por Francisco José Moesch
O conceito de serviço público, hoje, situa-se numa posição limítrofe que toca tanto ao direito público quanto ao direito privado. Pode ser definido tanto do ponto de vista funcional (serviço público é uma atividade destinada a satisfazer o interesse coletivo), como de um ponto de vista orgânico (é a atividade que deve ser organizada pelo Poder Público, que pode optar por desempenhá-la diretamente ou confiá-la a um particular por instrumentos próprios).
É uma noção que polariza a discussão sobre a extensão do papel do Estado na Economia, já que a intervenção estatal, em maior ou menor grau, reflete-se nos modos de se organizarem os serviços públicos.
A aplicação do Código de Defesa do Consumidor à atividade regulatória dos serviços públicos possui principiologia própria, a qual valoriza sobremodo o princípio da legalidade, que informa a atividade dos órgãos administrativos competentes para desenvolvê-la.
A questão mais controvertida, em matéria de regulação dos serviços públicos, é a possibilidade de interrupção do fornecimento por ocasião da inadimplência do consumidor.
Existem duas posições sobre o tema:
a) a incidência, sobre a matéria, do Código de Defesa do Consumidor, que dispõe, no seu artigo 22, sobre o dever de continuidade dos serviços públicos essenciais;
b) a possibilidade de ser interrompido o fornecimento do serviço por falta de pagamento, mediante aviso prévio, conforme o disposto no artigo 6º, parágrafo 3º, inciso II, da Lei 8.987/95 (não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de emergência ou após prévio aviso, quando por inadimplemento do usuário, considerando o interesse da coletividade).
Diante do alinhado, e com profundo respeito às posições divergentes, sustento o quanto segue.
Qualquer norma infraconstitucional que ofender os direitos consagrados pelo Código de Defesa do Consumidor estará ferindo a Constituição e, conseqüentemente, deverá ser declarada como inconstitucional.
O 4º Congresso do Consumidor, realizado em Gramado, concluiu que o direito de proteção ao consumidor é cláusula pétrea da Constituição Federal (artigo 5º, inciso XXXII). Com efeito, o Direito do Consumidor possui status de Direito Constitucional e, assim, não pode o legislador ordinário fazer regredir a valência de garantia fundamental.
A Lei da Concessão de Serviço Público (Lei 8.987/95), ao afirmar que não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção por inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade (artigo 6º, parágrafo 3º, inciso II), na realidade está praticando verdadeiro retrocesso ao direito básico do consumidor, tendo em vista o que afirma o artigo 22 do CDC.
Aceitar a possibilidade de corte de energia elétrica implica flagrante retrocesso ao direito do consumidor, consagrado a nível constitucional. Logo, o princípio da proibição de retrocesso veda que lei posterior possa desconstituir qualquer garantia constitucional. Mesmo que lei posterior regule nesse sentido, a norma deverá ser considerada inconstitucional.
Assim, nesse cenário de posições antagônicas, de embates doutrinários e jurisprudenciais, surge uma nova abordagem de concepção de serviço público, que recupera a ótica de sua relevância para a construção de uma solidariedade e de uma interação social.
Essa nova angularidade de se visualizar os serviços públicos implica substituir o plano de instituto tipicamente de Direito Administrativo pelo plano mais nobre, na escala de valores, de instituto do Direito Constitucional.
Para tal, merece destaque que a interdependência entre o serviço público, o interesse público, os direitos fundamentais e o princípio vetor da dignidade da pessoa humana devem ser cada vez mais valorizados, quando os serviços públicos forem submetidos a modificações de ordem econômica, política ou social.
A lógica dos princípios administrativos, com suas concepções meramente técnicas, não pode prevalecer e superar a lógica da proteção da dignidade da pessoa humana.
Revista Consultor Jurídico