Quotas étnicas nas universidades

Os dados estatísticos demonstram a existência de uma profunda desigualdade no Brasil. Segundo o censo do IBGE, dos quase 170 milhões de habitantes que existiam em 2000, aproximadamente 45% eram negros e pardos. Todavia, enquanto o rendimento médio mensal da população branca alcançava cerca de 4,5 salários mínimos, o rendimento dos negros e pardos era de 2,3 salários mínimos (metade). Dentre as pessoas com rendimento superior a 3 salários mínimos, a participação dos brancos era de 72 %, enquanto os negros e pardos participavam com 27 %. Na camada populacional com rendimento superior a 10 salários mínimos, a diferença era ainda maior: 83 % de participação dos brancos contra 16 % dos negros e pardos.

Em 2000, a média de anos de estudo da população branca era de 7,5 anos, enquanto a média entre os negros era de 5,3 anos e entre os pardos, 5,6 anos. O índice de analfabetismo entre pessoas com mais de 10 anos de idade era de 6,3 % entre os brancos, enquanto entre os negros o índice atingia 17,2 % (quase o triplo) e entre os pardos, 13,3 % (mais que o dobro). No outro extremo, dentre as pessoas com curso superior completo, 82,7 % eram brancas e 14,6 %, negras e pardas.

À vista desse chocante desbalanço nos indicadores educacionais e de renda, algumas instituições universitárias, tais como UERJ, UnB, UFPR, UFMT, UENF e UFBA, decidiram adotar, em seus vestibulares, a reserva de vagas para grupos étnicos e estudantes oriundos de escolas públicas, medida que ficou conhecida como “política de quotas”.

A justificativa apresentada pelos defensores da medida é democratizar o acesso ao ensino público, particularmente em relação aos cursos mais procurados, como Medicina, Engenharia, Direito e Comunicação Social. Argumentam eles que os exames vestibulares são flagrantemente injustos: a grande maioria dos universitários é constituída por membros da classe média alta, e isto ocorre porque esses estudantes puderam cursar o ensino médio em instituições particulares que oferecem ensino de boa qualidade. Em contraste, os estudantes das escolas públicas não conseguem aprovação nos vestibulares em decorrência de sua formação deficiente. Outro argumento é o de que o País tem uma dívida com sua população afro-descendente, a qual, em virtude da discriminação histórica que tem sofrido, acha-se em nítida desvantagem no tocante à renda e às oportunidades educacionais.

A reserva de vagas tem causado acirrados debates em todo o País. Seus críticos argumentam que as quotas raciais violam o princípio da igualdade ao concederem privilégios injustificados a certos grupos raciais ou sociais. Ao suspender o sistema de ingresso na universidade baseado no mérito do candidato, o sistema de quotas combate uma injustiça criando outra, além de violar o disposto no artigo 208, inciso V, da Constituição Federal, que fixa o critério de capacidade para ingresso no ensino superior; as quotas são também arbitrárias, pois não há critérios científicos para se identificar quem é, de fato, afro-descendente.

Os defensores rebatem as críticas sustentando que a concessão de tratamento mais favorável a grupos que se encontram em desvantagem não caracteriza arbítrio ou violação do princípio da igualdade, pelo contrário, o que se pretende é viabilizar a igualdade material; que faz sentido estabelecer quotas que facilitem o acesso dos desfavorecidos porque existe uma pequena proporção de negros nas escolas públicas superiores, principalmente nos cursos de Medicina e de Direito; que o atual vestibular não mede o mérito do candidato, mas a qualidade do sistema escolar, do sistema social e a desigualdade de oportunidades; que as populações vulneráveis merecem proteção do Estado; que o conceito de raça humana é fixado sócio-culturalmente e não biologicamente, razão pela qual não pode ser determinado por nenhum critério científico.1

Sustenta-se que a reserva de vagas é compatível com a Constituição Federal que, inclusive, já contém princípios e modalidades implícitas e explícitas de de ação afirmativa. Argumenta-se que o único modo de se corrigir desigualdades é colocar a lei a favor dos que são discriminados.

