por Maria Luiza J de Arruda Camargo
O sufrágio universal é a expressão da democracia. Garante ao povo, em nome de quem o poder público é praticado (Art. 1º, parágrafo único, da Constituição: “Todo o poder emana do povo que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”), a manifestação de sua vontade política, mediante o voto.
Ou seja, o sufrágio universal é o direito abstrato e genérico, o voto direto e secreto seu exercício, conforme o artigo 14 da Constituição:
A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:
I – plebiscito;
II – referendo;
III- iniciativa popular.
Acresça-se que a regra geral é o voto obrigatório aos maiores de dezoito anos, sendo facultativo para os analfabetos, os maiores de setenta e os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos.
Pois bem, parece ser inconciliável que o voto seja ao mesmo tempo a substância da democracia e um dever de exercício obrigatório, com graves sanções pelo seu descumprimento.
As pessoas em geral intuem que não é razoável o voto obrigatório, que isso não condiz com o conceito de liberdade política. Observam que em muitos países democráticos, como nos Estados Unidos, o voto não é uma imposição, mas não conseguem fundamentar essa impressão. Assim, tentemos adiante, oferecer um subsídio jurídico que justifique o voto facultativo.
Equacione-se tecnicamente a questão: autores reconhecidos distinguem sufrágio de voto, dizendo que aquele é o direito em potência e esse (o voto) o exercício daquele direito (André Toulemond, “Le suffrage Universel Intégral, apud Anderson de Menezes, in Teoria Geral do Estado, p.329).
Ou seja, o sufrágio universal outorga ao cidadão o direito subjetivo ao voto, confere ao interessado o direito de votar e ser votado; é uma garantia com sede constitucional que permite ao seu titular a prerrogativa de exercer o direito de voto. (José Afonso da Silva ensina que “(…) o voto e o escrutínio são manifestações do direito de sufrágio.”, in Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 310).
Ou seja, o voto é a expressão do direito ao sufrágio universal, é um direito subjetivo que pode ou não ser exercido. Por quê?
Conforme o magistério de Vicente Rao, uma coisa é a norma que disciplina a ação (norma agendi), outra a faculdade de agir de conformidade com o que ela dispõe (facultas agendi). “Aquela, como mandamento, ou diretriz que é, vive fora da pessoa do titular da faculdade conferida e constitui o direito objetivo; esta, que na pessoa do titular se realiza, forma o direito subjetivo (…) E, assim, encontramos frente a frente uma prescrição e uma faculdade; ali, uma expressão da vontade geral, aqui um poder de ação, cujo exercício depende da vontade do respectivo titular. Prescrição e faculdade são essas, que nascem ao mesmo tempo, no mesmo instante em que a norma adquire força obrigatória, porque outorgar faculdades é uma das finalidades essenciais da norma jurídica.” (O Direito e a Vida dos Direitos, p. 158).
Direito objetivo e subjetivo são conceitos que não se excluem, mas coexistem concomitantes. O direito objetivo, genérico e abstrato, incide sobre todos, e o titular do direito tem a faculdade, a prerrogativa de exercê-lo ou não. Direito objetivo, ou norma agendi corresponde ao “law” dos ingleses, ao “Recht”; dos alemães; direito subjetivo ou facultas agendi ao “Right” dos anglos, ao “Gesetz” dos germânicos.
Se o direito objetivo estabelece, por exemplo, que eu tenho o direito ao casamento, não está me obrigando a tal ato, não fixa uma sanção pelo seu não exercício e nem vincula o meu direito a uma obrigação de terceiro. Eu tenho o “direito” de casar, mas ninguém pode obrigar-me ao matrimônio. Se assim é, como pretender coagir o cidadão a votar? Ele tem direito (facultas agendi, right) de votar, a faculdade de fazê-lo.
Assim, o sufrágio, seria o direito potencial, a norma agendi, o law, que faculta a todos os cidadãos o exercício do voto (e portanto, se quiser).
E isso, abstraindo-se o caráter de liberdade agregado ao conceito de democracia, ou seja, mais democrático do que o voto obrigatório, é facultar à vontade do titular do direito o seu exercício ou não.
Revista Consultor Jurídico