio jurídico-constitucional com dimensões materiais e dimensões organizativo-procedimentais” (s/d, p. 285).
Corresponde à fase dos direitos políticos concernentes ao Estado Democrático de Direito e aos mais plenos direitos da cidadania democrática: a exemplo do fato de que o cidadão deve fiscalizar o poder público, uma vez que a CF o trata como agente ativo (e não passivo) do Estado, da República, da Federação e da Administração Pública. E já que iniciamos o tratamento da Administração Pública, vejamos em que sentidos a jurisdicização se transforma em judicialização da política, no tocante à responsabilidade pública (art. 37 e 38 da CF) (5).
2ª Fase: Judicialização da Política
Como dissemos, este é um processo que se inicia no século XX, ao mesmo tempo como reflexo e como alavanca do Estado Democrático (ao final da 2ª Guerra Mundial) e depois, entre a década de 70 e 80, como marca que selaria o perfil do Estado Democrático de Direito (com as Constituições Portuguesa e Espanhola).
Do que vimos, a racionalidade da lei, num sentido mais preciso, deve seguir e/ou induzir ao controle social da política – tornando o poder e a política mais amarrada, estando mais contidos, justamente porque ficaram mais visíveis e transparentes. E com isso a lei ainda pode ser vista como luneta ou como microscópio, para quem abre ou então fecha o foco, se requer o macro ou distante ou se prefere o próximo e mais recôndito, de acordo com o campo de visão histórico ou cotidiano, social ou momentâneo, se opta pela ótica da classe e do grupo ou só dos indivíduos, se quer o todo ou se bastam as parcelas.
De lá para cá, diante dos incontáveis efeitos decorrentes desse processo de jurisdicização da política, deve-se acrescentar a noção e a prática posterior da judicialização da política e do poder (e que reputamos da mesma natureza, mas de outra ordem). Trata-se do período em que a política e os políticos vão parar nos fóruns, nas barras dos tribunais, no banco dos réus.
Equivale à passagem da primeira fase da jurisdicização (deliberação com base na vontade política popular) a um segundo estágio, em que o julgamento agora se dá a bem do interesse público e é coordenado por magistrados especializados. A transição se dá do popular ao especialista, do político ao técnico – uma transição que consubstancia o conhecimento técnico acumulado pelo Poder Judiciário como disponibilidade (nem sempre disposição) para punir e reparar os desvios dos atos administrativos e políticos. Como diz Teixeira (2001):
No Brasil (…) tanto os juízes de primeiro grau quanto o Supremo Tribunal são autorizados constitucionalmente ou podem ser requisitados a intervir no processo de elaboração e de implementação de políticas por meio da sua atuação limitadora da ação dos outros poderes, ou seja, desde que representando seus partidos, os políticos bem como os atores sociais representando entidade de classe de abrangência nacional, na forma prescrita pela Constituição e de acordo com a interpretação do STF, têm legitimidade para solicitar a declaração de inconstitucionalidade em processos concretos ou de revisão abstrata da norma. A identificação desse fundamento no sistema político é critério crucial para se verificar a possibilidade de haver ou não judicialização em relação a todas ou a determinadas políticas públicas (6) (p. 73).
De forma direta, do julgamento moral e eleitoral se vai à análise técnica, formal e especializada, do povo recorre-se ao profissional. Ainda é curioso notar que a política geradora da lei é agora julgada pela própria lei a que deu origem: é a ação da regra da bilateralidade da norma jurídica. É a ação direta da judicialização da política, do Poder Judiciário e da polícia, além de corresponder à maturidade político-institucional alcançada no Estado Democrático de Direito: um modelo de Estado socialista no bojo da economia capitalista.
O Estado Democrático de Direito, no contexto que nos interessa no texto, foi capaz de unificar posturas, perfis e preceitos de modelos ou fases de Estados anteriores. Aliás, recorde-se, as cláusulas pétreas representam e preservaram exatamente os ditames do chamado núcleo duro do Estado de Direito e do Estado Democrático. Excluiu-se a possibilidade de revisão constitucional, por meio de emendas constitucionais das seguintes prerrogativas: a) Federação; b) separação dos poderes; c) princípio democrático; d) direitos individuais. Mas, vejamos mais analiticamente:
1. Estado de Direito originário (incluindo o Estado Liberal): deste modelo, reteve-se o império da lei e a bilateralidade dos efeitos da norma jurídica (o que afeta o Estado); a defesa dos direitos individuais. O que vale dizer, mais uma vez, transformou-se em jurisdicização e posterior judicialização da política e do Poder Judiciário. Fenômeno que, juridicamente, corresponde à última e mais elaborada geração de direitos políticos: quando as minorias podem vencer, judicialmente, as maiorias partidárias ou parlamentares (CF, art.60, § 4º, III, IV).
