por Walter do Amaral
Dentre as garantias constitucionais estabelecidas no artigo 5º da Carta de República, encontram-se os princípios da “inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas” (inciso X); da “inviolabilidade do sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas”, podendo este último ser quebrado “por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual” (inciso XII).
Qualquer prova que seja obtida com a violação dessas garantias expressas e cristalinas, a própria Constituição Federal no mesmo dispositivo constitucional, garante também ao cidadão que “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos” (inciso LVI).
A mesma Carta Magna, ao estabelecer o direito das minorias parlamentares de constituir comissões de inquérito dispõe também que tais comissões “terão poderes de investigação próprias das autoridades judiciais” (CF, artigo 58, parágrafo 3º), observados todos os princípios constitucionais e da legislação processual penal.
Por sua vez, o Código de Processo Penal no artigo 20, determina às autoridades policiais que assegurem “o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade”, sigilo também que é imposto aos advogados quando o processo penal tramitar sob segredo de justiça (Lei 8.906/94 – Estatuto da OAB, artigo 7º, incisos XIII, XIV e XV, e parágrafo 1º ).
Os chamados sigilo bancário e sigilo fiscal, que a Constituição inclui genericamente no “sigilo de dados”, também estão resguardados no artigo 38 da Lei 4.595/64 que dispõe sobre o Sistema Financeiro Nacional, hoje regulado na Lei Complementar 105/2001 e no Código Tributário Nacional (artigo 198), respectivamente.
Todos esses princípios legais e constitucionais são garantidores de outro princípio maior que é o respeito à dignidade humana, garantindo-se aos cidadãos acusados em geral o “devido processo legal” e “o contraditório e ampla defesa” (CF, artigo 5º, LIV e LV), tudo isso para que não haja “juízo ou tribunal de exceção” (CF, artigo 5º, XXXVII).
Assim, qualquer violação dessas garantias, seja por que autoridade for, judicial, do Ministério Público, parlamentar ou policial, e até mesmo mediante veiculação nos meios de comunicação, constitui crime nos termos da legislação vigente, como adiante se demonstrará.
A Lei 7.492, de 16 de junho de 1986, que define os crimes contra o sistema financeiro nacional, no artigo 18 já tipificava como crime punível com pena de um a quatro anos de reclusão, quem “violar sigilo de operação ou de serviço prestado por instituição financeira ou integrante do sistema de distribuição de títulos mobiliários de que tenha conhecimento, em razão de ofício”.
Por sua vez, a Lei 9.296, de 24 de julho de 1996, que regulamenta o inciso XII, parte final, do artigo 5º da Constituição Federal, já no seu artigo 1º, adverte que a “a interceptação de comunicações telefônicas, de qualquer natureza, para prova em investigação criminal e em instrução processual penal, observará o disposto nesta Lei e dependerá de ordem do juiz competente da ação principal, sob segredo de justiça” (grifei).
Acrescenta no artigo 8º que “a interceptação de comunicação telefônica, de qualquer natureza, ocorrerá em autos apartados, apensados aos autos do inquérito ou do processo criminal, preservando o sigilo das diligências, gravações e transcrições respectivas” (grifei).
A violação do sigilo ou do segredo de justiça a que está sujeita a interceptação telefônica, “sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei” , constitui crime punível com pena de reclusão de dois a quatro anos e multa, conforme o disposto no artigo 10 daquele diploma legal.
A mencionada Lei Complementar 105, de 10 de janeiro de 2001, que dispõe sobre o sigilo bancário, determina que as informações prestadas mediante requisição do Banco Central do Brasil ou pela Comissão de Valores Mobiliários – CVM, em atendimento a iniciativa da autoridade judicial, terão “preservados o seu caráter sigiloso mediante acesso restrito às partes, que delas não poderão servir-se para fins estranhos à lide” (artigo 3º), constituindo crime punível com pena de um a quatro anos de reclusão e multa, sem prejuízo de outras sanções cabíveis, “a quebra de sigilo, fora das hipóteses autorizadas nesta Lei Complementar” (art. 10).