2. O PRINCÍPIO DA IGUALDADE DE OPORTUNIDADES E A AÇÃO AFIRMATIVA

Para se aferir a constitucionalidade das quotas raciais, é preciso, em primeiro lugar, identificar quais os dispositivos constitucionais aptos a balizar o assunto. Vários autores mencionam o art. 3º, incisos I e III, da Constituição Federal, como os dispositivos que dão guarida às chamadas ações afirmativas, gênero do qual a reserva de vagas seria uma das espécies:

“Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

………………..

III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

……………….. ”

Essas, no entanto, são disposições gerais. Cabe, pois, verificar se existem dispositivos constitucionais específicos sobre o tema, pois deve-se dar preferência às disposições que se relacionam mais direta e especialmente ao assunto em pauta.2 No caso, a presente discussão trata de matéria educacional, para a qual a Constituição reservou a a Seção I (Da Educação) do Capítulo III (Da Educação, Da Cultura e Do Desporto) do Título VIII (Da Ordem Social), seção que abrange os artigos 205 a 214. Em se tratando de quotas raciais para acesso ao ensino superior, as disposições específicas que parecem governar o assunto são duas: o artigo 206, I, e o artigo 208, V:

“Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:

I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;

………………. ”

“Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:

I – ensino fundamental, obrigatório e gratuito…

II – progressiva universalização do ensino médio gratuito;

………………..

V – acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um;

……………….. ”

O artigo 208 estabelece que o ensino fundamental é universal (inciso I) e que o ensino médio deve ser progressivamente universalizado (inciso II). A universalização, todavia, não se aplica ao ensino superior. De acordo com o inciso V, essa modalidade de ensino é acessível apenas aos mais capacitados, o que implica a realização de algum tipo de teste para se aferir dita capacidade.

O acesso ao ensino superior deve, pois, ocorrer por meio de uma competição que, entre nós, tem sido denominada “exame vestibular”. Em tais circunstâncias, espera-se que haja igualdade de oportunidades entre os que participam dessa competição. É precisamente o que estabelece o inciso I do artigo 206. Esse dispositivo, que fixa o princípio da igualdade de oportunidades para ingresso na escola, aplica-se a todos os níveis de ensino, mas especialmente ao superior, porque esse nível escolar, não sendo universal, é alcançado por meio de uma competição.

O princípio da igualdade de oportunidades ou de pontos de partida surge em virtude da constatação de que a vida social se desenvolve dentro de uma grande disputa por bens escassos, e de que há indivíduos que, por causa do nascimento, estão mais capacitados do que outros para disputar essa competição; em outras palavras, certos indivíduos iniciam a disputa com claras vantagens em relação aos demais. O princípio da igualdade de oportunidades tem por objetivo colocar todos os membros de uma comunidade em condições de participar da competição pela vida a partir de posições iguais. Exige-se, pois, que a igualdade de pontos de partida seja aplicada a todos os membros do grupo social, sem nenhuma distinção de raça, de sexo, de classe etc., em situações econômica e socialmente relevantes.3

O objetivo do nivelamento de oportunidades é combater as desigualdades históricas, criando condições para que todos os indivíduos tenham oportunidade de desenvolver suas capacidades e de evoluir por meio do sucesso na competição pelos bens sociais. Não se pretende alcançar, muito menos impor, a chamada igualdade real, substancial, material ou econômica, pois o ideal de igualdade de todos em tudo é impossível. O que se exige é que todos tenham as mesmas condições de melhoria, para que se reduzam progressivamente as desigualdades.