2. Estado Democrático (somando-se o ideal de República e de Federação): vê-se a fruição do princípio democrático em sua essência, pois se estabeleceu e se cumpriu o preceito de que: “a regra da maioria será sempre acatada, mas, ainda mais legítima, quando disser respeito à segurança jurídica dos interesses manifestados pelas minorias” (CF, art.60, § 4º, I, II).
3. Estado Social (sobretudo as garantias sociais e trabalhistas): no jogo de forças perpetrado na Assembléia Constituinte de 1986, no Brasil, neste caso, levou melhor a direita, uma vez que os direitos e as garantias sociais e trabalhistas não foram acolhidas no rol das cláusulas pétreas, assim como o próprio princípio da justiça social. Este fato político permitirá no presente-futuro a revisão, flexibilização, extinção de muitos direitos trabalhistas. Portanto, não se trata de esquecimento ou descuido: era ato intencional e deliberado deixar um clarão jurídico às administrações futuras para denegar, desfigurar muitos direitos secularmente conquistados e garantidos (CF, art. 6º e 7º).
Porém, ainda que tivéssemos sofrido um abalo dessa grandeza nas instituições sociais (também democráticas), o princípio democrático saiu vitorioso, fortalecido e é isto que impede a tirania da maioria e fortalece a pluralidade e a tolerância política. A isto, no entanto, denomina-se de conquista popular da judicialização da política (um tratamento jurídico e técnico em benefício dos mais fracos politicamente). Esta é a posição suscitada pela leitura de Teixeira (2001):
O caminho da interação com o Judiciário, aberto aos partidos políticos, inquestionavelmente gerou espaço inédito à proteção e ao exercício dos direitos da minoria parlamentar. Da mesma forma, a extensão desse direito às confederações sindicais e às entidades de classe contornou o monopólio partidário da representação política, o que tem permitido que os diferentes grupos de interesse da sociedade exerçam, discutam e procurem a implementação dos direitos constitucionais (p. 26).
As Adins (Ações Declaratórias de Inconstitucionalidade) são o principal instrumento de judicialização da política ou de politização do Judiciário (7). Com a CF de 88, pelo art. 103, abriu-se um leque razoável para que novos agentes sociais e políticos pressionassem o Judiciário a tomar posições políticas. Um exemplo clássico envolveu a venda da Vale do Rio Doce, sobretudo quando houve uma procura intensa por liminares (Teixeira, 2001, pp 86-94).
Parece que essa discussão não diverge muito do que, há muito, José Eduardo Faria (1989) tratava como “politização das lides” ou de ´coletivização dos conflitos” (8). Uma vez que a política de resultados é evidente, manifesta, salta aos olhos em qualquer processo, haja vista que interesses estão invariavelmente em jogo e que, independentemente de qualquer noção ou perspectiva de justiça, os lados envolvidos consideram apenas a verdade parcial de cada um.
Por outro lado, institucionalmente, esta atuação do Poder Judiciário ainda equivale à revisão política (political review), uma prerrogativa do Judiciário em equilibrar, reverter, anular, corrigir a atividade política e/ou legislativa de profundo desinteresse social. Ainda com Teixeira (2001):
Ou seja, o juiz ou tribunal constitucional dispõe da prerrogativa de julgar, incidentalmente ou na hipótese de que seja requisitado pelos atores legítimos a fazê-lo, se determinada política legislativa está de acordo com os princípios e mandamentos da Constituição sem que para isso seja necessário decidir, tendo em vista um caso concreto. Enfim, julga-se abstratamente a lei, ou a proposta de lei, em si (p. 38).
