O ministro Nelson Jobim foi além das suas sandálias

Já confessei aqui — e chega a ser uma confissão, creio — que gosto de assistir na TV às sessões do STF. Aprendo muito. Acompanhar, por exemplo, os votos do ministro Celso de Mello é uma boa experiência de lucidez, rigor técnico, boa retórica, história. Vá lá: quase sempre concordo com ele. Tendemos a ser mais generosos com aqueles com cuja opinião aquiescemos, é verdade. Mas ele é reconhecidamente bom, até por quem se desagrada de seu voto. Gosto do humor e da inteligência de Marco Aurélio de Mello, ferino, com algumas observações à margem do núcleo de suas intervenções que informam, para quem sabe ler, um tanto dos bastidores do tribunal e das correntes de opinião ali instaladas.

Já Sepúlveda Pertence me irrita um pouco. Outro dia, gravei e transcrevi um trecho de sua fala. Ele consegue ser acaciano e gongórico ao mesmo tempo. A complexidade de um pensamento nada tem a ver com a incompreensão da sentença. “Penso, logo existo.” É quase boçal. Mas foi uma revolução. Gilmar Mendes é brilhante mesmo quando, e especialmente, discordo dele, como já aconteceu várias vezes. Nada é mais atraente, a quem quer aprender, do que o pensamento bem formulado de alguém que defende o oposto daquilo em que acreditamos. Eu aprendo mais quando resisto ao ensinamento do mestre. É da minha natureza.

Carlos Velloso costuma se destacar pela lhaneza, lustrando o mito do equilíbrio mineiro. Ayres Britto apela a alguma poesia, o que é arriscado. Remete a gostos pessoais. Quando cita um autor que tenho por energúmeno, acabo tratando com menoscabo toda a sua sentença. Poesia, em Justiça, é quase sempre uma desnecessidade. Os demais não me chamam a atenção, a não ser, claro, ele, Nelson Jobim, o presidente do STF, a quem já chamei, no dia 27 de julho, de candidato a Fortinbras do processo político. Hamlet faz uma bobagem federal, e o moço surgiu para instaurar a ordem. Naquela minha hipótese, um espectro me soprou ao ouvido que ele era pré-candidato à Presidência da República. É claro que ele pode — mas não estando no Supremo e, pior, na presidência.

Já o defendi antes, sem que tivesse pedido, é claro. Defendo e ataco quem eu quero, nos limites do que me faculta a lei. Quando decidiu em favor da verticalização, o PT o acusava de tucanismo. Achei que o ministro estava certo. Escrevi o que pensava. A minha tese era a de que a decisão era tecnicamente correta e não beneficiava o PSDB coisa nenhuma. A história provou que Primeira Leitura tinha razão. Tanto é que o PT teve um ótimo desempenho, não é mesmo?

No dia 29 de julho, voltei a puxar a toga do meritíssimo. Ele disse, então, que Lula tinha o direito de ser julgado pelo povo, referindo-se à tentativa de reeleição. A minha tese é a de que o presidente tem o direito é de ser julgado pela Constituição, que nem ele nem o povo podem transgredir. Lembrei ao presidente do Supremo que o guardião da Carta é o Judiciário, não o Executivo. E, finalmente, no dia 14 de setembro, achei que ele exorbitou nas suas funções ao interferir no andamento do processo de cassação (ou não) dos deputados.

Em suma, este leigo resolveu afrontar o especialista. Ele nem deve me dar bola. Mas não escrevo pensando no efeito. Só escrevo porque posso. Nesta quarta-feira, mais uma vez, achei que ele exorbitou. Ele e Sepúlveda comportaram-se como tropa de choque de Dirceu, interferindo de forma demasiada na expressão do voto dos ministros que se opuseram à demanda do ex-ministro da Casa Civil. Não os estou acusando de vinculação com o PT, não. O fato é que Jobim recorreu até a uma pegadinha contra para desmoralizar o seu voto. Achei o comportamento absolutamente inadequado. Uma outra interferência na exposição de Celso de Mello me pareceu confundir-se com a atitude de um bedel ou de um exibicionista. Sepúlveda, por sua vez, semelhava usar a tática da perturbação, com pequenos jabs para desestabilizar o orador.

Ok, isso é o que pareceu. É um juízo meu. Mas há uma coisa que não depende de juízo e é mais séria do que se supõe. Num dado momento, Ayres Britto observou que permitir que Dirceu fosse julgado por seus pares deputados poderia ter até um efeito didático na moralização da vida pública. Não, doutor Britto, eu não gostei disso. Dirceu não tem de ser usado como exemplo. Isso não é direito, é só juízo de valor. E eu esperava que dr. Jobim lhe desse esse pito.

Mas, veja o meritíssimo, que é poeta: ele conseguiu fazer uma emenda bem pior do que o seu soneto. Afirmou que sua observação era “udenismo”, “o udenismo que levou [Getúlio] Vargas ao suicídio”. Jobim conte a história como quiser. Mas convenhamos: poucas coisas são tão olímpicas e unilaterais quanto o suicídio. Vargas se matou porque quis e porque, quem sabe?, era mesmo um suicida. Foi ele quem apertou o gatilho. Se Jobim quer viajar fora da consciência do presidente morto, então tem de buscar o responsável num homicida que se escondia dentro do Palácio do Catete: Gregório Fortunato. A UDN não teve nada com isso. A “República do Galeão” só foi instalada — evento que ainda serve de grande satã das esquerdas e de grande adversário do caudilhismo — porque o governo federal não tinha condições morais e políticas de conduzir a investigação.

Afirmar que a UDN levou Getúlio ao suicídio é fazer má história, com eventuais reflexos presentes quando se é presidente de um tribunal e se está julgando uma causa. Porque, no caso, o juiz pode ser tentado a fazer paralelos indevidos, descabidos, como supor que o governo Lula, eventualmente representado por José Dirceu no caso em questão, é o “trabalhismo” da hora, o “pai do povo” do momento, e que seus adversários políticos, que são legítimos, se deslegitimam porque seriam golpistas, à feição da UDN homicida que, curiosamente, teria matado um suicida porque, afinal, homicida não era.

Jobim foi além das suas sandálias.

Publicado em 19 de outubro de 2005 no site Primeira Leitura.

Revista Consultor Jurídico

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