Manuais de Direito apresentam profundo deficit de realidade

por Lenio Luiz Streck

Já há algum tempo venho denunciando a crise da dogmática jurídica. Tenho falado de uma crise de paradigmas de dupla face: uma crise de modelo e uma crise de caráter hermenêutico (compreensivo). De um lado, os operadores do direito continuam reféns de uma crise emanada da tradição liberal-individualista-normativista; de outro, permanecem mergulhados na crise dos paradigmas aristotélico-tomista e da filosofia da consciência. O resultado dessas crises é um Direito alienado da sociedade, questão que assume foros de dramaticidade se compararmos o texto da Constituição com as promessas incumpridas da modernidade.

Simbolicamente, os manuais1 que povoam o imaginário dos juristas representam com perfeição essa crise. Há, pois, um profundo déficit de realidade. Os próprios exemplos utilizados em sala de aula, ou nos próprios manuais, estão desconectados daquilo que ocorre em uma sociedade complexa como a nossa. Além disso, essa cultura estandardizada procura explicar o Direito a partir de verbetes jurisprudenciais ahistóricos e atemporais.

Ocorre, assim, uma ficcionalização do mundo jurídico-social. Alguns exemplos beiram ao folclórico, como no caso da explicação do “estado de necessidade” constante no artigo 24 do Código Penal, não sendo incomum encontrar professores (ainda hoje) utilizando o exemplo do naufrágio em alto-mar, em que duas pessoas (Caio e Tício, personagens comuns na cultura dos manuais) “sobem em uma tábua” e, na disputa por ela, um deles é morto (em estado de necessidade !). A pergunta fica mais “sofisticada” quando o professor resolve discutir o “foro de julgamento” de Caio (entra, então, a relevantíssima discussão acerca da origem da referida tábua, como se pudesse haver outra flutuando em alto-mar, além daquela que, com certeza, despregou-se do navio naufragado!) No caso, devem existir muitas tábuas – talvez milhares – em alto-mar, para que um dos personagens, nascidos para servirem de exemplo no direito penal, agarre-se a ela.

Não faz muito tempo, em um importante concurso público, foi colocada a seguinte questão: Caio quer matar Tício (sempre eles), com veneno; ao mesmo tempo, Mévio também deseja matar Tício (igualmente com veneno, é claro!). Um não sabe da intenção assassina do outro. Ambos ministram apenas a metade da dose letal (na pergunta não há qualquer esclarecimento acerca de como o idiota do Tício bebe as duas meias porções de veneno). Em conseqüência da ingestão das meias doses, Tício vem a perecer… Daí a relevantíssima indagação da questão do concurso: Qual o crime de Caio e Mévio? Muito relevante; deveras importante…! Qual seria a resposta? Nossos tribunais estão repletos de casos como este.

Outro exemplo que há tempos venho denunciando é o de uma pergunta feita em concurso público de âmbito nacional, pela qual o examinador queria saber a solução a ser dada no caso de um gêmeo xifópago ferir o outro! Com certeza, gêmeos xifópagos, encontrados em qualquer esquina, andam armados e são perigosos (a propósito, o que os gêmeos xifópagos acham do desarmamento? Votam sim ou não no plebiscito?)2. Pois não é que a pergunta voltou a ser feita, desta vez em concurso público de importante carreira no estado do Rio Grande do Sul? A questão de direito penal que levou o número 46 dizia:

“André e Carlos, gêmeos xipófagos (sic), nasceram em 20 de janeiro de 1979. Amadeu é inimigo capital de André. Pretendendo por (sic) fim a vida de André, desfere-lhe um tiro mortal, que também acerta Carlos, que graças a uma intervenção cirúrgica eficaz, sobrevive”.

E seguem-se várias alternativas.

Sem entrar no mérito da questão — e até para não parecer politicamente incorreto e não ser processado pelo gêmeo xifópago que, milagrosamente, sobreviveu — , impõem-se, no mínimo, duas observações: primeira, é importante saber que os gêmeos xifópagos (e não xipófagos, como constou da pergunta) nasceram no mesmo dia (tal esclarecimento era de vital importância!); e, segunda, não está esclarecido o porquê de Amadeu odiar apenas a André, e não a Carlos (afinal, tudo está a indicar que eles sempre andavam juntos).

Falando sério: confesso que não resisti à tentação de escrever esta crônica. Diariamente temos lutado para superar a crise do ensino jurídico e da operacionalidade do direito. Não está nada fácil. Basta um olhar perfunctório para verificar o estado da arte da crise. A propósito: há pouco tempo, aqui no Rio Grande, um sujeito que tentou se matar foi processado por porte ilegal de arma e, posteriormente, condenado (a apelação tramitou na 5ª Câmara Criminal). Outro sujeito teve sua prisão preventiva requerida por passar um cheque de R$ 60; a prisão foi indeferida, mas ele foi condenado a 2 anos de reclusão (este processo “caiu” comigo!). Outro sujeito restou condenado a 2 anos de reclusão por ter furtado um par de tênis usado e pequenos objetos, tudo avaliado em menos de R$ 50. O réu negou a autoria; seu advogado, entretanto, “confessou” o delito em nome do réu(também oficiei neste “feito” ou “desfeito”). De Santa Catarina vem a notícia de que uma casal ficou preso preventivamente por 46 (quarenta e seis) dias, por tentar furtar um par de chinelos. E por aí afora.