Desta conotação, teríamos de encontrar uma (re)ligação com a proposta ou postura de Administração Pública que pudesse satisfazer minimamente as condições de governabilidade. Pois se vemos a capacidade notável, hoje em dia, do Poder Judiciário intervir/interferir nos assuntos concernentes ao executivo, por outro lado, juridicamente, o processo crescente, constante de jurisdicização já sinalizava para o estreitamente dos limites (liberdade de ação) das atividades e tarefas executivas. Parafraseando Carré de Malberg, já anotei em outro contexto que:
Por conseguinte, em suas relações com os administrados, a autoridade administrativa não deve somente abster-se de atuar contra legem senão que ademais está obrigada a atuar somente secundum legem, ou seja, em virtude das habilitações legais. Finalmente, o regime do Estado de Direito implica essencialmente que as regras limitantes que o Estado impôs a si mesmo, em interesse de seus súditos, poderão ser alegadas por estes da mesma maneira que se alega o direito, já que somente com esta condição terão de constituir, para o súdito, verdadeiro direito (Malber, 2001 IN: Martinez, 15/05/2204).
Vê-se aí que, ao longo dos séculos XIX e XX a administração do Estado veio sendo condicionada juridicamente (ora pelo princípio da legalidade, pela regra da bilateralidade da norma jurídica, ora pela regulação/limitação direta das atividades políticas e administrativas do Estado), quer fossem atividades próprias do Legislativo, quer fossem as do Executivo. De qualquer modo, o administrador público cada vez mais será julgado e levado a tomar decisões de cunho político e administrativo (mesmo que a contragosto), em virtude de decisões judiciais. É evidente que o Poder Judiciário arrogou para si muitas das tarefas antes exclusivas do Poder Executivo e, por isso, diz-se que é chegado o tempo do juiz-administrador.
3ª Fase: Judicialização do Poder Judiciário
No momento atual, numa terceira fase, estamos tratando da judicialização do Poder Judiciário: os juízes são julgados por outros juízes e o Poder Judiciário é analisado/julgado pelo poder político e pela sociedade civil organizada. Isto é, da política vieram as leis que passaram a julgar a própria política, e agora a política (por meio do controle externo do Poder Judiciário) passaria a julgar os antigos ou clássicos julgadores – os juízes.
Com a judicialização do Poder Judiciário, entretanto, advém outra modalidade de problemas de ordem teórica e prática – teoricamente, o próprio sistema de freios e contrapesos nem sempre está equilibrado e, de forma prática, não há como os juízes serem “homens da lei imparciais”, uma vez que é impossível esvaziar a mente – o que seria necessário para que as decisões pudessem ser objetivas, neutras e imparciais. Portanto, daqui por diante, é preciso sempre retomar esta formação/articulação inerente entre Política e Direito – pois é disso que se trata, em essência, desde o início do texto. O que ainda nos leva a pensar que o declamado governo das leis nada mais é do que um governo de políticos que cria(ra)m leis para si, para os outros e para o governo.
É coisa comum entre os juristas dizer que se prefere o governo das leis ao governo dos homens, pois as leis tendem a ser mais estáveis e menos fruto do capricho, como ocorre com os homens que cuidam da política diária. De certo modo, concordo com a análise, pois é melhor uma lei ruim do que o melhor dos soberanos – afinal, a lei pode ser (normalmente é) fruto de um capricho (pessoal, partidário, mas limitado em alcance), ao passo que os soberanos vivem extensivamente criando esses caprichos.
De modo derivado, pode-se dizer que, no governo dos homens, nas lacunas ou indecisões do corpo jurídico, os juízes decidem como homens da política e com seus valores e preconceitos. Mas isso ocorre somente quando há espaços abertos na lei, ou será capaz de revelar certo caráter desses juízes?
Diria que não às duas perguntas, porque penso que se trata de uma constante, dada a própria “natureza humana” e a proximidade que há entre Direito e Política. De maneira decorrente, ainda se pode dizer que, mesmo sendo “homens de bem”, os juízes são incapazes de bloquear a transmissão e transferência de seus próprios erros, preconceitos, falhas, deficiências para suas práticas jurídicas (9).