Já a Lei 9.034, de 3 de maio de 1995, que dispõe sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas, leva tão a sério a hipótese de violação do sigilo de dados, documentos e informações fiscais, bancárias, financeiras e eleitorais, que a “autorização judicial será estritamente sigilosa e permanecerá nessa condição”, e, verificada qualquer possibilidade de violação do segredo de justiça, “a diligência será realizada pessoalmente pelo juiz, adotado o mais rigoroso segredo de justiça” (artigo. 2º , III, e 3º), sendo o resultado da mesma apenas revelado às partes e seus procuradores, bem como ao Ministério Público, “em recinto isolada, para o efeito de que a discussão e o julgamento sejam mantidos em absoluto segredo de justiça” (artigo 3º, parágrafo 5º).
O Supremo Tribunal Federal, nos autos do Inquérito 381/DF, que teve como Relator o Ministro Célio Borja, já decidiu que “os documentos acostados aos autos que dizem respeito a processos administrativos sigilosos devem ser desentranhados, envelopados, lacrados e juntados por linha, devendo o processo correr em segredo de justiça” (DJ 18/11/1988, pág. 30022).
Feitas essas digressões, peço vênia para observar que nos meus 23 anos de advocacia e quase 11 de magistratura federal, nunca tinha assistido a um espetáculo tão deprimente e deletério ao Estado de Direito como as sistemáticas violações das garantias legais e constitucionais dos cidadãos investigados ou simplesmente testemunhas levadas ao plenário das diversas CPMI’s, ou a prestar depoimentos em inquéritos policiais ou de iniciativa do Ministério Público.
Nas CPMI’s, não fora somente tais violações feitas até por meio de manifestações teatrais e policialescas, que se atribui ao desejo de notoriedade fácil sob as luzes dos holofotes à custa da dignidade alheia, a prática sistemática de crimes de violação de segredo de justiça pelos parlamentares e jornalistas, é flagrante e até agora acobertadas pelo manto da impunidade.
Nem mesmo durante os chamados anos de chumbo sob a vigência da famigerada Lei de Segurança Nacional, se viam tais atos, uma vez que os julgamentos perante os tribunais de exceção eram abertos apenas às partes e seus procuradores, não se expondo os infelizes acusados à execração pública e ao linchamento moral.
O fato mais emblemático da prática do crime de violação do sigilo bancário e segredo de justiça foi de responsabilidade do líder do PFL na Câmara dos Deputados que convocou a imprensa para a apresentação de documentos sob sigilo legal, onde foram revelados para o escárnio de toda a nação os nomes de pessoas que teriam sacado recursos supostamente repassados pelas empresas do senhor Marcos Valério, algumas das quais homônimas e outras absolutamente inocentes, como se comprovou depois.
Isso sem falar do verdadeiro show de todos os meios de comunicação, de manhã até a noite, revelando documentos, nomes, conteúdo de comunicações telefônicas, extratos bancários, cópias de declaração de renda e bens, documentos e dados que deveriam estar sob segredo de justiça, sem que as vítimas de tais revelações tivessem culpa formada nos estritos limites do devido processo legal.
Até mesmo documentos e depoimentos prestados nos inquéritos policiais que estão sob segredo de justiça, seja por imposição do artigo 20 do Código de Processo Penal, seja por determinação do Presidente do Supremo Tribunal Federal, se tornam públicos logo depois de juntados aos autos ou de tomados a termo.
Mas o pior, ainda estaria por vir e chegou na última sexta-feira, 19 de agosto.
