por Pedro Luis Oberg Feres
Por meio do Decreto 46.228, de 23 de agosto de 2005, o Exmo. Sr. Prefeito de São Paulo alterou significativamente o procedimento de apuração do Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis – ITBI.
Como se sabe, a base de cálculo do ITBI é limitada a, no mínimo, o valor venal do imóvel. Ocorre, contudo, que o referido decreto veio a possibilitar a alteração dos valores venais dos imóveis paulistanos mediante apuração periódica e por amostragem dos preços correntes das transações e das ofertas à venda no mercado imobiliário. Vejamos:
“Art. 7º – A base de cálculo do imposto é o valor venal dos bens ou direitos transmitidos.
§ 1º – Considera-se valor venal, para efeitos deste imposto, o valor pelo qual o bem ou direito seria negociado à vista, em condições normais de mercado.”
(…)
“Art. 8º – A Secretaria Municipal de Finanças tornará públicos os valores venais atualizados dos imóveis inscritos no Cadastro Imobiliário Fiscal do Município de São Paulo.
§ 1º – Os valores venais dos imóveis serão atualizados periodicamente, de forma a assegurar sua compatibilização com os valores praticados no Município, mediante pesquisa e coleta permanente, por amostragem, dos preços correntes das transações e das ofertas à venda no mercado imobiliário, inclusive com a participação da sociedade representada no Conselho de Valores Imobiliários.
(…)
§ 3º. O valor venal divulgado, em nenhuma hipótese, será inferior à base de cálculo do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana – IPTU, utilizada no exercício da transação.”
Nota-se, de início, que disposição supra não trata de atualizar monetariamente, por índices, legais, o valor da base de cálculo do ITBI. Mas, em verdade, busca a efetiva alteração dos valores, mediante verificação das práticas correntes no mercado.
As irregularidades são diversas e evidentes:
O Decreto 46.228/2005 confere à administração pública municipal – como se assim pudesse fazê-lo – a competência para definir a base de cálculo do ITBI.
Entretanto, certo é que os elementos da Regra Matriz de Incidência Tributária, dentre os quais indiscutivelmente se encontra a base de cálculo do tributo, somente podem ser definidos (criados, alterados ou majorados) por meio de lei, ante o que dispõe o artigo 150, inciso I, da Constituição Federal. Vejamos:
“Art. 150 – Sem prejuízo a outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I – Exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça.”
Também dispõe o Código Tributário Nacional, em seu artigo 97, que:
“Art. 97 – Somente a lei pode estabelecer:
(…)
II – a majoração de tributos, ou a sua redução, ressalvado o disposto nos arts. 21, 26, 39, 57 e 65.
(…)
§ 1º – Equipara-se à majoração do tributo a modificação de sua base de cálculo, que importe em torná-lo mais oneroso.”
Acerca do preceito acima, atesta o professor José Eduardo Soares de Melo que “a instituição, majoração e extinção dos tributos (…) deve ser sempre prevista em ‘lei’, compreendida como espécie normativa editada pelo Poder Legislativo”[1].
Assim, vê-se que o decreto ora analisado, afronta claramente as disposições do CTN e da Constituição Federal, uma vez que dá margem ao Conselho de Valores Imobiliários do município, órgão administrativo, a aumentar a base de cálculo do ITBI.
Presente, também, afronta à própria lei que regula o imposto, tendo em vista que o decreto deve ser ato vinculado às suas disposições, e não ato independente, que dispõe sobre o que bem entender aquele que o emana.
Os princípios constitucionais da legalidade e da estrita legalidade estão evidentemente malferidos.
Como se não bastasse, nota-se que os vícios expostos não se tratam de mero equívoco do Poder Executivo Municipal. A sua malícia é desmascarada no momento em que se verifica que o decreto não permitiu a redução do valor venal do imóvel, quando levado em conta aquele utilizado para o lançamento do IPTU (§3º, do artigo 8º, do Decreto 46.228/2005), mas somente a sua majoração.
Nesse contexto, percebe-se que o prefeito e seus assessores conheciam perfeitamente o princípio da estrita legalidade tributária. Contudo, optaram por respeitá-lo tão somente na parte em que interessava ao Fisco Municipal, ou seja, no ponto que em não se permite a diminuição da base de cálculo do ITBI.
É certo e pacificado que a revisão dos valores venais dos imóveis deve ser feita por meio de lei, e nunca por decreto. Isso pelo simples fato de que valor venal é base de cálculo.
Nesse sentido já decidiu o STJ por diversas vezes, sendo que, para o caso do IPTU, o entendimento já está sumulado, não sendo possível a atualização do tributo, “mediante decreto, em percentual superior ao índice oficial de correção monetária”[2].
Da mesma forma é o posicionamento do STF, sendo oportuno trazer à colação julgado deste Eminente Órgão:
“EMENTA: – CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. IPTU. VALOR VENAL DO IMÓVEL. ATUALIZAÇÃO. NECESSIDADE DE LEI EM SENTIDO FORMAL.
I. – É vedado ao Poder Executivo Municipal, por simples decreto, alterar o valor venal dos imóveis para fins de base de cálculo do IPTU. Precedentes.
II. – Agravo não provido.”
(AI 450.666 – Relator: Min. Carlos Velloso – 2ª Turma do STF – DJ: 18.06.2004)
Como se vê, é evidente a impossibilidade de se aumentar o valor venal do imóvel por meio de um simples decreto, esvaindo-se de todo o tramite legislativo necessário.
Contudo, não é esta a única irregularidade presente no nefasto Decreto.
Ao possibilitar a alteração da base de cálculo mediante a verificação periódica dos preços correntes das transações e das ofertas à venda no mercado imobiliário, o Decreto nº 46.228/2005 determinou que a administração pública afronte constantemente, a cada verificação dos preços, os princípios da anterioridade e da anterioridade nonagesimal, previstos no artigo 150, inciso III, alíneas b e c, da Constituição Federal, que dispõe, in verbis:
“Art. 150 – Sem prejuízo a outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
(…)
III – Cobrar tributos:
(…)
a) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou;
b) antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, observado o disposto na alínea b.”
Realmente, após a verificação dos preços praticados no mercado, a administração não aguardará (como já não vem aguardando, conforme se verifica das transações imobiliárias atualmente feitas) o prazo constitucional para aplicar a nova base de cálculo a quem pretender comprar ou vender um bem imóvel.
O combate ao Decreto 46.228/2005 já se iniciou na esfera judiciária, de modo que a muitos contribuintes vêm sendo concedidas medidas limiares para afastar a majoração da base de cálculo do ITBI.
Dessa forma, seja por sua ilegalidade, decorrente da afronta às disposições do CTN e da incongruência entre o Decreto questionado e a lei do ITBI, seja por sua inconstitucionalidade, conclui-se que a alteração promovida na base de cálculo do ITBI pelo Decreto 46.228/2005 deve ser banida de imediato do ordenamento jurídico, resguardando-se, assim, os direitos do contribuinte.
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[1] Curso de Direito Tributário, ed. Dialética, 5ª edição, pág. 20.
[2] Súmula 160, STJ.
Revista Consultor Jurídico