Ainda diria que isso tudo é “humano demais” e que essa “incompletude humana” (somos seres imperfeitos) torna suas ações e decisões menos objetivas, menos imparciais, menos controladas, menos impessoais. Pois é o que todos nós somos: seres incompletos e políticos – a Política, aliás, poderia ser uma forma de dirimir o alcance e a extensão dos danos causados pelo erro involuntário (10). Porém, essa situação seria possível apenas se a Política fosse servida pelo diálogo e sem que “os fins justificassem os meios”.
Em essência, esta estreita relação entre um suposto “universo jurídico” e outro “universo não-jurídico” ou é estreita demais ou nem existe. O suposto universo jurídico é exatamente o que se chama de jurisdicização da Política, positivação dos conflitos políticos ou simplesmente quer dizer que a lei é o resultado direto da atividade parlamentar. Sem dúvida, constitui-se numa grande conquista da humanidade porque a própria violência (inata à política) seria sublimada, minimizada ou então generalizada pela lei (“O Estado possui o monopólio do uso legítimo da força física, da violência”, diria Max Weber).
De outro modo, o universo não-jurídico, tanto a Política quanto a Moral, tanto os costumes quanto a Filosofia, são a fonte principal e primária do Direito, sobretudo se o analista parte da lei ou da Constituição. Com tal positivação de interesses pessoais ou partidários, a lei revela-se como produto de um Poder Legislativo em que seus agentes são antes de tudo políticos (preocupados com a reeleição). Somente de forma derivada é que o legislador se entende como “produtor jurídico”, e tanto é assim que se autodenominam de “políticos profissionais”. Ao pensarmos na Constituição Federal, então, a questão se mostra ainda mais clara, pois a Constituição traça o perfil do Estado, da política e da força aplicada às duas.
O Estado de Direito, portanto, é antes de tudo um “estado da Política” e independentemente das leis, dos legisladores ou dos juízes terem boa ou péssima índole. O Estado de Direito reflete apenas o “lado mais forte, o lado que venceu”, as causas ou teses com maior poder de convencimento (moral ou imoral), o grupo, a classe ou o partido com mais dinheiro para fazer política (ou para fazer a sua política se tornar verdade). Por isso, o Estado de Direito acolhe uma verdade, que é a verdade do poder.
No mais, a justiça é uma conseqüência, um resultado derivado, uma condição secundária que se tornou transparente, que não naufragou completamente. E é bem verdade que essa não é uma questão imperiosa nem à Política e nem ao Estado de Direito porque, originariamente, nem um nem outro têm a justiça como fator fundamental. A Política nunca foi, entre os clássicos, definida como “caminho da verdade, da sabedoria ou da luz” – esta é apenas uma idéia religiosa e chinesa, correspondente ao taoísmo e ao budismo. E nem a confecção do “conceito” do Estado de Direito (no século XIX, com Robert v. Mohl) trazia essa característica como elemento de formação.
4. Política e Direito
Ao contrário do que possam parecer, essas alegações não nos desviariam do nosso curso e que deve ser a busca da verdade e da justiça, pois reconhecer as implicações da análise realista sobre a realidade é exatamente ajustar o curso da nave. E também por isso seria imprescindível reinventarmos hoje ao menos a vontade, o espírito que orientou este Estado de Direito Constituinte Originário. Pois, o único remédio jurídico que pode conter, revirar ou ajustar o poder político corresponde às medidas que provenham da ou na direção da soberania popular, da vontade (aí sim) da maioria. É quase como reinventar o pacto ou contrato constitucional que deu origem aos direitos e às garantias políticas que temos em vigor hoje (como o de controlar os poderes). É como reinventar, revitalizar a política para revigorar a lei hoje combalida, quase inerte, prestes a espirar.
No artigo, vimos que há uma crescente politização do Estado de Direito – ao menos desde que os direitos políticos foram recepcionados pelo ordenamento jurídico, especialmente no âmbito constitucional. Mas hoje, com a crescente judicialização da política (decorrente da jurisdicização), é como se o Estado de Direito estivesse privilegiando o direito político, assim como sua matriz teórica (no século XIX) privilegiava sobremaneira os direitos individuais – e mais sensivelmente o direito à propriedade privada.
O Estado de Direito, portanto, não pode ser tomado como um valor universal, dotado de um significado que lhe bastasse em si mesmo. Pois, em sentido contrário, o conceito jurídico necessita de complementos valorativos, adjetivos expressivos e, no caso do artigo, tomamos a política (Estado de Direito Político) como realidade e não só como apelido que lhe empresta algum pequeno sentido adicional.