Claro que isto não ocorre de forma gratuita ou espontânea. Tudo isto é conseqüência da crise paradigmática que se sustenta em um ensino jurídico e em uma operacionalidade jurídica estandardizada, prêt-à-porter. Para se ter uma idéia da dimensão do problema, há um importante manual de direito penal que ensina o conceito de erro de tipo do seguinte modo: um artista se fantasia de cervo e vai para o meio do mato; um caçador, vendo apenas a galhada, atira e acerta o “disfarçado”. Fantástico. Quem não sabia o que era erro de tipo agora sabe. Só uma coisa me deixou intrigado: por que razão alguém se fantasiaria de cervo (veado) e iria para o meio do mato? Mistério, muito mistério.

O mesmo livro explica o significado de nexo causal, a partir do seguinte exemplo sobre causas preexistentes: “o genro atira em sua sogra, mas ela não morre em conseqüência dos tiros, e sim de um envenenamento anterior provocado pela nora, por ocasião do café matinal”. Que coisa, não? Mas tem mais tragédia familiar: o que seria causa “superveniente” no direito penal? O manual dá a solução, com o seguinte exemplo: “após o genro ter envenenado sua sogra, antes de o veneno produzir efeitos, um maníaco invade a casa e mata a indesejável (sic) senhora a facadas”. Significa dizer que o genro foi salvo pelo maníaco (seria o maníaco do parque, que teria escapado da prisão?) Mistério, não?

E o que seria erro de pessoa no direito penal? Resposta perfeita: “é quando o agente deseja matar o pequenino filho de sua amante, para poder desfrutá-la com exclusividade (sic). No dia dos fatos, à saída da escolinha, do alto de um edifício, o perverso autor efetua um disparo certeiro na cabeça da vítima, supondo tê-la matado. No entanto, ao aproximar-se do local, constata que, na verdade, assassinou um anãozinho que trabalhava no estabelecimento como bedel, confundindo-o, portanto, com a criança que desejava eliminar” (grifos meus). Imaginemos a cena: alguém quer matar o filho da amante para “desfrutar” da mãe do infante! Ele queria exclusividade. Que sujeito tarado e perverso, não?

Ah, se o direito penal fosse tão fantasioso, engraçado ou simples assim. O problema é que sempre sobra realidade. E como sobra! Com efeito, enquanto setores importantes da dogmática jurídica tradicional se ocupam com exemplos fantasiosos e idealistas/idealizados, a vida continua. Mais ou menos como em uma sala de aula de uma faculdade de direito no Rio de Janeiro, em que o professor explicava os crimes de dano, rixa e estampilha falsa e, lá de fora, ouviram-se tiros, muitos tiros. Na verdade, enquanto o professor explicava os conceitos desses relevantes crimes, várias pessoas foram mortas, em um conflito entre traficantes. Mas o professor não se abalou: abriu seu Código e passou a explicar o conceito de atentado ao pudor mediante fraude!

Mas, prossigamos: pesquisando um pouco mais, descobri em outro manual que o indivíduo que escreve a carta não pode ser agente ativo do crime de violação de correspondência; também constatei que, para configurar o crime de rixa, é necessário o animus rixandi; e ainda verifiquei que agressão atual é a que está acontecendo, e que agressão iminente é a que está por acontecer. Também desvelei outro mistério: o crime de quadrilha necessita, no mínimo, da participação de quatro pessoas. Um antigo manual explica a diferença entre dolo eventual e culpa consciente do seguinte modo: um jardineiro quer cortar as ervas daninhas e acaba cortando o caule da flor…! Que meigo, não?

Finamente, outro mistério foi solucionado pela dogmática penal. Havia sérias dúvidas acerca do que seria o “princípio da consunção”. Mas a resposta já está nas bancas, nas melhores casas do ramo, através do seguinte exemplo: é quando “o peixão (fato mais abrangente) engole os peixinhos (fatos que integram aquele como sua parte)”. Agora vai! E eu vou estocar comida. Urgentemente!

Notas

1- Os exemplos citados são todos verídicos. As obras, seus autores e demais protagonistas desta crônica não serão explicitados, porque o objetivo não é elaborar uma crítica pessoal, mas, sim, uma crítica científica ao imaginário (senso comum teórico) dos juristas. Nesse contexto, cada jurista assume um lugar no interior desse imaginário, fazendo parte de um complexo de significações, como o indivíduo que está “em uma ideologia”: se está, não pode dizê-lo; se pode dizer, é porque já não está. Talvez por isto a ideologia tenha eficácia na exata medida em que não a percebemos (M. Chauí).

2- Aproveito para sugerir uma pergunta para o próximo concurso: João e Pedro são gêmeos xifópagos. No dia do referendo, João se recusa a ir votar; já Pedro, adepto do “não ao desarmamento”, não admite ficar de fora do pleito, mormente por se tratar de uma obrigação legal e cívica. Qual é o remédio cabível para Pedro poder comparecer à votação? É possível conduzir João “sob vara”? E, se o voto é secreto, um gêmeo pode olhar o voto do outro? Esse voto não seria nulo? A pergunta está desde logo à disposição, sem a necessidade de pagamento de direitos autorais.

Revista Consultor Jurídico

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.


Você está prestes a ser direcionado à página
Deseja realmente prosseguir?
Atendimento