[não] A arma da legítima defesa

RESUMO

Princípio da legítima defesa e os direitos fundamentais, expressos no art. 5º da CF, como fatores preponderantes para contrapor-se ao art. 35, caput, da Lei nº 10826/03, cujo objetivo é proibir a comercialização de armas e munição em todo o território nacional.

SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO ; 2A LEGÍTIMA DEFESA. ; 3DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS; 4CONCLUSÃO; REFERÊNCIAS

1 INTRODUÇÃO

Controversa e evocada diversas vezes nos tribunais, a legítima defesa, como prescrita nos arts. 23 a 25 do Código Penal, sempre vem à tona quando pensamos em armas. A Lei nº 10826/03, entre outras disposições, estabelece em seu art. 35, caput, a proibição de comercialização de arma de fogo e munição em todo o território nacional. Porém, de acordo com o § 1º do referido artigo, esse dispositivo só entrará em vigor após aprovação em um referendo popular, programado para outubro de 2005.

Eis o cerne deste trabalho, que busca articular um elo entre o princípio da legítima defesa e a Lei nº 10826/03. O dispositivo contido no art. 35 da Lei mencionada, por ora sem eficácia, fere direitos fundamentais, contidos no art. 5º, caput, da Constituição Federal, como os direitos à vida e à segurança? Pode o Estado privar o homem de utilizar armas de fogo para sua proteção?

Para dirimir tais questões é necessário definir o conceito de legítima defesa, bem como saber até que ponto a arma é preponderante na ocorrência do excesso de culpa em determinadas situações, quando o cidadão se defende de ações perigosas à sua vida. Os direitos fundamentais previstos na Constituição também serão delineados, de forma a garantir um panorama mais claro e completo da questão ad referendum.

Embora ainda incipiente, a polêmica quanto à escolha a ser realizada no ano que vem já começa a despertar o interesse da população, que terá sob seu arbítrio a decisão de colocar ou não em prática a proibição do comércio de armas no Brasil. Antes de votar, é de fundamental importância que todos estejam bem informados sobre tal questão. Afinal, a informação é talvez o maior dos poderes e este poder será utilizado nas urnas em outubro de 2005, para definir, afinal, o que é mais apropriado à sociedade.

2 A LEGÍTIMA DEFESA

Conforme o art. 25 do Código Penal, “entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem” [01]. Portanto, se a hipótese de legítima defesa for reconhecida, é atestada a inexistência de crime, como prevê o art. 23, II, do CP.

Para além do sentido do termo, Carlos Otaviano Brenner de Moraes [02] distingue “situação de legítima defesa” e “ação em legítima defesa”. A primeira está para a segunda como em uma relação possível de “causa e conseqüência jurídicas”. A situação de legítima defesa está explicitada no já citado art. 25 do CP, enquanto a ação em legítima defesa “deve compreender a necessariedade dos meios de defesa empregados e a moderação no uso desses meios”.

Apenas quando os requisitos que caracterizam os dois estados estão presentes no fato, a excludente fica perfeita. Apesar de tipificado, o ato não poderá ser tomado como infração penal, porque queda lícito, permitido e justificado pela ordem jurídica.

A legítima defesa pode conter excesso quando a reação ultrapassa os limites legais estabelecidos para a excludente, seja de maneira culposa ou dolosa, segundo Brenner. “Se não há agressão, não há defesa nem se poderá considerá-la excessiva. Se agressão houver, mas pretérita em relação ao tempo da repulsa, de excesso também não se falará” [03].

Como ilustração, em decisão de 13 de junho de 1995, assim entendeu o ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal:

No recurso em sentido estrito, o Recorrente pleiteou o reconhecimento da legítima defesa putativa em seu benefício, pretensão que foi afastada porque: ‘Não obstante, à data do fato, o réu, previamente armado, portando faca e revólver, dirigiu-se a Mauro, desferindo-lhe dois (2) tiros e ainda dando-lhe chutes. Acrescente-se que não há prova que revele atuar anterior imediato da vítima a conduzir ao recorrente a proteção de putativa’ (fls. 163). Verifica-se, assim, a improcedência da afirmativa, de que desfundamentado o aresto recorrido, pois afastada a legítima defesa putativa diante da ausência de provas de sua ocorrência. [04]

Em parecer, Roberto Lyra [05] define que as condições de legitimidade de defesa integram-se quer pela avaliação qualitativa, quer pela quantitativa da emergência, assim quanto à ação e reação. A ação pode ser qualificada conforme conceitos de injustiça, iminência ou atualidade. A reação, quanto à necessidade dos meios ou o uso moderado destes.

Porém, assim como o autor deste artigo, Lyra não vê cabimento quanto ao excesso doloso na legítima defesa. “No impropriamente chamado ‘excesso doloso’ cogita-se de outro crime, e não de transbordamento de conduta lícita” [06]. Enquanto o excesso culposo implica fenômenos psicologicamente depressivos, como medo ou pudor, a retaliação é que encerra ódio, vingança, sob a cronicidade passional.

Quanto ao princípio da proporcionalidade, mais uma vez Roberto Lyra é taxativo:

A lei dispensou impropriedades e desproporções necessárias, segundo o perigo real ou putativo. Não induz à moderação e, muito menos, à moderação culposa, o erro de opção e cálculo na defesa, em última análise causado pelo próprio ataque. [07]

Portanto, é dispensada, em reação ex improviso, a rigorosa propriedade dos meios empregados ou sua precisa proporcionalidade com a agressão.

3 DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Nossa Constituição expressa em seu art. 5º, caput:

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[…] [08]

Como está claro em tal artigo, o Estado tem o dever de prover ao cidadão, entre outros direitos, a defesa à vida e à segurança. Ora, pode, então, o Estado agir em sentido contrário ao mencionado em nossa Magna Carta? A resposta, obviamente, é negativa.