O princípio da igualdade de oportunidades aplica-se ao processo de ascenção às várias posições sociais, não à atribuição dessas mesmas posições.4 Isto significa que a sociedade não garante o sucesso de um indivíduo ou de um grupo em uma competição econômico-social, mas apenas a paridade de sua situação em face dos demais competidores.

Não obstante, o sentido do princípio da igualdade de oportunidades tem sido deturpado pelo conceito de ação afirmativa oferecido por vários autores. Essa distorção fica bem nítida nas seguintes definições, constantes de um glossário do Ministério do Trabalho e do Emprego:

“Ação afirmativa – É uma estratégia de política social ou institucional voltada para alcançar a igualdade de oportunidades entre as pessoas, distinguindo e beneficiando grupos afetados por mecanismos discriminatórios com ações empreendidas em um tempo determinado, com o objetivo de alterar positivamente a situação de desvantagem desses grupos.”

“Política de igualdade de oportunidades – Constitui um compromisso para implementar práticas e procedimentos que não discriminem e que facilitem a igualdade entre os indivíduos de distintos grupos ou sexos para alcançar um emprego pleno, produtivo e livremente escolhido.” 5

A ação afirmativa é definida essencialmente como um política cujo objetivo é implantar a igualdade de oportunidades. A finalidade real, porém, não é essa:

“Figura também como meta das ações afirmativas a implantação de uma certa “diversidade” e de uma maior “representatividade” dos grupos minoritários nos mais diversos domínios de atividade pública e privada.” 6

O trecho acima demonstra que o verdadeiro intento das ações afirmativas, como propugnado por seus defensores, não é promover a igualdade de oportunidades, mas realizar a equalização forçada dos indivíduos.

O princípio da igualdade de oportunidades tem sido associado à implantação da igualdade econômica. Um dos autores que adota esse enfoque afirma que as ações afirmativas se destinam “à concretização do princípio constitucional da igualdade material”.7 Mas “concretizar a igualdade material” e “reduzir as desigualdades” são coisas diferentes. A Carta Magna usa a segunda dessas expressões no art. 3º, III, precisamente por reconhecer que é impossível a igualdade econômica total entre os indivíduos. Isto fica claro quando se verifica que o mesmo dispositivo constitucional determina a erradicação da pobreza, objetivo que, ao contrário do primeiro, é plenamente factível. A distinção não é irrelevante. O princípio da igualdade de oportunidades coaduna-se com a meta de redução das desigualdades. Em contraste, se o objetivo da nação brasileira fosse a implantação compulsória da igualdade substancial, então quaisquer meios seriam válidos, entre eles a atribuição direta de posições sociais aos indivíduos, independentemente de competição, e até o confisco de bens e posições sociais de quem já os possui, tal como ocorria nos antigos regimes comunistas.

A equalização econômico-social forçada das pessoas é incompatível com o Estado Democrático de Direito. Em um regime democrático, a redução das desigualdades deve ocorrer exclusivamente pela ação dos cidadãos competindo pelas posições sociais em condições paritárias. Ao Estado cabe apenas oferecer a todos oportunidades iguais de competição sem recorrer a medidas forçadas de equalização.

Assim, dentro desse raciocínio, o sistema de quotas, ao tentar acelerar a equalização étnica da população universitária, por meio da garantia de sucesso de determinados grupos sociais, na competição por uma vaga no ensino superior, torna-se inconstitucional, por contrariar dois princípios: o da igualdade de oportunidades inscrito no art. 206, I, e o da competição para ingresso no ensino superior, previsto no art. 208, V, ambos da Constituição Federal. Ademais, no plano infraconstitucional, a política de reserva de vagas se choca com o objetivo nº 19 da educação superior, constante da Lei nº 10.172/01 que criou o Plano Nacional de Educação:

“19. Criar políticas que facilitem às minorias, vítimas de discriminação, o acesso à educação superior, através de programas de compensação de deficiências de sua formação escolar anterior, permitindo-lhes, desta forma, competir em igualdade de condições nos processos de seleção e admissão a esse nível de ensino.”

