Apurados os votos do Referendo sobre a proibição do comércio de armas de fogo e munição em todo o país, 64% dos cidadãos brasileiros disseram Não.
Louva-se a democracia direta como meio legítimo de exercício da cidadania. Certo, não há que se discutir se o povo sabe ou não sabe votar. O povo vota livremente, cada indivíduo sozinho na cabine tem o poder de decidir somente de acordo com sua convicção. Para formar sua opinião existem, além do debate público que a imprensa anima, as campanhas publicitárias.
Mas porque devem estar sempre acompanhados da responsabilidade daqueles em relação aos efeitos de suas decisões soberanas.
Essa fórmula de imputar aos sujeitos livres a responsabilidade pelas conseqüências de seus atos praticados sem coação ou demais defeitos, que vale para as relações privadas, profissionais e corporativas, valerá também para o campo político, para os cidadãos e seus representantes?
Um dos pontos fortes da dramática campanha do NÃO foi ter conseguido mobilizar a atenção do eleitor em torno de uma ameaça. A ameaça da perda ou subtração de direitos, que supostamente a vitória do SIM representaria. Ninguém admite que lhe tirem direitos adquiridos e isso a Constituição assegura, na cláusula pétrea que consagra o princípio da irretroatividade das leis (artigo 5º, inciso XXXVI). Mas era disso que tratava o referendo, da perda de direitos adquiridos? Não, mas aparentemente ninguém notou, pois a campanha reforçou até o final essa ameaça, estabelecendo ainda uma associação que procurava responsabilizar o Governo Federal pela suposta subtração de direitos.
Em outra frente, a campanha vitoriosa foi um pouco além e indagava do eleitor se lhe era possível confiar nas instituições públicas responsáveis pela ordem e pela segurança, ou seja, se o Estado-Justiça merece a confiança dos cidadãos. Não, Não, Não, Não, em coro cada vez mais forte, responderam os cidadãos brasileiros no dia 23 de outubro, exatamente como na peça publicitária da campanha do NÃO.
Não cabe julgar a decisão expressivamente majoritária dos cidadãos brasileiros, mas as análises, sim, podem e devem ser feitas.
Em primeiro lugar, a voz do povo mandou um recado ao próprio Estado, aos políticos e às instituições. Um recado que parece dizer: – não se metam! Diante de sua ineficiência, como polícia e como justiça, abstenha-se o Estado de interferir na esfera privada e no direito de autodefesa armada, que embora não estivesse diretamente em jogo no referendo, foi proclamado pela campanha vitoriosa e confirmado pela população.
Ocorre que há muito tempo o Estado nacional soberano que chamamos de moderno, assumiu para si a tarefa exclusiva de distribuir justiça e manter a ordem social por meio da violência controlada pelo Direito. E agora, que cenários essa decisão projeta para o futuro?
Será exagero imaginar que haverá um aumento do comércio de armas e munições? Será que, alarmado e descrente, saberá o cidadão de bem que o seu juízo individual no momento de utilizar uma arma – para se defender ou “fazer justiça” – pode ainda ser julgado pelo Estado-juiz? Será que houve e há suficientes esclarecimentos para alertar os cidadãos acerca dos riscos de abusos que possam cometer em legítima defesa?
Alguém dirá, agora, que essas são questões impertinentes, pois a lei não autoriza o porte e utilização de armas indistintamente. Ora, os legisladores a esta hora também devem estar analisando os resultados do referendo, afinal ano que vem tem eleição.
Revista Consultor Jurídico