Pedro Aurélio de Queiroz
SÃO PAULO – Os programas de fidelidade têm despertado atenção especial do antitruste, pelos riscos de eliminação da concorrência nos mercados e devido à possível redução do bem estar do consumidor (ou comprador) com o aumento de sua dependência em relação à empresa que cria o programa.
Excelente estudo comparado da OCDE, a partir de elementos comuns de distintas jurisdições, define fidelity discounts (descontos de fidelidade) como estruturas de preço baseadas em descontos concedidos como contrapartida ao compromisso do comprador em adquirir margem crescente de produtos. Desta forma, descontos de fidelidade são identificados como estratégias capazes de influenciar, de modo determinante e não-desprezível, os preços dos produtos incluídos no programa, bem como a quantidade demandada pelos estabelecimentos participantes.
Desta forma, os programas de fidelidade devem representar ações sobre o preço do produto comercializado e não necessariamente progressões de quantidades demandadas pelos compradores. De modo geral, nos descontos de fidelidade, o percentual de desconto aumenta em função do volume de compras, em progressões discretas, durante determinado período de referência considerado em relação a período de referência anterior.
No direito norte-americano, tem-se entendido que tais descontos, adotados por empresas dominantes, são pró-competitivos, desde que não inferiores ao custo do produto (ou mais precisamente, ao custo variável médio). Assim, qualquer intervenção em práticas de descontos seria interpretada como forma de induzir empresas com poder de mercado a praticar preços altos. Já o direito europeu tem dispensado tratamento restritivo ao tema. Essa diferença de abordagem restou comprovada no famoso caso British Airways. Enquanto a Comissão Européia entendeu que o programa de incentivos da British Airways era abusivo, o Judiciário norte-americano, em análise sumária, considerou o desconto legítimo.
A CJE (Corte de Justiça Européia), na esteira do preconizado pelo questionário da OCDE, faz importante distinção entre descontos de fidelidade e descontos por quantidade. No caso Hoffmann-La Roche, a CJE definiu descontos por quantidade como relacionados ao volume fixo demandado pelos compradores. Dessa forma, são considerados descontos por quantidade aqueles concedidos em relação a quantidades objetivamente fixadas e possíveis de prática por todos os concorrentes. Descontos desse tipo, em geral, não são considerados capazes de gerar problemas concorrenciais, desde que economicamente justificados.
Dessa maneira, a distinção essencial entre descontos de fidelidade e descontos por quantidade está no fato de que estes últimos são baseados em quantidades fixadas objetivamente e válidas para compradores não especificados. Já os descontos de fidelidade são estabelecidos caso a caso em função da capacidade de absorção do cliente. Nessa linha, descontos de fidelidade não seriam calculados, simplesmente, com base em quantidades fixas, mas, de modo variável, com base nas necessidades individuais dos compradores.
Esses descontos são também chamados descontos de fidelidade em sentido estrito e caracterizam-se pelo compromisso do cliente em adquirir de determinado fornecedor parte substancial ou a totalidade de suas necessidades do produto. Tais descontos, porque baseados na capacidade demandada de cada comprador, podem ter como efeito, de um lado, o fechamento do mercado e, de outro, a discriminação dos clientes que não fizeram jus aos descontos e que, portanto, encontram-se em desvantagem competitiva em relação aos que receberam (casos Hoffman-La Roche e Ceniza de Sosa).
Outra modalidade de descontos de fidelidade é aquela em que a concessão dos descontos é condicionada à elevação do volume de compras em relação a período de referência anterior. Estabelece-se, como requisito do desconto, que as aquisições de novos produtos sejam progressivas, ou seja, que representem o crescimento da quantidade demandada.
Essa modalidade de desconto pode ter como conseqüência a exclusão dos demais fornecedores, dado que a imposição da progressão nas compras descartará a aquisição de produtos dos concorrentes. Tais descontos também podem ser considerados discriminatórios, uma vez que conduzem à aplicação de diferentes preços entre clientes que, não obstante comprarem o mesmo volume, tenham efetuado compras anteriores em quantidades diferentes.