O Plano Nacional de Educação determina a criação de políticas que garantam reais condições de igualdade nos processos seletivos para acesso ao ensino superior, não o acesso facilitado a esse nível escolar. Nesse sentido, a Lei nº 10.172/01 explicita aquilo que está colocado de forma sintética na Constituição, confirmando, assim, a posição defendida no presente artigo.

3. O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE

Suponhamos, porém, que o inciso I do artigo 206 seja invocado por aqueles que defendem a política de quotas étnicas para ingresso na universidade. Suponhamos também que o sistema de quotas não desrespeite o princípio previsto nesse dispositivo mas, ao contrário, esteja de acordo com ele. Nesse caso, a reserva de vagas será uma política que afronta o art. 208, V, pondo em conflito dois princípios constitucionais: o da igualdade de oportunidades e o da competição para entrada na universidade. Em tais condições, para se examinar a constitucionalidade da medida, será necessário recorrer ao princípio da proporcionalidade.

A compreensão do princípio da proporcionalidade requer o entendimento da natureza dos princípios jurídicos, compreensão que será facilitada pela sua comparação com as regras jurídicas. Regras jurídicas, basicamente, são normas de conduta que associam fatos hipotéticos a uma determinada obrigação. Toda vez que ocorrer um fato que se enquadre na espécie descrita pela regra, deverá ser cumprido um certo dever. Este dever provém de um comando, de um mandamento, de natureza concreta, inscrito na regra.

Diferentemente das regras, princípios jurídicos são enunciados que expressam valores, não obrigações concretas. Possuem, pois, grande generalidade e alto grau de abstração. Os princípios ocupam posição superior em um sistema jurídico, orientando as regras jurídicas a eles vinculadas. Os princípios são os fundamentos, a base do sistema jurídico, servindo de diretrizes para compreensão e interpretação das respectivas regras.

Os princípios jurídicos, por representarem valores e terem igual nível hierárquico entre si, vivem em um estado de conflito potencial, de tensão permanente. Em conseqüência da igual hierarquia de todos os princípios, nenhum deles pode ser absoluto, isto é, não existem princípios que sempre prevaleçam sobre outros. Todos os princípios são relativos, ou seja, qualquer princípio pode sofrer limitações em sua aplicação para assegurar a efetividade dos demais. As regras, ao contrário, são absolutas, devendo ser aplicadas em sua totalidade.

Os princípios expressam valores, enquanto as regras se destinam a realizar concretamente estes valores. Os princípios são normas predominantemente abstratas, enquanto as regras são normas predominantemente concretas. Os princípios podem ser tanto expressos como implícitos, enquanto as regras só podem ser expressas. Os princípios, por serem vagos e abstratos, não podem aplicar-se diretamente, enquanto as regras são passíveis de aplicação direta. As regras, por serem absolutas, devem ser aplicadas por completo, na exata medida de suas prescrições, enquanto os princípios admitem vários graus de aplicação. É inadmissível a validade simultânea de regras contraditórias mas admite-se a coexistência de princípios conflitantes. A constatação de que duas regras se contradizem acarreta a exclusão de uma delas do sistema jurídico, enquanto os princípios, quando conflitantes, não se excluem, devendo ser harmonizados.

Quando, no exame de um caso concreto, ocorre um conflito de princípios, deve-se buscar a solução ótima por meio da comparação dos “pesos” dos respectivos valores para que se possa aplicá-los de forma harmoniosa. O conflito potencial entre princípios se torna real quando uma lei ou ato do Poder Público, para realizar um princípio jurídico, incorre na violação de outro. Em tais condições, o princípio da proporcionalidade admite que se atribua maior peso ao primeiro princípio, reduzindo mas não anulando o grau de aplicação do segundo, apenas na exata medida necessária para viabilizar a concretização do primeiro. Legitima-se, dessa forma, a lei ou o ato administrativo.