Também vimos que, com o processo de judicialização, a política adquiriu novas regras e nova lógica – observando-se nesta fase que a política desembarcou nos meandros e faz uso dos meios e dos mecanismos do mundo jurídico estrito senso. Isto porque a política passou a fazer parte desse mundo jurídico, outros diriam que colonizando o Direito. Na verdade, “a Política fez-se Direito”, a Política entranhou-se no Direito e engravidou-o de intenções, vocações, interesses e negócios nem sempre racionais, controlados, objetivos ou imparciais. Essa atividade migratória da política levou o Direito a relacionar sentidos controversos, como: indefinição, incerteza, idiossincrasias. Como sintetiza Calmon de Passos: “seria ingenuidade ou desinformação negar a crescente politização do jurídico e juridicização do político, fruto de um peculiar estado de coisas maximizado no segundo pós-guerra” (2000, p. 91).
E isso se dá dessa forma porque Direito é Poder, como binômios que são equivalentes, pontas alternadas da mesma inclinação social e política predominante em dado período histórico. De modo simples, Direito é Poder porque sempre se trata de uma decisão ou interferência no curso regular das coisas – o Direito é o poder de interferir. Como diz Calmon de Passos (2000):
O Direito, enquanto apenas enunciado, norma geral, juízo é de todo impotente e sua realização só se dá em termos de decisão no caso concreto, que reclama para sua fidelidade ao previamente enunciado, adequada integração entre enunciação/organização/processo/procedimento, com submissão dos envolvidos, no seu operar, aos postulados básicos do Estado de Direito Democrático (…) Nenhum de nós tem dúvida de que o Direito é indissociável do poder. Direito é decisão, mas decisão que necessariamente deve revestir-se de impositividade. Apto para dizer o Direito é o poder institucionalizado. Este dizer o Direito pelo poder político é algo, portanto, que integra o próprio “ser” do Direito (…) O perfil da organização política deixa de ser algo indiferente ou estranho ao ser do Direito, passando a integrá-lo e afeiçoá-lo (p. 80).
Um fenômeno que também nos permite perceber e analisar como esse efeito dúbio transparece no estudo do Direito. Afinal, o Direito é parte integrante e fundamental do processo civilizatório ou é mero mecanismo de dominação de classe?
Pois bem, do que já vimos, é possível perceber que, tal qual a Política, o Direito oscila como pêndulo diante dos valores: virtú ou fortú? Diante dos casos concretos, vendo de perto ou de longe, é assim que entenderemos melhor porque Direito é sinônimo de poder.
5. Visibilidade do Tema – a própria história do artigo
O artigo nasceu da minha necessidade de participar de um seminário de pesquisa (11), em que se tinha como objeto de pesquisa o tema do “controle externo do Judiciário, como fator preponderante de exercício do controle interno”: o que, em tese, evitaria ou pelo menos inibiria os arroubos do poder (demonstrado pelos piores juízes). Em outro contexto, caracterizava-se esse processo de apequenamento do servidor público de síndrome do pequeno poder (se bem que o juiz não tem um pequeno poder).
Depois da leitura do trabalho, e antes da sua apresentação, fiquei impressionado pelo tema e pus-me a (re)ler alguns textos e anotar/descrever minhas posições e interpretações. Ao final de dois dias, mas antes ainda da apresentação, havia produzido a base estrutural do artigo – esse esforço valeu como suporte de minhas próprias argüições no seminário, na posição de orientador. No sumário final dos capítulos, que deverão ser produzidos, chegamos à seguinte visualização dessa politização do Poder Judiciário:
1º Capítulo: resgata a tese clássica de que a divisão do poder é o melhor meio de controle do poder. Subdivido, ficaria assim: 1. Locke e o Poder Judiciário como apêndice do Legislativo; 2. Montesquieu e a divisão dos poderes; 3. O Federalista e o embrião da Federação; 4. O sistema de freios e contrapesos.
2º Capítulo: Analisando-se a história e a estrutura do Judiciário no Brasil, chega-se à conclusão da necessidade de haver controle externo. Basicamente, corresponderia a: 1. História do Poder Judiciário no Brasil; 2. Estrutura do Poder Judiciário no Brasil; 3. Controle externo do Poder Judiciário; 4. Controle interno do Poder Judiciário.
