Toque de recolher não diminui a violência, só a esconde

por José Ribamar da Costa Assunção

Um dos três mais graves problemas nacionais é o da segurança pública. Todos os governos sabem que a polícia é deficiente, mal aparelhada, incapaz de atender à comunidade. Não obstante, até hoje, não se deu um passo certo na direção de um projeto que revitalize nossas polícias, sobretudo a militar e a civil, adotando programas voltados para a construção de uma nova polícia, aparelhada, diligente, eficaz, competente.

O policial brasileiro precisa ter um outro perfil. Os governos devem investir na formação de policiais capazes de merecerem a confiança da coletividade, capazes de combater a violência, o bandido, e em condições de trazer tranqüilidade a toda a comunidade através de ações ponderadas, meditadas, criteriosas. É necessário educar nosso policial. A violência no país atingiu a própria polícia. Fica cada vez mais evidente que as pessoas temem a polícia, pois esta não oferece a tranqüilidade que dela se espera.

O cientista social Sérgio Adorno, coordenador do Núcleo de Estudos da Violência da USP — Universidade de São Paulo, adverte que “a persistência das desigualdades sociais e raciais, e a falta de acesso e confiança nas instituições de promoção do bem-estar social, são alguns dos pontos que podem explicar a violência à qual está submetida hoje a população de várias regiões do país”. Enfatiza que “outro mecanismo capaz de reduzir a violência urbana é o aperfeiçoamento da polícia”.

No Piauí, sobretudo em nossa capital, a violência também se alastra. Nos últimos dias, tenho lido nos jornais locais que aumentou o número de assaltos e arrombamentos no centro da cidade, segundo números fornecidos pelo 1º Distrito Polícial, além do que os homicídios contra mototaxistas vem crescendo, com cinco vítimas somente este ano. Nossa polícia tem sido bastante ineficiente no combate aos crimes com maior grau de periculosidade, culpa do sistema, que precisa ser aperfeiçoado.

Sem cuidar de exigir do governante estadual um elenco de medidas visando o devido aperfeiçoamento do aparelho policial, para efetivamente prestar um serviço de qualidade à coletividade piauiense, a Secretaria de Segurança Pública resolveu adotar uma medida que vem dividindo opiniões da população em todo o Estado: um “toque de recolher” — esse o nome pelo qual ficou conhecida a operação —, que determina observância de certos horários, escolhidos ao talante do órgão da segurança, para fechamento de bares, restaurantes, churrascarias, traileres e estabelecimentos similares.

A resolução 12.000-001GS/2005, de 30/09/2005, publicada somente em 24/10/2005, no Diário Oficial do Estado, é uma medida equivocada, pois trata igualmente os desiguais, ou seja, põe, na mesma balança, estabelecimentos que respeitam as leis de posturas municipais ao lado daqueles que sequer possuem alvará de funcionamento da Prefeitura, além de considerar que todo estabelecimento que venha a funcionar fora dos horários estabelecidos na resolução atenta contra a ordem, a tranqüilidade e a paz social!

Porque generaliza, e toda generalização é condenável, o ato do Secretário de Segurança não é criterioso, não merece aplauso. O cidadão comum, principalmente o leigo em matéria de segurança pública, deve analisar com reservas essa medida que carece de lastro legal, cobrando da Secretaria de Segurança ações sérias, coerentes, criteriosas, para que possamos ter uma polícia preventiva, aliada da coletividade, que saia às ruas, que dê segurança ao cidadão. Devemos exigir a criação das guardas municipais e que seja feita uma ronda permanente em ruas, praças e bairros das cidades. Para tanto, o chefe do Executivo deve priorizar a segurança pública, não deixando que o cidadão fique à mercê do bandido, tomando um conjunto de medidas eficazes no combate à violência e destinando verbas suficientes para esse fim.

O fechamento de bares e restaurantes deve ser medida excepcional, depois da análise de cada caso, criteriosa, jamais podendo ser estendida a todos, indiscriminadamente, como faz, equivocadamente, a resolução da segurança. Por exemplo, nas cidades de Barueri, Diadema, Embu, Mauá e Osasco, na Grande São Paulo, também foram tomadas medidas para fechamento de bares, restaurantes e similares; mas é preciso considerar que houve flexibilização de horários, além da instrumentalização e aumento do efetivo das guardas municipais.