Depois de, ao longo de oito meses, monitorar as ligações telefônicas do advogado Rogério Burati, ex-assessor do então Prefeito de Ribeirão Preto no primeiro mandato deste iniciado em 1993, dois ilustres Promotores de Justiça daquela Comarca, resolveram propor ao investigado, já preso, algemado e devidamente uniformizado, a chamada delação premiada com a sua imediata soltura se este afirmasse, ainda que sem qualquer prova material como admite o Chefe do MP estadual, o envolvimento do então Prefeito e hoje Ministro da Fazenda no suposto esquema de arrecadação ilegal de recursos para fins eleitorais.
Não vou tratar aqui do manifesto constrangimento imposto a um advogado que, mesmo sem culpa formada e sem se furtar às intimações para prestar depoimentos, recebeu voz de prisão, foi algemado, jogado no camburão e depois devidamente uniformizado na prisão coletiva a que foi destinado, até porque estou certo de que a OAB, estadual e federal, tão ciosa das prerrogativas dos profissionais da advocacia como vem pública e ruidosamente demonstrando, deverá tomar as providências cabíveis.
O que me preocupa, mais como cidadão do que como profissional do Direito, é a forma pouco ortodoxa, para dizer o mínimo, como os senhores Promotores se comportaram ao divulgar o depoimento do investigado à imprensa, envolvendo sem provas materiais a figura do Ministro da Fazenda em crime.
Vestiram o mais clássico figurino dos especuladores dos mercados financeiros, ou seja, mesmo antes de terminar o depoimento, ali por volta do meio dia se apressaram a repassar aos repórteres das rádios e televisões (por eles previamente convocados) a “bomba”, ou o “boato” como se diz no jargão do mercado, do envolvimento do Ministro, levando à loucura os mercados, derrubando as cotações das ações na Bolsa de Valores de São Paulo e elevando a cotação do dólar frente ao real, bem como influindo decisivamente em outros valores mobiliários cotados no mercado de futuros, como valor do dólar, taxa de juros, etc.
Se não foi intencional, pelo menos deram essa impressão, o que leva qualquer cidadão a licitamente especular sobre a real motivação que levou aqueles doutos Promotores de Justiça a infringir o artigo 20 do Código de Processo Penal, bem como toda a legislação processual penal pertinente, sendo que não havia no caso qualquer interesse da sociedade na propagação imediata do depoimento, ao contrário do que afirmou o senhor Procurador Geral da Justiça do Estado em socorro dos seus colegas.
Será que, pelo menos, não podiam esperar pelo encerramento dos pregões? Devem ser responsabilizados pelos lucros e prejuízos causados às pessoas e entidades que certamente naquele dia ganharam ou perderam fortunas artificialmente?
Nada justifica a subversão da garantia constitucional da presunção da inocência, assim como a prática sistemática de violação de sigilo sob o pretexto do interesse da sociedade, uma vez que a liberdade de imprensa, como é cediço, não é absoluta.
Aliás, a Lei 5.250/67 comina pena de um a seis meses de detenção, a quem “publicar ou divulgar notícias falsas ou fatos verdadeiros truncados ou deturpados, que provoquem: (…) sensível perturbação na cotação das mercadorias e dos títulos mobiliários no mercado financeiro”.
O que se vê é um atentado coletivo à Ordem Jurídica e ao Estado de Direito que em nada contribui para a punição dos eventuais culpados, que, pelo contrário, serão beneficiados com a contaminação de tais “provas” que estão sendo criminosamente levadas ao conhecimento público por parlamentares, jornalistas, policiais, Promotores de Justiça e órgãos de comunicação, tendo em vista o disposto no citado inciso LVI do art. 5º da Carta da República.
E, o mais grave, é que essa prática reiterada, acaba por incentivar certos setores da mídia e da política-partidária a pratica do golpismo, como muito bem observaram os insuspeitíssimos jornalistas Mino Carta e Elio Gaspari.
Estariam todos acima da Lei e da Constituição ?
Com a palavra o excelentíssimo senhor Procurador-Geral da República.
Revista Consultor Jurídico