3º Capítulo: A falta de qualquer controle sobre o poder, neste caso, do Poder Judiciário, pode resultar em delírio e corrupção. Pronto, ficaria assim: 1. Os arroubos do poder; 2. As demonstrações de poder dos juízes; 3. Casos concretos que caricaturam essa ausência total de controle do abuso de poder.
A idéia geral a prevalecer e a nortear a conclusão da dissertação de mestrado, ao que me parece, segue a mesma linha da notável visão de que “se o poder corrompe, o poder absoluto (sem controle externo e interno), corrompe absolutamente”. O que ainda demonstra que hoje é imprescindível que haja abertura, transparência e correição de todo e qualquer ato administrativo, especialmente os provindos do Judiciário – uma vez que ainda é entendido como defensor do povo. Por fim, é evidente que esta estrutura dos capítulos não teria sido construída sem a formação da banca e sem a presença e a participação sempre brilhante dos professores: Oswaldo Giacoia Jr. e Ednilson Donisete Machado. Todo e qualquer mérito, portanto, tem que ser compartilhado.
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NEGRI, Antonio. O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. 22ª ed. Malheiros Editores Ltda : São Paulo, 2003.
TEIXEIRA, Ariosto. Decisão liminar: a Judicialização da Política no Brasil. Brasília : Plano Editora, 2001.
Notas
1 Mas é um claro herdeiro do Bill of Rights, do século XVII.
2 A Constituição Americana não deixa de expressar esse novo contratualismo: elaboração jurídica e política do Estado, da Federação e da União efetiva na ação direta/diretiva do colono americano.
3 A idéia de geração de direitos é tomada aqui como sendo o momento em que, da criação do próprio direito (demanda social/promulgação ou não) até a verificação de alguma impactação mínima dessa nova reserva jurídica, há um ganho sensível/significativo de qualidade nas relações jurídicas e políticas envolvendo os agentes sociais relacionados/enlaçados pelo novo corpo jurídico – sem esta alteração qualitativa não haveria mudança jurídica, social, política que demarcasse o terreno da própria luta jurídica.
4 Este foi, exatamente, o objeto de nossa tese de doutorado (Martinez, 2001).
5 Frisamos, ainda, que este período selecionado coincide com a formação/institucionalização do Estado Constitucional (séc. XVIII) – de certo modo, o precursor do próprio Estado de Direito (séc. XIX).
6 Ainda com Teixeira vê-se que: “Tribunais e juízes fazem ou ampliam sua participação no processo decisório referente à formulação e/ou implementação de políticas públicas”. Teixeira denomina de decision-making esse processo político-jurídico em que surge a figura ímpar do juiz-administrador: o juiz que interfere cada vez mais na condução da Administração Pública (2001, p. 43).
7 É óbvio, mas é preciso frisar que o Poder Judiciário é parte do poder político que organiza o Estado-nação (onde há separação dos poderes), e que sendo poder faz-se por meio da ação política. Não é óbvio perguntar: sendo um poder, como pode o Judiciário ser neutro, imparcial?
8 Se bem que, neste caso, já dispomos do Mandado de Segurança Coletiva.
9 É de outra ordem e natureza, mas a idéia de que a judicatura é parte de uma missão gloriosa ou glorificada (característica que também já foi atribuída aos professores), aos poucos, vem sendo substituída pela consciência de que o juiz é um servidor público e, assim, um trabalhador. Essa situação, creio, traz inclusive o germe de uma consciência de classe e ultrapassa a consciência corporativa.
10 Para muitos, o erro involuntário ainda pode vir seguido de uma apelação em causa da virtude ou da virtualidade: “não queria, mas aconteceu”. O mal menor corresponde apenas ao fato óbvio de que não houve intenção, isto é, na ausência da intenção, o autor tenta minimizar a extensao danosa de seus próprios atos e erros ou descuidos e despreparo. E isto não é imperícia?
11 Da professora e advogada Ana Cristina Tavares Finotti. O trabalho foi apresentado no Mestrado em Direito do UNIVEM/Fundação, no dia 27 de maio deste ano. Chamo a atenção para esse fato, porque julgo que ele corrobora as teses centrais do artigo.