O princípio da proporcionalidade compõe-se de três critérios: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.

a) adequação – deve haver adequação entre o fim almejado e o meio escolhido para alcançar esse fim, ou seja, os meios adotados devem ser próprios, aptos, úteis, suficientes para realizar os fins que se tem em vista. Se os meios escolhidos forem inúteis ou não apropriados, não haverá adequação.

b) necessidade – dentre os meios disponíveis para alcançar um determinado fim, deve-se escolher os mais suaves, os que menos sacrifiquem outros princípios jurídicos. Deve-se evitar o excesso, isto é, os meios adotados devem ser os estritamente necessários para cumprir os fins pretendidos. Os meios utilizados tornam-se excessivos e, pois, desnecessários, quando se dispõe de outras medidas igualmente eficazes e menos danosas.

c) proporcionalidade em sentido estrito – deve-se pesar os interesses que estão em jogo, avaliando-se as vantagens e desvantagens da medida que está sendo considerada, ou seja, sua relação custo-benefício. Esse critério proíbe o sacrifício da dignidade humana para favorecer interesses de menor significação.

Como dito acima, o sistema de quotas étnicas no ensino superior provoca o conflito entre dois princípios constitucionais. Apliquemos, então, o princípio da proporcionalidade a essa política a fim de se examinar sua constitucionalidade. Para que o sistema de quotas seja constitucional, é necessário: a) problema real – que a discriminação passada produza efeitos no presente, ou seja, que exista atualmente uma efetiva desigualdade de oportunidades para o acesso de afro-descendentes à universidade e que essa desigualdade seja a causa do desbalanço étnico da população universitária; b) adequação – que a política de quotas seja adequada para eliminar a constatada desigualdade de oportunidades e reduzir o desbalanço racial; c) necessidade – que a política de quotas seja necessária, isto é, que não haja outras medidas de igual eficácia que não afrontem o princípio da competição vestibular contido no art. 208, V, da Constituição Federal; d) proporcionalidade em sentido estrito – que as vantagens da política de quotas sejam superiores às suas desvantagens.

3.1 Quotas para alunos de escolas públicas

Apliquemos o princípio da proporcionalidade à UNICAMP. A COMVEST – Comissão Permanente para os Vestibulares da UNICAMP – publica anualmente o perfil socioeconômico dos candidatos ao vestibular bem como dos ingressantes na universidade. No perfil relativo ao vestibular do ano 2000 selecionamos os seguintes dados: 8

UNICAMP – VESTIBULAR 2000

Tipo de escola do ensino médio Candidatos Ingressantes (aprovados)
curso todo em particular 62,4% 62,4%
curso todo em pública 29,1% 30,7%

A tabela mostra que a proporção percentual entre candidatos oriundos de escolas particulares e públicas é virtualmente idêntica à de ingressantes. Isto indica que o índice de aprovação dos candidatos “públicos” é igual ao dos candidatos “particulares”.

Para se entender o conceito de índice de aprovação, vamos a um exemplo. Suponhamos que haja 10.000 (dez mil) candidatos ao vestibular para 2.000 (duas mil) vagas. Suponhamos também que a proporção entre candidatos particulares e públicos seja de 60/40 e que essa proporção se mantenha para os ingressantes. Teremos, pois:

Tipo de escola do ensino médio Candidatos Ingressantes
curso todo em particular 6.000 (60%) 1.200 (60%)
curso todo em pública 4.000 (40%) 800 (40%)
Totais 10.000 (100%) 2.000 (100%)

Calculemos agora o índice de aprovação para os candidatos particulares e públicos:

Índice de aprovação = Nº de ingressantes
Nº de candidatos

Índice de aprovação de candidatos particulares = 1.200 = 20%
6.000

Índice de aprovação de candidatos públicos = 800 = 20%
4.000

O exemplo hipotético acima mostra que se o índice de aprovação dos candidatos públicos for igual ao dos candidatos particulares, a proporção percentual entre ingressantes particulares e públicos será igual à proporção entre candidatos particulares e públicos.