Nessas cidades, todas com área bem menor que Teresina (Diadema tem apenas 30,7 km², equivale a um bairro; Teresina conta com 1.672,5 km²), as guardas municipais realmente trabalham, fazendo uma ronda permanente nas ruas, existem câmaras de segurança para monitoramento dos bairros mais violentos, a polícia é instrumentalizada, e os municípios atendem as Metas do Milênio recomendadas pelo PNUD — Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Ali, os horários de fechamento não valem para todos os estabelecimentos. No caso de Diadema, cerca de 27 estabelecimentos em áreas de baixa criminalidade não estão sujeitos ao toque de recolher.

De entender, ainda, que nem mesmo uma lei, de natureza municipal ou estadual, poderia abolir ou limitar, indisciminadamente, o trabalho noturno, como fez a equivocada resolução, visto que tornaria letra morta o artigo 73, parágrafo 2º, da Consolidação das Leis do Trabalho, diploma federal, além do que atentaria contra as normas de direito internacional sobre o trabalho noturno constantes de convenções da Organização Internacional do Trabalho, órgão da ONU, de sorte que, ao ferir diplomas superiores, estaria invadindo também a esfera da competência constitucional, que prevê o trabalho noturno como direito social do trabalhador (artigo 7º, inciso IX, da Constituição Federal).

Inegável, portanto, que o ato da Secretaria de Segurança deixa muito a desejar, não tem arrimo legal e sequer se justifica, considerando já existirem os códigos de posturas municipais, que estabelecem medidas de funcionamento, também tratam dos horários, para os estabelecimentos atingidos pela resolução. Se a Secretaria de Segurança pretende punir bares e restaurantes irregulares, que sabemos existir, basta fazer um convênio com as prefeituras e, através de uma ação conjunta, tomar medidas para cumprimento dos códigos de posturas.

Como vem fazendo, o órgão da segurança, que usa a falsa premissa do combate à violência e ao crime, pratica um “bis in idem” nefando, desrespeita direitos e garantias individuais e coletivos (artigo 5º, incisos XIII e XV, da Constituição Federal), além de violar o consagrado princípio internacional do livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, especificamente, o direito social do trabalho noturno, assegurado pela Constituição Federal (artigo 7º, inciso IX), previsto na CLT (artigo 73) e reconhecido pela Convenção 171 da Organização Internacional do Trabalho. De mais a mais, a resolução é inconstitucional, uma vez que não tem força de lei, na forma do artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal: “Ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. O ato, portanto, é passível de mandado de segurança e ação direta de inconstitucionalidade (Constituição Federal, artigos 5º, incisos LXIX e LXX, e 101, inciso I, “a”).

O Secretário de Segurança, de uma canetada só, praticamente aboliu o direito ao trabalho noturno em nosso Estado, aquele executado entre 22 horas de um dia e as 5 horas do dia seguinte, tornando ineficaz a norma constitucional e a norma celetista! Uma conquista da civilização, reconhecida e consagrada pelo direito internacional, foi varrida, praticamente banida do nosso meio, da nossa comunidade, por ato administrativo abusivo, intolerável e inconstitucional. Ora, o “toque de recolher” não diminui a violência, serve apenas para mascará-la, paliativo ilusório que é criado com o intuito de aliviar a responsabilidade da Polícia, que vem sendo poupada da sua função maior: fazer o policiamento preventivo para evitar os crimes, trazer tranqüilidade ao cidadão.

A redução da violência deve vir através de um conjunto de ações com a finalidade de combater suas causas exógenas e endógenas, estas muito mais sérias que as primeiras. O governo deve investir maciçamente na educação fundamental e no ensino técnico, tomar medidas de contenção das favelas, possibilitar o acesso de todos a uma ocupação digna, revitalizar o sistema público de saúde e da segurança.

A reforma da lei penal e de execução penal é imprescindível, e também necessária a construção de um número adequado de penitenciárias, com medidas que obriguem todo o preso a trabalhar em benefício da comunidade, do país, da Nação. Afinal, não é demasiado acentuar que um governo que se preza cultiva uma constante e imperturbável preocupação com a educação, saúde e segurança do seu povo.

Revista Consultor Jurídico

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