Ivan César Ribeiro
SÃO PAULO – Dois acontecimentos recentes, embora bastante distintos à primeira vista, mostram aspectos da justiça que são objeto de grande discussão nos meios acadêmicos e entre os gestores de políticas públicas e legisladores. Há alguns dias, a reunião do Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores para decidir quanto à expulsão de Delúbio Soares foi frustrada por uma medida judicial, que amparada no alegado cerceamento da defesa do ex-tesoureiro concedeu liminar proibindo a discussão do tópico. Pouco depois a Polícia Federal pediu a prisão de Paulo Maluf, seu filho Flávio e do ex-prefeito Celso Pitta, alegando que os três, investigados por remessas ilegais de dinheiro ao exterior, estariam atrapalhando as investigações e intimidando testemunhas.
No primeiro caso muitos poderiam atribuir ao excesso de formalidades burocráticas no sistema judicial brasileiro a possibilidade de transgressores das leis escaparem impunes. O prejuízo seria causado não só pela demora desses procedimentos, mas também pela maior probabilidade de se corromper alguma autoridade no percurso do processo _afinal, quanto mais pessoas envolvidas na apuração, maior a probabilidade de se encontrar um funcionário público disposto a aceitar alguma compensação para desaparecer com provas ou para atrapalhar o curso da investigação.
Essa é a crítica que muitos estudiosos fazem do sistema judicial brasileiro, conhecido como sendo da tradição da civil law, ou seja, do direito codificado, onde cada passo do juiz está determinado em lei. Através da análise de dados de dezenas e dezenas de países, pesquisadores de Harvard e do Banco Mundial concluem que, quanto mais formal for a justiça, menos eficiente e mais sujeita a corrupção e a decisões injustas esta será. Estes pesquisadores defendem a adoção de procedimentos mais simplificados, inspirados na common law (ou direito costumeiro da tradição anglo-saxão), como solucionadores do problema.
No caso do pedido de prisão da Polícia Federal fala-se na tentativa dos economicamente (ou politicamente) poderosos de subverter a justiça. O problema remete ao princípio do estado moderno, quando foi necessário limitar o poder do soberano, fazendo a separação de poderes e criando as normas escritas, para que este não favorecesse aos protegidos pelo regime.
Dizia-se “aos amigos tudo, aos inimigos a lei” resumindo a situação no estado absolutista. Recentemente o pesquisador brasileiro José Scheinkman publicou artigo onde demonstra que, havendo desigualdade social, os mais poderosos tomarão a justiça a seu favor, fazendo com que os cidadãos comuns sejam prejudicados. Sem a segurança da observância do seu direito, o cidadão comum vai evitar qualquer tipo de negócio com esses poderosos _o resultado final seria a redução do investimento privado, com prejuízos para o desenvolvimento econômico. Em resumo, um maior formalismo na justiça visa exatamente impedir que os poderosos a coloquem ao seu serviço, prejudicando o conjunto da sociedade.
Como então, partindo desse início e com a finalidade tão nobre de tornar a justiça imparcial, chegou-se a situação em que o formalismo é prejudicial, redundando apenas em impunidade, injustiça e corrupção?
Na realidade os pesquisadores de Harvard e do Banco Mundial ignoram um dado essencial do problema _o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, e a tendência apontada por Scheinkman é muito mais aguda em nosso país. Um estudo premiado pela Controladoria Geral da União, partindo da mesma análise dos detratores do nosso direito codificado, mostra que o formalismo de fato leva a mais injustiça e corrupção, exceto quando associado a mais desigualdade social.
Analisando dados de 110 países, fica provado que o formalismo reduz a corrupção e a injustiça onde existe grande desigualdade social (disponível na íntegra em http://www.cgu.gov.br/sfc/monografias/nivelsuperior.html). As regras nesse caso funcionam como um freio ao poder desmesurado de alguns, sem, no entanto, evitar a lentidão e de fato criando oportunidades para corrupção do judiciário. Os benefícios ainda assim superam os danos.
No Brasil, a situação que tivemos nos últimos anos foi a de um judiciário vergado pelo peso do poder. Inicialmente, o peso das botas dos generais de plantão e, em anos recentes, o poder econômico e político que afasta delegados, avoca processos, pune servidores da justiça probos e honestos e tenta amordaçar o Ministério Público e a imprensa.
O avanço das instituições brasileiras propiciou o abrandamento dessa situação – é possível que em algum tempo possamos ver mais poderosos atrás das grades. Quem sabe um dia estes também se habituem com o fato de o chamado devido processo legal não significa soltar o rico que destrói provas, e prender o pobre invocando “clamor social” ou mesmo a velha e racista idéia de “periculosidade”.
Como resultado, uma maior demora na punição em casos como o do ex-tesoureiro é o preço a se pagar se quisermos um maior rigor da lei contra os poderosos, como talvez venha a acontecer no caso de Maluf e companhia.
A regra aqui é simples, vai para a cadeia quem é julgado culpado, sempre ao final do devido processo legal e com todas as garantias de defesa. Prende-se antes aquele que tenta destruir provas, intimidar testemunhas ou ameaça escapar das garras da lei brasileira, como fez o banqueiro Salvatore Cacciola, beneficiado por um habeas corpus sem que o douto e distraído magistrado concessor da ordem lembrasse de lhe mandar confiscar o passaporte. Tudo isso sem depender de quanto o meliante tenha na carteira ou de quem conhece em Brasília.