Proporção entre candidatos públicos e particulares è Índices de aprovação de candidatos públicos e particulares è Proporção entre ingressantes públicos e particulares

No caso do vestibular 2000 da UNICAMP, o fato de o índice de aprovação dos candidatos públicos ser similar ao dos candidatos particulares é indício de que ambos os grupos tinham igual possibilidade de conquistarem uma vaga, tendo competido em igualdade de condições. Assim, se a UNICAMP, para o vestibular de 2001, tivesse reservado 40 % das vagas para alunos que tivessem cursado todo o ensino médio em escola pública, a medida deveria ser considerada liminarmente inconstitucional, por representar remédio para um mal inexistente segundo os dados disponíveis. Se alguém, em 2003, perguntasse, “Por que, entre os ingressantes da UNICAMP, apenas 30 % provêm de escolas públicas?”, a resposta deveria ser, simplesmente, “Porque, entre os candidatos, apenas 30 % são oriundos da rede governamental”.

Suponhamos agora que o vestibular 2000 tivesse apresentado os seguintes dados:

UNICAMP – VESTIBULAR 2000

Tipo de escola do ensino médio Candidatos Ingressantes
curso todo em particular 60% 70%
curso todo em pública 30% 20%

A proporção de ingressantes particulares é maior que a de candidatos, enquanto o contrário ocorre com a proporção de ingressantes públicos. Isto indica que o índice de aprovação de candidatos particulares foi maior que o índice dos candidatos públicos, o que aponta para condições desfavoráveis para os candidatos públicos na luta por uma vaga.

Suponhamos que a UNICAMP, à vista desses dados, tivesse reservado, no vestibular de 2001, 40 % das vagas para alunos que tivessem cursado todo o ensino médio em escola pública. Na aplicação do princípio da proporcionalidade, a medida seria aprovada segundo o primeiro critério, pois seria solução para um problema real. Seria aprovada também de acordo com o segundo critério (adequação) porque seria adequada para reduzir o desbalanço entre alunos públicos e privados; mas seria reprovada segundo o terceiro critério (necessidade) por duas razões: primeiro, porque não se justifica a reserva de 40 % das vagas para alunos oriundos de escola pública quando se sabe que somente 30% dos candidatos cursaram esse tipo de instituição escolar; segundo, porque existem alternativas menos danosas aos direitos de terceiros, como por exemplo, oferecer curso pré-vestibular gratuito aos estudantes de escolas públicas, iniciativa que foi tomada pela USP e que atende ao espírito do citado objetivo nº 19 da Lei nº 10.172/01.

Sabe-se que, no Brasil como um todo, dentre os alunos que cursam o ensino médio, 80 % ou mais estão matriculados em escolas públicas. Por que, então, essa proporção não se mantém entre os inscritos no vestibular da UNICAMP? Algumas hipóteses seriam que os alunos de escolas públicas:

a) não acreditam que possam competir com os alunos de escolas privadas;

b) não podem pagar a taxa de inscrição;

c) não têm recursos para fazer face às despesas do curso;

d) não podem estudar em período diurno porque precisam trabalhar.

Cabe à universidade investigar essas hipóteses e tomar providências em função do que for apurado. Em particular, se a última hipótese fosse verdadeira, então seria inútil oferecer reserva de vagas para cursos diurnos sem que o Estado sustentasse o aluno carente e sua família durante o curso. A reserva de vagas, isoladamente, não atenderia ao critério da adequação e seria, portanto, inconstitucional.