Todavia, como mesmo afirma Lélio Braga Calhau [09], “nem sempre as pessoas podem recorrer ao Estado para a proteção de seu direito, sendo então, nesses casos, permitida a autotutela. A legítima defesa se enquadra nessa situação”.

Portanto, quem defende, mesmo violentamente, o bem próprio ou alheio, assim como a vida, não só atua dentro da ordem jurídica, mas também em defesa dessa mesma ordem. Atua segundo a vontade do Direito e seu ato é perfeitamente legítimo.

“O reconhecimento da faculdade de autodefesa contra agressões injustas não constitui uma delegação estatal, como já se pensou, mas a legitimação pela ordem jurídica de uma situação de fato na qual o direito se impôs diante do ilícito” [10].

Por isso, defende Calhau que o agente que reage a um ataque injusto não pode nem mesmo ser preso, como prevê nossa legislação processual penal. Pelo contrário, o cidadão deve sentir-se estimulado, protegido desde o início de sua ação, e não acovardado. Portanto,

“faz-se necessário alterar nossa lei processual penal para impedir que a autoridade policial autue em flagrante aquele que reagiu a uma agressão injusta, matando seu ofensor” [11].

4 CONCLUSÃO

Como definido acima, o conceito de legítima defesa encerra em si a questão do excesso doloso ou culposo e também a proporcionalidade do ato. Ora, cabe ressaltar mais uma vez que não pode haver excesso doloso na legítima defesa, uma vez que caracterizado o dolo, a conduta lícita não mais existe, como é requerido pelo princípio de legitimidade de defesa. Também não importa quais os meios empregados para a reação, muito menos a proporcionalidade com o ato agressivo.

Portanto, não pode, nesse caso, haver restrições, ao cidadão, do uso de arma de fogo para autodefesa, como prevê a Lei nº 10826/03.

Da mesma maneira, foi demonstrado neste trabalho que o Estado deve ser provedor do direito à vida e à segurança, entre outros direitos fundamentais contidos no art. 5º da CF. Como as pessoas não podem a toda hora recorrer ao Estado para sua segurança, a autotutela é permitida. A legítima defesa faz parte deste conceito. Logo, não é possível o Governo editar norma que ameace a defesa individual, como o caput do art. 35 da referida Lei nº 10826/03, que proíbe a comercialização de arma de fogo e munição em todo o território nacional.

Serve o presente artigo, portanto, para iluminar, esclarecer e dirimir eventuais dúvidas concernentes ao referendo que será realizado em outubro de 2005, quando a população decidirá sobre a eficácia de tal norma da citada Lei.

Como demonstrado, o sentido da norma é contrário, em vários aspectos, à nossa Constituição e a outros preceitos básicos de Direito, como o próprio conceito de legítima defesa.

REFERÊNCIAS

1 Doutrina

Artigos Científicos

LYRA, Roberto. Legítima Defesa Real ou Ficta. Revista Brasileira de Criminologia e Direito Penal. Rio de Janeiro, 4ª fase, a. 24, n. 1, jan./jun. 1954.

Artigos Jurídicos Publicados na Internet

CALHAU, Lélio Braga. Vítima e Legítima Defesa. Jus Navigandi, Teresina, a. 6, n. 57, jul. 2002. Disponível em: . Acesso em: 29 mar. 2004.

DAHER, Marlusse Pestana. A Legítima Defesa. Jus Navigandi, Teresina, a. 3, n. 29, mar. 1999. Disponível em: . Acesso em: 29 mar. 2004.

MORAES, Carlos Otaviano Brenner de. Excesso na Legítima Defesa. Jus Navigandi, Teresina, a. 4, n. 36, nov. 1999. Disponível em: . Acesso em: 29 mar. 2004.

Jurisprudência

AI n. 168955 – MG. Relator: Ministro Celso de Mello. Supremo Tribunal Federal, Brasília, jun. 1995. Disponível em: . Acesso em: 30 mar. 2004.

Legislação

Código Penal. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 1987.

Constituição Federal. 4 ed. Rio de Janeiro: Roma Victor, 2004.

Lei n. 10826/03. Brasília, Palácio do Planalto. Disponível em: . Acesso em: 31 mar. 2004.

NOTAS

01 Código Penal. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 1987, p. 49.

02 MORAES, Carlos Otaviano Brenner de. Excesso na Legítima Defesa. Jus Navigandi, Teresina, a. 4, n. 36, nov. 1999. Disponível em: . Acesso em: 29 mar. 2004.

03 MORAES, Carlos Otaviano Brenner de. ob. cit.

04 AI n. 168955 – MG. Relator: Ministro Celso de Mello. Supremo Tribunal Federal, Brasília, jun. 1995. Disponível em: . Acesso em: 30 mar. 2004.

05 LYRA, Roberto. Legítima Defesa Real ou Ficta. Revista Brasileira de Criminologia e Direito Penal. Rio de Janeiro, 4ª fase, a. 24, n. 1, jan./jun. 1954, p. 127

06 LYRA, Roberto. ob. cit., p. 127

07 LYRA, Roberto. ob. cit. p. 128

08 Constituição Federal. 4 ed. Rio de Janeiro: Roma Victor, 2004, p. 14.

09 CALHAU, Lélio Braga. Vítima e Legítima Defesa. Jus Navigandi, Teresina, a. 6, n. 57, jul. 2002. Disponível em: . Acesso em: 29 mar. 2004.

10 CALHAU, Lélio Braga. ob. cit., p. 1

11 CALHAU, Lélio Braga. ob. cit., p. 2

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José Olympio Soares Corrêa Meyer
jornalista no Rio de Janeiro (RJ), bacharelando em Direito

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