Descontos não transparentes e sistemas de pontuação subjetivos também têm sido considerados anticoncorrenciais pela Comissão Européia (2001 Michelin Decision). Tais descontos são considerados abusivos, pois causam incerteza nos clientes em relação ao montante real dos descontos. A falta de compreensão exata do programa pode provocar o incremento das compras em busca de maiores descontos e, desta forma, induzir à fidelidade.
A aplicação retroativa de um sistema de descontos também pode ser considerada nociva à concorrência. Trata-se da aplicação do programa de descontos em relação às compras efetuadas anteriormente à sua vigência. No caso British Airways, a concessão de descontos para agências de viagens com base nas vendas realizas no ano anterior à vigência do programa foi considerada fator de desestímulo à comercialização de pacotes aéreos de outras empresas.
Além do efeito de exclusão, a comissão entendeu que o programa de descontos possuía caráter discriminatório, uma vez que premiava empresas com bons resultados no ano anterior em detrimento de empresas que, ainda que comprassem a mesma quantidade de passagens no ano corrente, não tivessem obtido os mesmos resultados pretéritos.
Por sua vez, descontos com períodos de referência longos são considerados potencialmente anticompetitivos. Existe o convencimento de que, em períodos longos, tais programas estimulam a vinculação de clientes, que poderão alcançar descontos progressivamente maiores. No caso Michelin, a Comissão entendeu que o período de um ano de vinculação no programa era excessivamente longo.
É importante destacar que o período de um ano foi considerado longo pela vinculação necessária do cliente ao programa e devido à imposição de obrigações de, no período de referência, aquisição de volume mínimo de produtos Michelin. Assim, devem ser separadas duas realidades distintas: (1) a duração de um programa de desconto e (2) a duração da exigência de vinculação ao programa.
No caso Michelin estava em questão a vinculação necessária durante o lapso de um ano para, ao cabo do período, verificar o cumprimento dos requisitos do programa, pelos revendedores, e a contabilização das compras mínimas para que os mesmos pudessem fazer jus aos benefícios oferecidos.
Descontos não lineares e progressivos são tidos, pelo direito europeu, como contrários à ordem econômica. Tais descontos são aplicados de modo crescente e não-proporcional, de acordo com a progressão do volume demandado pelos estabelecimentos. Por exemplo, um desconto linear representaria 1% na aquisição de até 100 caixas de cerveja, 2% para aquisição entre 101 e 200 caixas e 3% para aquisição entre 201 e 300 caixas. Já o desconto não-linear representaria 1% na aquisição de até 100 caixas de cerveja, 2,5% para aquisição entre 101 e 200 caixas e 6% para aquisição de volumes superiores a 200 caixas.
Descontos discriminatórios e seletivos são também considerados abusivos pela Comissão Européia. Estes descontos privilegiam determinados clientes e restringem a participação de outros na mesma área geográfica.
Por fim, a oferta conjugada de produtos é considerada forma indireta de concessão de descontos com possíveis efeitos anticompetitivos. Trata-se da oferta de um produto visando estimular a venda de outros. Vale dizer, um produto é ofertado com desconto, desde que adquirido conjuntamente com outros produtos. Tal conduta tende a ser praticada por empresas que, ao mesmo tempo em que são dominantes em determinado mercado, participam de outro mercado em que não são dominantes (competição acirrada).
Dessa forma, tais empresas condicionam a venda de produtos do mercado em que são dominantes à aquisição de produtos que se encontram em mercado competitivo para tentar alavancar suas vendas nesse mercado.
Os programas de fidelidade, nas suas variadas formas, merecem cuidado especial dos órgãos brasileiros de defesa da concorrência, já que apresentam sérios riscos de fechamento de mercado e eliminação da concorrência. No entanto, tais efeitos negativos só podem ser aferidos concretamente após análise das características essenciais do programa e dos seus efeitos para a concorrência. Por vezes, tais programas podem gerar importantes eficiências econômicas e não representar qualquer possibilidade de dano ao mercado.