Resta acrescentar que a UNICAMP instituiu o chamado PAAIS – Programa de Ação Afirmativa e Inclusão Social a partir do vestibular 2005. O PAAIS prevê que estudantes que tenham cursado todo o ensino médio na rede pública receberão automaticamente 30 pontos a mais na nota final da segunda fase do vestibular. Candidatos autodeclarados pretos, pardos ou indígenas que tenham cursado o ensino médio em escolas públicas receberão, além dos 30 pontos, mais dez pontos na nota final. Embora seja apresentado como alternativa ao sistema de quotas, o programa é inconstitucional, pois a pontuação adicional, sendo arbitrária, não pode atender ao princípio da proporcionalidade.

3.2 Quotas para etnias

Continuemos a análise com o caso da UNICAMP. No perfil relativo ao vestibular do ano 2003 encontram-se os seguintes dados: 9

UNICAMP – VESTIBULAR 2003

Cor ou raça declarada Candidatos Ingressantes
branca 81,0% 82,0%
preta + parda 10,4% 10,1%

A tabela mostra que a proporção entre candidatos brancos, de um lado, e pretos e pardos, de outro, também é quase idêntica à de ingressantes. Isto indica que o índice de aprovação dos candidatos pretos e pardos é similar ao dos candidatos brancos.

No caso do vestibular 2003 da UNICAMP, o fato de o índice de aprovação dos candidatos pretos e pardos ser similar ao dos brancos é indício de que ambos os grupos tinham igual possibilidade de conquistarem uma vaga, tendo competido em igualdade de condições. Assim, se a UNICAMP tivesse reservado um percentual das vagas para alunos autodeclarados pretos e pardos, a medida deveria ser considerada liminarmente inconstitucional de acordo com o princípio da proporcionalidade, por representar remédio para um mal inexistente segundo os dados disponíveis. Também deveria ser declarada inconstitucional, de acordo com o mesmo princípio, qualquer reserva de vagas para esse grupo étnico em percentual que excedesse o percentual de candidatos pretos e pardos ao vestibular. Se, em 2003, alguém perguntasse, “Por que, entre os ingressantes da UNICAMP, apenas 10 % são pretos e pardos?”, a resposta deveria ser, simplesmente, “Porque, entre os candidatos, apenas 10 % são pretos e pardos”.

Vejamos agora os dados dos vestibulares dos anos 2004 10 e 2005 11:

UNICAMP – VESTIBULAR 2004

Cor ou raça declarada Candidatos Ingressantes
branca 77,1% 79,8%
preta + parda 13,6% 11,3%

UNICAMP – VESTIBULAR 2005

Cor ou raça declarada Candidatos Ingressantes
branca 71,0% 73,9%
preta + parda 18,9% 15,4%

Os dados das tabelas acima mostram que, embora esteja aumentando o percentual de pretos e pardos entre os candidatos, começa a existir alguma diferença entre os índices de aprovação dos dois grupos étnicos, com desvantagem para os afro-descendentes. Antes, porém, de pensar em medidas de ação afirmativa como quotas ou pontos adicionais, a UNICAMP deveria investigar as possíveis causas dessa diferença, para conceber uma solução precisa, eficaz, não arbitrária, proporcional ao tamanho do problema.

Poder-se-ia perguntar, porém, porque apenas 19 % dos candidatos ao vestibular UNICAMP 2005 eram pretos e pardos. A resposta exige uma investigação socioeconômica dos concluintes do ensino médio na área de influência da UNICAMP, procurando-se saber, em primeiro lugar, qual a composição étnica da população e, em seguida, qual a composição étnica dos que concluem esse nível de ensino. A esse propósito, cabe alertar que o percentual de 45 % de negros e pardos na população brasileira, apurado pelo IBGE em 2000, serve para pouca coisa. Nesse ano, o índice era de 30 % (trinta por cento) no município de São Paulo, de 73 % (setenta e três por cento) no Estado da Bahia e de 10 % (dez por cento) em Santa Catarina.

