Compensação civil, uma questão de democracia

por Habib Tamer Badião

Mesmo com o advento da Constituição de 1988 — batizada pelo saudoso Ulisses Guimarães de “Constituição Cidadã” — remanesce no direito positivo pátrio um ordenamento legal híbrido, com institutos legais avançados – que traduzem o anseio da plenitude democrática – em contraponto com entulhos legais do tempo ditatorial, cheios de privilégios ao ente estatal, a exemplo do Código Tributário Nacional vigente desde 1966; a Lei de Execuções Fiscais de 1980; o Decreto Lei 911/69; sem falar de muitos institutos ainda insertos no vigente Código de Processo Civil de 1973, todos aprovados sob os grilhões da ditadura que sustentou-se nos Atos Institucionais e ainda sufocam a memória e a ordem jurídica nacional.

Restabelecido o Estado de Direito, era de se esperar que os privilégios do Estado cedessem lugar aos valores da cidadania e da dignidade da pessoa humana, galgados a princípios fundamentais da nova ordem, sem falar na isonomia perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, o primeiro dos direitos e garantias individuais e coletivas.

Lamentavelmente, o ideal dos constituintes de 1988 tem sido posto ao largo e cedido aos interesses dos governos e é isso que assistimos com advento do novo Código Civil. O legislativo curvou-se à ordem palaciana e transmudou em lei a medida provisória que revogou um dos grandes avanços que o novo diploma objetivo trazia para o cidadão (a compensação dos créditos fiscais e parafiscais), tudo isso sob uma desconfortável aquiescência do nosso Judiciário, que no mais das vezes insiste em manter vivos ditos institutos, erigidos sob o jugo das baionetas de 1964 a 1981, um tempo de trevas e sofrimento a que foi submetido o provo brasileiro, mas que ainda resiste em passar para a história – negra — do nosso País.

A comunidade jurídica – talvez sem se dar conta da gravidade do episódio – inicialmente quedou-se em silêncio ante o inusitado e somente agora vozes mais atentas começam a denunciar não apenas o ardil que o episódio encerra, mas, sobretudo, a convicção de que faz-se imperioso extirpar o câncer das medidas provisórias do nosso ordenamento legal, sob pena de comprometermos todo o sistema democrático erigido sob a Carta Política de 1.988.

A pretensa revogação do artigo 374 do novo Código Civil é inconstitucional e imoral e traduz a nefanda prática do Governo de Luis Inácio Lula da Silva em seguir os mesmos passos dos seus antecessores, traindo sua pregação e os anseios de toda sociedade brasileira, que sonhava com os valores dos novos tempos, merecendo, portanto, o repúdio da sociedade forense como de fato começa a acontecer.

Neste sentido é de se ressaltar que os professores Hugo de Brito Machado e Afonso Celso Teixeira Rabelo em artigos publicados na IOB e na Revista Jurídica Consulex, já entendiam que eram válidas as compensações civis por auto lançamento contábil.

O que fazer então? Qual o caminho legal a ser seguido? A resposta pode estar na consagrada Hermenêutica e Aplicação do Direito do saudoso e incomparável CARLOS MAXIMILIANO[1] quando obtempera que: “Na verdade, o magistrado não formula o Direito, interpreta-o apenas; e esta função ainda é exercida somente quando surge a dúvida, sobre a exegese, em um caso forense”

E o que está a nos dizer o direito?

Na hipótese, há critério objetivo vigente e apto a espantar qualquer sombra de dúvida sobre a questão, e em recente entrevista concedida à Revista Jurídica Consulex[2], o Relator do Projeto do Código Civil, Deputado Ricardo Fiúza ofereceu à comunidade jurídica pátria relevantes considerações sobre a mens legens do novel tratamento legal do instituto.

Inquirido sobre se a pretendida revogação do artigo 374 do novo Código Civil (pela lei 10.677/2003) por si só ensejaria a repristinação do artigo 1.017 do antigo código, asseverou o Senhor Deputado que a compensação legal de tributos: “… deve obedecer às regras gerais do Código Civil, uma vez que a simples revogação do art. 374 jamais poderia implicar na repristinação do art. 1.017 do Código Civil de 1.916, este definitivamente extirpado do nosso ordenamento jurídico. E é exatamente por haver desaparecido a proibição constante do Código anterior, que se pode concluir que as normas gerais sobre a compensação, constantes da lei posterior, no caso o Código Civil, que regulou completamente a matéria, revogando, assim, as leis anteriores conflitantes tal como manda a LICC, aplicar-se-ão, igualmente, às dívidas fiscais”

A revogação do artigo 374 também foi abordada pelos professores Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery, em suas anotações ao novel instituto: “Revogação Inconstitucional — A revogação da norma ora comentada pela Medida Provisória 104/03 é inconstitucional, de modo que é inoperante e não produz efeito, razão pela qual continua em vigor o CC 374. É inconstitucional porque fruto de reedição pelo Presidente da República , instrumento absolutamente vedado pela CF 62 §10. ‘É vedada a reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória que tenha sido rejeitada ou que tenha perdido sua eficácia por decurso de prazo”.

A questão em desfile também foi abordada pela professora Maria Helena Diniz em seus comentários ao Código Civil, em sua mais recente edição[3], onde a ilustre doutrinadora reporta-se aos comentários do professor Mário Luiz Delgado, em matéria na revista jurídica Consulex.

Portanto, e tornando à lição do hermeneuta, o judiciário não pode ceder à tentação do Executivo e lançar-se ao mister de legislar, cabe-lhe aplicar a lei, interpretá-la. E, na hipótese, quando tratam do artigo 374, sedimenta-se na doutrina a unanimidade quanto a inconstitucionalidade da Lei Federal nº 10.677 de 22.05.2003 que revogou o citado artigo.

Logo, a compensação dos débitos fiscais e parafiscais, nos moldes traçados pelo legislador, superou os estreitos limites sugeridos pelo artigo 170 do Código Tributário Nacional, e assim deve ser tratada a questão, é o que impõe o Estado de Direito …

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[1] E. Forense, 9ª edição, pág. 58

[2] Ano VIII, nº 170, de 15 de novembro de 2004, págs. 29 e 30

[3] Código Civil Anotado, Ed. Saraiva, comentários ao artigo 374.

Revista Consultor Jurídico

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