4. CONCLUSÕES

A política de reservar um percentual genérico e arbitrário de vagas no ensino superior para estudantes de escolas públicas ou para etnias é inconstitucional por desatender ao princípio da igualdade de oportunidades e ao princípio da proporcionalidade. São inconstitucionais, portanto, todas as leis e atos administrativos nesse sentido.

Cabe ressaltar ainda que qualquer medida destinada a implantar a igualdade de oportunidades no acesso à universidade há de ser temporária, devendo valer apenas enquanto se constatar, com base em dados empíricos, uma desigualdade de condições no acesso a esse nível de ensino. A temporariedade desse tipo medida é, pois, incompatível com sua implantação mediante lei, porque esta, como se sabe, é uma regra jurídica permanente. As leis que prescrevem quotas para ingresso no ensino superior deveriam ser tidas como inconstitucionais também por esse motivo.

Medidas como o curso pré-vestibular gratuito para estudantes de escolas públicas oferecido pela USP só deveriam ser tomadas com base em um levantamento prévio do perfil socioeconômico dos candidatos e ingressantes que demonstrasse a real necessidade da medida. E mais: o levantamento deveria ser feito por curso porque a dificuldade de ingresso varia de carreira para carreira. A lei, em vez de estabelecer quotas, deveria fixar critérios para a elaboração desse tipo de levantamento. Enquanto tal lei não for baixada, deveria ser declarada inconstitucional qualquer política de facilitação de acesso ao ensino superior a menos que o órgão ou entidade responsável pela iniciativa demonstre empiricamente existir uma desigualdade de oportunidades no acesso a esse nível escolar e que as providências propostas estão conformes ao princípio da proporcionalidade.

NOTAS

1 SILVA, Luiz Fernando Martins da. Estudo sociojurídico relativo à implementação de políticas de ação afirmativa e seus mecanismos para negros no Brasil: aspectos legislativo, doutrinário, jurisprudencial e comparado. Jus Navigandi, Teresina, a. 8, n. 342, 14.06.04. Disponível em: www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=5302. Acesso em 29.05.05.

2 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 110.

3 BOBBIO, Norberto. Igualdade e Liberdade. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997. pp. 30-32.

4 BOBBIO, Norberto. Dicionário de política. Vol. 1. Brasília: UnB, 1997. pp. 603-604.

5 MINISTÉRIO DO TRABALHO E DO EMPREGO. Programa de Combate a Discriminação no Trabalho – Glossário. Disponível em: www.mte.gov.br/empregador/fiscatrab/programacombate/conteudo/glossario.asp.

Acesso em 15.07.05.

6 GOMES, Joaquim B. Barbosa. O debate constitucional sobre as ações afirmativas. Site Mundo Jurídico, Rio de Janeiro. Disponível em: www.mundojuridico.adv.br. Acesso em 13.07.05.

7 Idem.

8 UNICAMP. Perfil Socioeconômico dos Candidatos e Ingressantes – Vestibular Unicamp 2000. Disponível em www.convest.unicamp.br/estatisticas/perfil/perfil2000.pdf. Acesso em 15.07.05.

9 UNICAMP. Perfil Socioeconômico dos Candidatos e Ingressantes – Vestibular Unicamp 2003. Disponível em www.convest.unicamp.br/estatisticas/perfil/perfil2003.pdf. Acesso em 15.07.05.

10 UNICAMP. Perfil Socioeconômico dos Candidatos e Ingressantes – Vestibular Unicamp 2004. Disponível em www.convest.unicamp.br/estatisticas/perfil/perfil2004.pdf. Acesso em 15.07.05.

11 UNICAMP. Perfil Socioeconômico dos Candidatos e Ingressantes – Vestibular Unicamp 2005. Disponível em www.convest.unicamp.br/estatisticas/perfil/perfil2005.pdf. Acesso em 15.07.05.

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Flavio Farah
professor universitário em São Paulo (SP), mestre em Administração de Empresas

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